Migalhas Marítimas

A incidência de cobrança de armazenagem nas hipóteses de rolagem de carga e a responsabilidade pelo seu pagamento

O fato de os exportadores terem de arcar com estes custos que são inerentes e afeitos a este tipo de tratativa negocial, faz com que eventualmente ações surjam para análise do Poder Judiciário, de modo que os tribunais de primeira e segunda instância tenham que se desdobrar em análises acerca do assunto.

17/11/2022

O dia a dia das operações portuárias compreende não somente a agenda daquilo que é aguardado e acordado previamente pelas partes envolvidas, como também surpresas que não haviam sido previstas pelos implicados na situação, mas que dada a urgência na realização das atividades do porto precisam ser solucionadas visando o bem comum.

No processo de exportação, muitas vezes, por diferentes motivos que serão apontados ao longo desse breve artigo, é necessário que as cargas que estão aguardando para serem exportadas tenham outra destinação que aquela inicialmente prevista. Por conta disso, os valores que inicialmente seriam pagos aos operadores portuários que atuam com a armazenagem dentro do porto organizado acabam sofrendo acréscimos por conta da sobrestadia das mercadorias que acabam por ficar mais tempo do que o que havia sido estipulado entre as partes contratantes.

O fato de os exportadores terem de arcar com estes custos que são inerentes e afeitos a este tipo de tratativa negocial, faz com que eventualmente ações surjam para análise do Poder Judiciário, de modo que os tribunais de primeira e segunda instância tenham que se desdobrar em análises acerca do assunto.

Desta feita, o que se procura explicitar no presente excerto, baseado na mais recente jurisprudência de diferentes tribunais, é o fato de que esse período excedente, no qual são feitas as rolagens nas cargas que estão esperando a melhor janela de exportação, não deve ser arcado pelos terminais portuários, e sim pelos próprios exportadores.

Inicialmente, pode-se utilizar como exemplo uma sentença proferida em sede de primeira instância, na comarca de Santos, já datada de 2018, quando a requerente, empresa exportadora , demandava ação declaratória alegando que, mesmo a autora disponibilizando a carga exportada, na modalidade FOB, em um dos terminais da corré (terminal portuário), dentro do prazo programado para o embarque, por conta da mudança do navio sob a responsabilidade de outra corré (armador), por problemas de calado no canal do porto, o embarque acabou por ser cancelado e transferido para outra data.

No presente caso, seguiu aduzindo a autora que somente após quase um mês da data prevista, por meio de outros navios disponibilizados pela última corré (armador) é que finalmente a mercadoria foi exportada para o seu destino.

Por conta da situação exposta acima, afirmou a exportadora que foi cobrada uma taxa de rolagem em razão do armazenamento alfandegado da carga e da sua transferência de quadra, embora ela não tenha dado causa ao atraso do embarque. Em face da situação exposta, afirmava em seu pleito que deveria ser declarada a nulidade da cobrança na referida taxa de rolagem.

Por sua vez, o douto magistrado referendou sua sentença aduzindo que:

“(...) Trata-se de caso fortuito interno (uma vez que previsível ocorrer na sua atividade), que não elide a responsabilidade desta corré.

Assim, via de regra, caberia a aplicação do artigo 10, da Resolução nº 2.389/2012, da ANTAQ Agência Nacional de Transportes Aquaviários, que regula os custos de armazenagem de carga não embarcada em navio previamente programado, orientando que serão cobrados do responsável pelo atraso. Todavia, não há pedido na inicial neste sentido, restringindo-se o pleito a declaração de nulidade da cobrança da taxa de rolagem.

Todavia, a outra corré prestou os serviços referentes ao depósito e realocação da carga, não podendo ser declarada a nulidade do contrato, por inexistir qualquer vício contratual, sob pena de enriquecimento indevido ao exportador ou, melhor dizendo, do armador (conforme acima exposto). Assim, deve o valor da taxa de rolagem recair sobre quem tinha a responsabilidade, que no caso dos autos era a autora. Entretanto, ela futuramente poderá ser ressarcida por meio de ação de regresso do causador do dano.

Ressalto que a autora celebrou com o adquirente da carga um contrato com a cláusula free on board, que segundo os Incoterms (International Commercial Terms – Termos Internacionais de Comércio), responsabiliza o vendedor pelos custos referentes à carga até o seu embarque.

