Migalhas de Responsabilidade Civil

Prevenção de comportamentos antijurídicos na sociedade de consumo contemporânea: contributo da behavioral economics para os estudos de responsabilidade civil

No campo do direito, diversos estudos contemplando insights da psicologia, da economia e da neurociência tem contribuído para a formação de uma compreensão mais realista do fenômeno jurídico.

16/8/2022

Introdução

Desde os estudos seminais de Daniel Kahneman e Amos Tversky, a behavioral economics (economia comportamental) tem conquistado um relevante campo de pesquisa, sobretudo ao propor questionamentos ao modelo tradicional de racionalidade abstratamente formulado nas diversas vertentes teóricas da economia neoclássica, como por exemplo, na teoria da utilidade esperada.

Dentre as diversas pesquisas conduzidas pelos supracitados autores, destacam-se dois artigos: no primeiro, "Judgment under uncertainty: heuristics and biases", experimentos empíricos demonstraram que os seres humanos, muitas vezes, adotam heurísticas ou atalhos mentais para realizar julgamentos de probabilidade que visam simplificar e acelerar o processo de tomada de decisão. Tal comportamento, que em muitas ocasiões é bastante útil, também pode acarretar em falhas cognitivas (vieses), gerando erros sistemáticos e previsíveis1. No segundo artigo, "Prospect theory: an analysis of decision under risk", Kahneman e Tversky, psicólogos de formação, passaram a influenciar decisivamente o pensamento econômico, estabelecendo uma vertente teórica descritiva do comportamento humano observado em situações de incerteza. Tomando por base a concepção tradicional de racionalidade, os autores não refutam a ideia de que o ser humano visa maximizar o seu bem-estar. No entanto, a partir de consistentes estudos empíricos, restou por diversas vezes demonstrado que essa maximização da utilidade pode não ocorrer conforme o esperado. Cite-se, por exemplo, os experimentos conduzidos pelos autores que comprovaram a aversão à perda e propensão ao risco2. O motivo? Como seres humanos, alcançamos conquistas extraordinárias. Contudo, nossa racionalidade nunca deixou de ser humanamente limitada.

Desde então, os estudiosos da economia comportamental têm expandido o seu campo de estudos para além da ciência econômica, tornando-se um manancial para a pesquisa interdisciplinar e formulação de políticas públicas. No campo do direito, diversos estudos contemplando insights da psicologia, da economia e da neurociência tem contribuído para a formação de uma compreensão mais realista do fenômeno jurídico3. Sem qualquer intenção de esgotar o assunto, este texto procurará apresentar o potencial dessa análise interdisciplinar no campo da responsabilidade civil, especialmente para analisar como o conhecimento da heurística do reconhecimento poderá contribuir para uma melhor proteção do consumidor na sociedade de consumo contemporânea.

A heurística do reconhecimento e sua influência no contexto da tomada de decisão do consumidor

A heurística do reconhecimento, estudada há décadas por Gerd Gigerenzer e Daniel G. Goldstein, tem sido utilizada tanto pelos seres humanos quanto pelos animais em situações relacionadas à falta de informações ou conhecimento. Exemplificando como o princípio do reconhecimento pode ser aplicado, os autores mencionam um estudo realizado com camundongos em que os animais optaram por se alimentar com alimentos anteriormente conhecidos, seja por já tê-los farejado ou ingerido, em detrimento de alimentos desconhecidos. Em outro estudo, os autores observaram o quão importantes são as técnicas de publicidade que visam favorecer o reconhecimento das marcas pelos consumidores, muitas vezes superando até mesmo os esforços para divulgação das qualidades dos próprios produtos disponibilizados4.

