Migalha Trabalhista

O (não?) vínculo empregatício do Uber: a ordem do dia é o investimento em trabalhabilidade

Os trabalhistas de plantão há muito esperam essa resposta, tanto pela vivaz da academia e seus infinitos debates sobre o tema, quanto pela própria seriedade do caso concreto que, como todo dilema sem resposta, urge por uma pá de cal que, quiçá, seja definitivamente dada.

11/8/2023

Finalmente, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), através do vice-presidente ministro Aloysio Silva Corrêa da Veiga, admitiu o recurso extraordinário acerca do debate de vínculo (ou não) de emprego entre o motorista uberizado e a respectiva empresa. Esse ato remete à mais alta Corte do país (STF) a apreciação do aclamado empasse.

Os trabalhistas de plantão há muito esperam essa resposta, tanto pela vivaz da academia e seus infinitos debates sobre o tema, quanto pela própria seriedade do caso concreto que, como todo dilema sem resposta, urge por uma pá de cal que, quiçá, seja definitivamente dada.

Fato é que muito embora as Turmas do TST já tenham divergido sob o assunto – vez que enquanto algumas entendem pela existência do vínculo de emprego, outras não visualizam os requisitos apregoados pelos artigos 2º e 3º do diploma dos trabalhadores para, enfim, configurar a dita relação, preliminar à qualquer ilação –, é preciso analisar o contexto que a futura decisão pode ocasionar, pois, evidentemente, positiva ou negativamente, existirão impactos.

Em sendo reconhecido o vínculo – ou seja, se entenderem os Ministros do STF pela existência do preenchimento dos requisitos que as relações de emprego disciplinam –, talvez a famigerada empresa não mais atue no país, principalmente porque os encargos, deveres, obrigações, etc., tendem a se tornarem onerosos demais tal continuidade. E não só: não é de se duvidar que alguns (agora empregados) também abandonem a profissão, justamente por terem a ela se vinculando pela liberdade em exercê-la – pelo menos até o presente momento.

Outrossim, em não sendo reconhecido o vínculo de emprego, exige-se uma atenção especial sob dois prismas. Primeiro, sob qual ramo do Judiciário devem-se discutir eventuais contendas? Segundo, de que forma salvaguardar (boas) condições de trabalho diante desta nova relação autônoma existente?

Quanto ao primeiro ângulo, esta articulista não tem nenhuma dúvida de que o embrolho é de competência da Justiça do Trabalho. O artigo 114 da Constituição Cidadã, desde a Emenda Constitucional nº 45, é cristalino ao dispor que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar relações de trabalho, não apenas relações de emprego, portanto, inconteste tal prerrogativa. Não obstante, não se pode ignorar o fato de que o motorista uberizado pode, por vezes, embora autônomo, encontrar-se em situação de vulnerabilidade, por qualquer razão que seja. Por isso, é chegada a hora de falar-se em uma terceira via.

Em 2020, em atenção às novas formas de trabalho, a Deputada Federal Tabata do Amaral sugeriu o PL 3.748/201, instituindo o trabalho sob demanda. No referido PL, verificam-se rudimentos que no futuro começarão a ser discutidos, tais como a plataforma garantir direitos mínimos (benefícios e liberdade para o trabalho), não necessariamente atreladas ao vínculo empregatício, mas umbilicalmente alinhados com o que a Carta brasileira entende como princípio balizador destas relações – o valor social do trabalho.

Mas como garantir anteparo, de forma mínima – se é que existe um mínimo a ser garantido –, dentro de uma terceira via, que nem mesmo se tem pacificada? Evitando tautologias, e buscando contribuir a um futuro positivo, sugere-se que estas empresas plataformizadas lancem luzes ao investimento em trabalhabilidade destes laboradores. E explica-se o porquê:

De imediato, cumpre explicar ao(à) leitor(a), o que é trabalhabilidade? Possuir trabalhabilidade é2:

[...] readaptar-se constantemente ao cenário laboral através de seus próprios predicados; é um trabalhador que se vale de sua própria vocação para o exercício de sua lida; alguém capaz de ressignificar durante todos os dias de sua vida a prática de seu trabalho, proporcionando para si (e para a sociedade) novas e melhores formas de atingir metas e resultados em toda e qualquer atividade. Ou seja, possuir trabalhabilidade é transbordar o que há de melhor através do exercício laborativo, desprovendo-se de rótulos previamente enlaçados, vez que, aos possuidores de tal virtude, a realização laboriosa fundar-se-á em um incessante descobrir novos (e melhores) caminhos a serem navegados.

