Migalhas de Direito Médico e Bioética

Princípio da Precaução: O caso dos organismos geneticamente modificados

O Princípio deve ser aplicado considerando cautela, equilíbrio, razoabilidade e proporcionalidade.

28/8/2023

Desde o final do Século XX, vivemos a chamada "sociedade de risco" em que as espécies de responsabilidade civil "clássicas" – subjetiva e objetiva – e a teoria do risco não são suficientes a solucionar danos. Adicione-se, então, os princípios da precaução e da prevenção – funções preventivas da responsabilidade civil – parar tentar minimizar os riscos. 

O princípio da precaução (“Princípio”) se origina na Alemanha, em idos de 1970, associado ao Direito Ambiental. O Princípio: 

(…) é aquele que trata das diretrizes e valores do sistema de antecipação de riscos hipotéticos, coletivos ou individuais, que estão a ameaçar a sociedade ou seus membros com danos graves e irreversíveis e sobre os quais não há certeza científica; esse princípio exige a tomada de medidas drásticas e eficazes com o fito de antecipar o risco suposto e possível, mesmo diante da incerteza1. 

O Princípio é composto por dois elementos básicos: (1) incerteza científica (incerteza, razoável e efetiva, de que um dano grave / irreparável ocorrerá); e (2) risco de dano (grave e irreversível). Há, ainda, duas condições formais do Princípio: (1) incerteza científica e a respectiva medida adotada deve ser transitória; e (2) pesquisa investigativa deve se manter em andamento – adotar medida para evitar o risco não isenta a pesquisa e análise de medida definitiva ao risco. 

O Princípio não pode – e não deve – ser aplicado indiscriminadamente, a qualquer situação, fator, serviço, produto. Ao contrário, deve haver sopesamento entre liberdade e direitos de indivíduos e empresas perante novas tecnologias; bem como necessidade de reduzir riscos nocivos das novas tecnologias.

Assim, o Princípio deve ser aplicado considerando cautela, equilíbrio, razoabilidade e proporcionalidade. "[O] princípio da precaução não é um princípio da fatalidade, mas um princípio da inteligência"2.

O Princípio foi amplamente recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo hoje utilizado na proteção do meio ambiente, saúde e defesa do consumidor.

Resta a pergunta: como aplicar o Princípio? Não há resposta fixa, inelástica. Ao contrário, as formas de o aplicar são indeterminadas, inúmeras, para que se analise e determine, caso a caso, qual a melhor forma de aplicar o Princípio. O que se pode sugerir são critérios para implementar o Princípio, a saber: (1) existência de risco de dano grave ou irreversível; (2) incerteza científica (constatada ou em início); (3) proporcionalidade e razoabilidade entre a medida adotada e seus efeitos; e (4) revisão da medida adotada após determinado período. Tudo isso baseado em análise científica e técnica sérias, utilizados os melhores conhecimentos e tecnologia da época, frente também aos fatores sociais, econômicos e ambientais.

Defendemos que a maneira mais importante de implementar, aplicar, o Princípio, é via informação, porque (1) é a forma mais barata e eficaz de implementação do Princípio; (2) não interfere no desenvolvimento da tecnologia; e (3) permite a livre e consciente escolha do indivíduo. Contudo, veja que não é qualquer ato de informação que será eficaz, apenas o informar compreensível, adequado, suficiente, verídico, tempestivo e atual.

Pois bem. A informação e o princípio da precaução são aplicados aos Organismos Geneticamente Modificados ("OGMs") por simples razão: não se concluiu, em termos técnico-científicos finais, sobre os riscos de consumo de alimentos OGMs.

Felizmente, o Brasil adotou a rotulagem obrigatória para alimentos OGMs, sem relacionamento limite máximo de OGM em alimentos (via batalha judicial vitoriosa para o último aspecto). Contudo, sustentamos críticas: o símbolo (triângulo em amarelo e preto) é agressivo, remete a substância venenosa, perigo, atenção e cuidado; desvirtualizando a sua finalidade. 

A revisão do símbolo e modo de comunicação, então, a nosso ver, é medida indiscutível e imperiosa. Propomos o “combo” de (1) informações escritas e (2) visuais (símbolo); ausente linguagem técnica e de maneira extremamente objetiva. 

Quanto às informações escritas, veja exemplo do que sugerimos:

(Imagem: Divulgação)

Quanto ao símbolo, proximidade com o símbolo adotado pelos Estados Unidos parece funcionar. Isto é, designo que informe a presença de OGMs no alimento, em cores preto e branca, com a frase simples e direta "contém OGMs". 

Símbolo e frase de alerta devem ser inseridos no painel principal do alimento; enquanto as informações escritas devem ser inseridas no painel da lista de ingredientes e da tabela de informação nutricional. 