Nesse sentido, a heurística do reconhecimento é adotada quando uma pessoa precisa fazer um juízo de valor diante de mais de uma possibilidade de escolha. No caso, os estudos indicam que a pessoa tende a conferir maior valor à opção mais facilmente reconhecida por ela, mesmo quando não necessariamente tenha vivenciado uma experiência direta. A partir desse raciocínio, a heurística do reconhecimento pode ser estudada como um modelo de preferências no âmbito da tomada de decisão dos consumidores. Exemplificando, cite-se um experimento clássico conduzido por Wayne Hoyner e Steven Brown que testou a importância do reconhecimento para a escolha de alimentos5. No caso, foram disponibilizados três potes de pasta de amendoim, sendo um deles de alta qualidade e os outros dois de pior qualidade. Em um primeiro momento e realizando o teste às cegas, a maioria dos participantes optou pelo alimento de melhor qualidade. Contudo, quando se fixou aleatoriamente em um dos potes um rótulo de uma marca amplamente reconhecida e nos outros dois potes rótulos de marcas desconhecidas, percebeu-se uma mudança no comportamento dos participantes. Quando a pasta de amendoim de alta qualidade foi colocada no pote contendo o rótulo de uma marca desconhecida, apenas em 20% das vezes essa foi a opção escolhida. Por outro lado, quando a pasta de pior qualidade foi colocada no pote contendo o rótulo da marca mais conhecida, os participantes fizeram essa opção 73% das vezes. Quando a mesma pasta de amendoim apresentando a mesma qualidade foi colocada em três potes diferentes, sendo que um deles continha o rótulo de marca mais conhecida e os outros dois potes o rótulo de marcas não conhecidas, o pote com o rótulo da marca mais familiar para os participantes foi escolhido 75% das vezes.6

Onvara Oeusoonthornwattana e David R. Shanks, a partir de experimentos relatados pela literatura especializada, elencam três motivos que justificam a utilidade do estudo da heurística do reconhecimento em relação à tomada de decisão do consumidor: a) em primeiro lugar, ao escolher um produto, o consumidor lida com objetos reais, muitas vezes por ele já conhecidos em virtude de compras anteriores; b) em segundo lugar, há pesquisas que já comprovaram a importância do reconhecimento da marca para o aumento de vendas, como no caso de uma famosa campanha publicitária realizada pela Benetton, estudada e relatada por Gerd Gigerenzer. No caso, a empresa realizou uma impactante propaganda – utilizando imagens fortes e chocantes – para alavancar as suas vendas, estratégia que acabou sendo bem-sucedida; c) o terceiro motivo está no fato de que os consumidores normalmente apresentam dificuldade para distinguir os produtos atinentes a marcas não especificadas por rótulos, apresentando uma predisposição bastante acentuada para avaliar positivamente marcas que lhes são familiares quando estas são identificadas7.

A heurística do reconhecimento, portanto, influencia decisivamente o processo de escolha realizado pelo consumidor8, sendo um instrumento precioso para o posicionamento de uma marca no mercado, para o estabelecimento de estratégias de vendas, bem como a realização de campanhas publicitárias. Por outro lado, um conhecimento mais aprofundado a respeito dessa heurística também poderá ser um importante insight para o estabelecimento de medidas protetivas ao consumidor, sujeito vulnerável na relação de consumo, especialmente quando os fornecedores a utilizarem de forma não transparente e abusiva, aproveitando-se das limitações cognitivas do ser humano9. Nesse sentido, cite-se a possibilidade bastante plausível de utilização da heurística do reconhecimento por meio de campanhas publicitárias visando explorar demasiadamente o processo de familiarização do nome de determinada marca em detrimento da real qualidade dos produtos oferecidos, induzindo, por um lado, os consumidores ao cometimento de erros de julgamento e, por outro, gerando lucros ilícitos para aqueles que exploram a vulnerabilidade alheia10.

Behavioral economics e responsabilidade civil: um diálogo possível

O problema da manipulação da tomada de decisão e os potenciais danos que ela pode causar aos consumidores é uma temática que demanda constante atualização, especialmente em virtude da evolução da internet e da tecnologia. Obviamente, o mercado de consumo acompanha essa evolução: atualmente, não estamos mais diante apenas dos grandes magazines e das campanhas publicitárias na televisão. Vivenciamos a era da revolução digital, das redes sociais, dos influenciadores digitais, enfim, novos ambientes e personagens que complexificam ainda mais a relação de consumo.