Dito isso, uma terceira via, assim, estaria atrelada ao investimento em capacitação constante, vez que o sujeito uberizado pode, no futuro, não mais estar na lida plataformizada, mas, se readaptado pelo investimento feito em suas skills, certamente estará mais preparado para novel atividade. Além disso, em se tornando uma preocupação (concreta) da mencionada plataforma – e tantas outras –, entende-se que a sociedade igualmente seria tocada por essa onda de trabalhabilidade, haja vista o clima auspicioso para clientes e mercado.

A bem da verdade, falar em terceira via é deveras complexo, ainda mais quando se considera o diploma brasileiro dos trabalhadores e sua concepção nos idos de um cenário industrial em que o emprego era a meta de vida daqueles que iniciavam a sua vida laboral. Contudo, o mundo mudou e isso não pode ser desconsiderado. Urgente, portanto, não apenas reconhecer os direitos oriundos de uma relação empregatícia, como também reconhecer que investir em trabalhabilidade pode se tornar uma terceira via fértil, não apenas aos próprios trabalhadores, mas ao cenário social aos que se vinculam.

É claro que não se pode fugir do enfrentamento da presente questão, seja porque há muito se discute tal celeuma jurídico, seja porque os próprios trabalhadores uberizados, ao fim e ao cabo, não sabem sob qual justiça devem, eventualmente, suscitar suas questões. Mas, como dito, existem infinitas outras situações que (também) bordeiam essa peleia, e que não podem ser ignoradas.

Seja como for, a sorte está lançada e em breve o cenário jurídico obterá a tão aguardada resposta do vínculo (ou não) desta sui generis relação. Aqui ficam os votos de quem espera que, independentemente do resultado, a trabalhabilidade seja preservada – na sua maior forma de aplicabilidade.

Aguardemos.

__________

1 BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto Lei n° 3.748/2020. Disponível aqui. Acesso em: 7 ago. 2023.

2 ALVES, Andressa Munaro. A Trabalhabilidade como direito social fundamental: O critério da ponderação como alternativa à sua realização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2023. p. 139.

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Colunista

Ricardo Calcini é professor, advogado, parecerista e consultor trabalhista. Estratégica, atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs, TST e STF). Mestre em Direito do Trabalho pela PUC/SP. Pós-Graduado em Direito Processual Civil (EPM TJ/SP) e em Direito Social (Mackenzie). Professor Convidado de Cursos Jurídicos e de Pós-Graduação (FADI, ESA, IEPREV, Católica de SC, PUC/PR, PUC/RS, Ibmec/RJ, FDV e USP/RP). Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Professor indicado pela Câmara dos Deputados para presidir o grupo de estudos técnicos para a elaboração do PL 5.581/2020 acerca do Teletrabalho. Coordenador Acadêmico do projeto "Migalha Trabalhista" (Migalhas). Palestrante e Instrutor de eventos corporativos pela empresa Ricardo Calcini | Cursos e Treinamentos, especializada na área jurídica trabalhista com foco nas empresas, escritórios de advocacia e entidades de classe. Autor do livro "Prática Trabalhista nos Tribunais: TRT's e TST". Coautor dos livros "Execução Trabalhista na Prática" (2ª Edição) e "Manual de Direito Processual Trabalhista". Organizador das obras coletivas "CLT Comentada: Artigo por Artigo" – Mizuno (2ª Edição), "Estratégias da Advocacia no TST", "ESG – A Referência da Responsabilidade Social Empresarial", "Prática de Processo de Trabalho: Técnica Visual Law", "Reflexões Jurídicas Contemporâneas: Estudos em homenagem ao Ministro Douglas Alencar Rodrigues", "Relações Trabalhista e Sindicais – Teoria e Prática" (2ª Edição), "LGPD e Compliance Trabalhista" e "Reforma Trabalhista na Prática: Anotada e Comentada" (2ª Edição). Coordenador do livro digital "Nova Reforma Trabalhista" (Editora ESA OAB/SP, 2020). Coordenador dos livros "Perguntas e Respostas sobre a Lei da Reforma Trabalhista" (Editora LTr) e "Reforma Trabalhista: Primeiras Impressões" (Editora Eduepb). Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (GETRAB-USP), do GEDTRAB-FDRP/USP e da CIELO LABORAL. Contatos: Instagram ricardo_calcini | Website www.ricardocalcini.com.br