Considerações adicionais: informar, pura e simplesmente, não soluciona o impasse. Medidas complementares devem ser adotadas pela sociedade, cidadãos, cientistas, empresas privadas, ONGs, associações de defesa do consumidor e Poder Público. As que se destacam são: educação e participação. 

Educação é via para criar consciência social. A cada uma das partes, dadas limitação e competência, cabe auxiliar e promover a educação sobre os OGMs. Tarefa árdua e complexa, considerando a taxa alta de analfabetismo do Brasil.

Educados e informados, deve-se instigar a participação em processos decisórios envolvendo OGMs. Aqui, valem as considerações para (des)contruções técnicas sobre os alimentos OGMs, bem como quanto ao modo de informar. Consultas e audiências públicas devem ser efetivamente participativas, de modo que o Poder Público considere o posicionamento da sociedade (consumidores e empresas). 

Temas associados aos alimentos OGMs, especificamente o direito à informação, continuarão a ser discutidos: há discussões técnico-científicas que devem ser revisadas (vis a vis o desenvolvimento técnico atual e futuro); e verificar-se-á o aumento na (já presente) discussão sobre a rotulagem obrigatória nos Estados Unidos. País que seria defensor ferrenho dos alimentos OGMs (frente ao posicionamento conservador da Europa), passa a impor a rotulagem obrigatória em 2022, que não foi muito bem-vista pela sociedade, notadamente empresas do setor. 

O Brasil já teria passado pelo nível primário, de implementação. Dizer "em tese" é preciso, porque nem todas as empresas do setor de alimentos "adotaram" a rotulagem obrigatória. Observação baseada nas análises técnicas realizadas por órgãos de defesa do consumidor. 

No passado, em curto período de tempo, houve uma intensificação da fiscalização de presença / comunicação devida sobre os OGMs em alimentos. As medidas passaram, eventuais infrações continuaram (e continuam). 

A nosso ver, é imprescindível um controle administrativo "pesado e poderoso", bem como o desenvolvimento de instrumentos jurídicos eficazes para repreender e cobrar o atendimento à legislação. A individualidade em cada caso é importante, de maneira que haja a devida fiscalização, respectiva análise e imposição de penalidade. 

"Em conclusão, o tema é de fundamental importância e não deixará de ser discutido, ao menos, até que se possua um posicionamento formal e definitivo da ciência sobre os OGMs. Enquanto isso, deve-se informar a sociedade, educar, conscientizar e instigar a participação de todos em processos decisórios. Deve-se também continuar a investigar os alimentos OGMs, sobretudo seus riscos. (...) Toda pessoa possui o direito de saber o que está consumindo e de escolher se consome ou não determinado produto"3.

__________

1 LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 103.

2 No original: "[L]e principe de précaution n’est pas un príncipe de fatalité, mais un principe d’intelligence". (GRISON, Denis. Qu’est-ce que le príncipe de précaution? Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 2012, p. 70).

3 JAMBOR, Daniela Guarita. Organismos Geneticamente Modificados: precaução, informação e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 166.

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Colunistas

Alexandro de Oliveira é doutorando e mestre em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva (UFRJ). Pesquisador, Advogado e Bioeticista. Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) , da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP), da Sociedade Brasileira de Bioética (SPP), do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN), Membro do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina da Universidade Federalcis Fluminense (UFF).

Fernanda Schaefer tem pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC/PR, bolsista CAPES. Doutorado em Direito das Relações Sociais na UFPR, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha) como bolsista CAPES. Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC/PR. Assessora Jurídica CAOP Saúde MP/PR.

Miguel Kfouri Neto é desembargador do TJ/PR. Pós-doutor em Ciências Jurídico-Civis junto à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UEL. Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. Licenciado em Letras-Português pela PUC/PR. Professor-Doutor integrante do Corpo Docente Permanente do Programa de Doutorado e Mestrado em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA). Coordenador do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA). Membro da Comissão de Direito Médico do Conselho Federal de Medicina.

Rafaella Nogaroli é assessora de desembargador no TJ/PR. Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito Aplicado, Direito Processual Civil e Direito Médico. Supervisora acadêmica do curso de especialização em direito médico e bioética da EBRADI. Coordenadora do grupo de pesquisas "Direito da Saúde e Empresas Médicas" (UNICURITIBA), ao lado do prof. Miguel Kfouri Neto. Diretora adjunta e membro do IBERC.

Wendell Lopes Barbosa de Souza é juiz de Direito do TJ/SP desde 2003 e Membro Titular da COMESP (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do TJ/SP). Pós-doutor e professor da temática "Feminicídio" na pós em "Direitos Humanos, Saúde e Justiça" pelo POSCOHR, sediado na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Especialista em Direito Penal pela Escola Paulista da Magistratura. Mestre e doutor em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. Pesquisa e Curso de Introdução ao Direito Americano na Fordham University – NY/EUA. Professor em diversas instituições. Autor de livro e publicações. MBA Executivo em Gestão da Saúde pela FGV.