Precisas são as considerações realizadas por Jon D. Hanson e Douglas A. Kysar, destacando que, em virtude da racionalidade limitada do ser humano, há uma forte probabilidade de que aqueles que possuem o controle sobre a informação passem a utilizá-la de maneira a influenciar a tomada de decisão de terceiros, visando explorar as limitações cognitivas decorrentes das heurísticas e dos vieses com o intuito de obter vantagens econômicas11. Pensando no consumidor e sua inserção no atual mercado de consumo, tal forma de manipulação corresponderia à exploração da sua vulnerabilidade cognitiva12, violando preceitos importantes do Código de Defesa do Consumidor.

Nesse contexto, os estudiosos da responsabilidade civil extracontratual podem se perguntar se o modelo tradicional do instituto, calcado na compensação pelos prejuízos, ainda é capaz de lidar com determinados comportamentos antijurídicos, especialmente aqueles que surgem no bojo deste novo mercado de consumo, fortemente influenciado pela internet, pelas redes sociais e pela disseminação muitas vezes sem controle da informação. No presente texto, a abordagem restringiu-se à heurística do reconhecimento e seu potencial causador de danos. Contudo, diversas outras heurísticas e vieses poderiam ter sido abordados13, o que demonstra a necessidade de reflexão a respeito da proteção do consumidor nesta quadra da história. A título de exemplo, pensemos na possibilidade de um influenciador digital se valer da heurística do reconhecimento para, com o seu prestígio, manipular os seus seguidores, orientando-os a optar por escolhas que não maximizarão o seu bem-estar, visando apenas a obtenção de vantagens ilícitas ou lucros indevidos, seja para o seu próprio proveito ou em conjunto com fornecedores. A mera compensação de eventuais prejuízos resolveria, efetivamente, o problema?

No texto "A natureza dos preventive damages", Nelson Rosenvald destaca a importância de repensarmos os estudos da responsabilidade civil extracontratual, ampliando os seus horizontes para além da compensação pelos prejuízos causados, sobretudo se a intenção for "prevenir comportamentos antijurídicos, remover lucros ilícitos ou restituir despesas decorrentes de um fato contrário ao direito". Para tanto, o autor propõe uma "ressignificação do princípio da reparação integral", tratando a indenização preventiva como "remédio autônomo da responsabilidade civil"14. Em conclusão, para lidar com os dilemas da sociedade de consumo contemporânea, como é o caso da possível utilização abusiva da heurística do reconhecimento nas redes sociais, propomos um diálogo com o texto do professor Rosenvald. Para restituir o consumidor à situação anterior ao dano ou remover lucros indevidos daqueles que utilizam heurísticas e vieses de forma abusiva e não transparente, não basta pensarmos apenas na compensação pelos prejuízos causados. Enfrentar o problema também pressupõe encarar o comportamento ilícito visando combater ao máximo a sua ocorrência futura.

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1 TVERSKY, Amos; KAHNEMAN, Daniel. Judgment under Uncertainty: Heuristics and Biases: Biases in judgments reveal some heuristics of thinking under uncertainty. Science, v. 185, n. 4157, p. 1124-1131, 1974, p. 1124.

2 KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Prospect theory: an analysis of decision under risk. Econometrica, v. 47, n. 2, p. 263-292, mar. 1979.

3 JOLLS, Christine; SUNSTEIN, Cass R.; THALER, Richard. A behavioral approach to law and economics. Stanford Law Review, v. 50, p. 1471-1550, jul. 1998.

4 GIGERENZER, Gerd; GOLDSTEIN, Daniel G. Reasoning the fast and frugal way: models of bounded rationality. Psychological review, v. 103, n. 4, p. 650-669, 1996, p. 663.

5 HOYER, Wayne D.; BROWN, Steven P. Effects of brand awareness on choice for a common, repeat-purchase product. Journal of consumer research, v. 17, n. 2, p. 141-148, 1990.

6 GIGERENZER, Gerd; GOLDSTEIN, Daniel G. The recognition heuristic: A decade of research. Judgment and Decision Making, v. 6, n. 1, p. 100-121, 2011, p. 114.

7 OEUSOONTHORNWATTANA, Onvara; SHANKS, David R. I like what I know: Is recognition a non-compensatory determiner of consumer choice? Judgment and Decision Making, v. 5, n. 4, p. 310-325, 2010, p. 312-313.

8 Há um importante debate mais aprofundado a respeito do tema, que questiona se a heurística do reconhecimento é utilizada de maneira não compensatória ou compensatória no processo de tomada de decisão de consumo. Tal discussão, que demanda análise empírica, foge aos objetivos do presente texto. Em relação ao mencionado debate, veja-se: THOMA, Volker; WILLIAMS, Alwyn. The devil you know: the effect of brand recognition and product ratings on consumer choice. Judgment and Decision Making, v. 8, n. 1, p. 34-44, 2013.

9 BORTOLOTTI, Lisa; SULLIVAN-BISSETT, Ema. Costs and benefits of imperfect cognitions. Consciousness and Cognition, v. 33, p, 487-489, 2015, p. 488.

10 BOUDRY, Maarten; VLERICK, Michael; MCKAY, Ryan. Can evolution get us off the hook? Evaluating the ecological defence of human rationality. Consciousness and cognition, v. 33, p. 524-535, 2015, p. 530.

11 HANSON, Jon D.; KYSAR, Douglas A. Taking behavioralism seriously: the problem of market manipulation. New York University Law Review, v. 74, n. 3, p. 630-749, jun. 1999, p. 635.

12 OLIVEIRA, Amanda Flávio de; FERREIRA, Felipe Moreira dos Santos. Análise econômica do direito do consumidor em períodos de recessão: uma abordagem a partir da economia comportamental. Revista de Direito do Consumidor, v. 81, p. 13-38, jan./mar. 2012.

13 Cite-se o fenômeno do superendividamento e os estudos que abordam como agravantes do problema a utilização abusiva dos vieses do superotimismo e da ilusão do controle. Cf. KILBORN, Jason J. Behavioral economics, overindebtedness and comparative consumer bankruptcy: searching for causes and evaluating solutions. Emory Bankruptcy Developments Journal, v. 22, p. 13-46, abr. 2005.

14 ROSENVALD, Nelson. A natureza dos preventive damages. Migalhas, 18 abr. 2022. Disponível aqui.

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Colunistas

Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho é professor titular e ex-coordenador do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (mestrado e doutorado). Doutor em Direito Civil e mestre em Direito da Cidade pela UERJ. Presidente do Fórum Permanente de Direito Civil da Escola Superior de Advocacia Pública da Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro (ESAP/PGE). Vice-presidente do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil). Autor de livros e artigos científicos. Advogado, parecerista e consultor em temas de Direito Privado.

Fernanda Schaefer é pós-doutora pelo Programa de pós-graduação Stricto Sensu em Bioética da PUC-PR. Doutora em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, curso em que realizou Doutorado Sanduíche nas Universidades do País Basco e Universidade de Deusto (Espanha). Professora do UniCuritiba. Coordenadora do Curso de Pós-Graduação em Direito Médico e da Saúde da PUC-PR. Assessora Jurídica do CAOP Saúde MPPR.

Igor de Lucena Mascarenhas é advogado e professor universitário nos cursos de Direito e Medicina (UFPB / UNIFIP). Doutorando em Direito pela UFBA e doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB. Especialista em Direito da Medicina pelo Centro de Direito Biomédico vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Nelson Rosenvald é advogado e parecerista. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre. Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra. Visiting Academic na Oxford University. Professor Visitante na Universidade Carlos III, Madrid. Doutor e Mestre em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Foi Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais.

Paulo Roque Khouri é doutorando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público — IDP. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UNICEUB (1992) e em Jornalismo pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) (1987); mestrado em Direito Privado pela Universidade de Lisboa (2006). Atualmente é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), sócio do escritório de advocacia Roque Khouri & Pinheiro Advogados Associados S/C.