Assim, referindo-se à cobrança em questão à prestação de serviço antes do embarque da carga, e não havendo responsabilidade pela demora do embarque do terminal de depósito, incumbe à vendedora da mercadoria o seu pagamento. Nesse sentido: “Armazém. Ação declaratória de inexigibilidade de débito. Venda de móveis ao estrangeiro. Transporte marítimo celebrado na modalidade FOB. Atraso no embarque da mercadoria. Ausência de culpa da agente portuária Direito de cobrar pela armazenagem. O contrato de transporte marítimo celebrado pela autora se deu na modalidade FOB, de acordo com a qual o exportador é o responsável pela carga até que esta tenha cruzado a amurada do navio no porto de embarque. Se a autora descarregou cargas no terminal portuário para embarque sob a administração da corré, é certo afirmar que ela lhe prestou serviços que devem ser remunerados em razão da existência de contrato de depósito e movimentação de carga.” (Apelação 1016812-61.2013.8.26.0562 12ª Câmara de Direito Privado Rel. Des. Sandra Galhardo Esteves j. 06.04.2016)”1

Conforme observado na sentença acima, mesmo em se tratando de julgado não tão recente (2018), já entendia o magistrado àquela altura que não recaia qualquer responsabilização sobre o terminal por conta da necessidade da rolagem das cargas para a exportação e o consequente pagamento extraordinário, e segundo a autora inesperado.

Ora, em qualquer processo relativo aos ditames do comércio internacional de mercadorias, é impossível não imaginar que contratempos inesperados poderão ocorrer, provocados por uma infinidade de diferentes variantes. Claro que eventual responsabilização pode e deve ser enfrentada, mas não nos resta dúvidas que na matéria ora sob análise, não cabe transferir tal implicação na figura daquele cujo dever é o de guardar as mercadorias em segurança, conforme orientação das autoridades competentes para que o carregamento e descarregamento das mercadorias aconteça em segurança e de forma oportuna.

Atualmente, o tema está regulamentado pela ANTAQ através da Resolução nº 72, de 30 de março de 2022, como segue:

“A armazenagem adicional e outros serviços prestados às cargas não embarcadas em navio e prazo previamente programados nas rotinas de exportação, bem como aqueles prestados às mercadorias não entregues no prazo devido aos importadores ou consignatários na importação, serão cobrados pela instalação portuária ou pelo operador portuário diretamente ao responsável pelo não embarque das referidas cargas.” 

Em outro julgado monocrático, este já mais recente, do ano de 2021, o mesmo entendimento foi reiterado quando um novo exportador aduzia o não pagamento pela rolagem de mercadorias à exportação para o terminal competente em receber o valor. Neste caso, informava que por se tratar da utilização do Incoterm EXW (Ex Works) os custos de rolagem do navio deveriam ser suportados pela empresa estrangeira, de maneira que os custos inerentes aos trâmites portuários deveriam ser por ela suportados.

Na sentença, em que o magistrado julga a ação improcedente, expõe mais uma vez o entendimento de que a responsabilização pela rolagem de mercadorias à exportação não pode ocorrer pelo simples fato de não ter sido prevista anteriormente pela parte envolvida. Evidenciou em sua deliberação:

“O Incoterm “EXW” significa que o vendedor (no caso a autora) se limita a colocar a mercadoria à disposição do comprador no seu domicílio, no prazo estabelecido, não se responsabilizando pelo desembaraço para exportação nem pelo carregamento da mercadoria em qualquer veículo, na forma da Resolução 21, de 07/04/2011 do Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior.

Todavia, se por um lado esta mesma Resolução disciplina para os casos de transporte na modalidade ex works (na origem), que no momento em que a mercadoria foi colocada à disposição do comprador , os custos e as despesas , ficam a cargos deste: por outro lado, há uma exceção a esta regra em virtude de o comprador estrangeiro não dispor de condições legais para providenciar o desembaraço para saída de bens do País, fica subentendido que esta providência é adotada pelo vendedor, sob suas expensas e riscos, no caso da exportação brasileira.

(...) Não se olvidando, ainda, que a ré ostenta a condição de terceira ao contrato, não há, pois, vício algum ao ser cobrado do exportador as referidas despesas de operação portuária e armazenagem. Ressalto que em ação de regresso contra o importador, a requerente poderá se ressarcir dos prejuízos.

É o que basta para o desacolhimento do pedido da ação, e, inversamente, ao acolhimento do pedido da reconvenção.”2

Observa-se nessa decisão a mesma compreensão no sentido de que os gastos realizados com os terminais por conta da rolagem de mercadorias cobradas na exportação não trazem manifesta nenhuma ilegalidade a ser contestada.

Ainda no mesmo sentido, os Tribunais Recursais já se manifestaram em concordância com as sentenças de primeiro grau:

“APELAÇÃO – Ação declaratória de inexigibilidade de débito c.c. pedido de tutela antecipada – Transporte marítimo de cabotagem - Serviço de armazenamento de contêineres – Sentença de procedência que reconhece a inexigibilidade dos valores cobrados pela ré pelos serviços prestados durante paralisação dos caminhoneiros – Insurgência da ré. PRELIMINAR -Ilegitimidade passiva – Incorrência – Ré titular das cobranças questionadas – Documentos que comprovam ser a empresa pertencente a um mesmo grupo econômico – Inexistência de prejuízos à apelante no desenvolvimento de sua defesa – Preliminar afastada. TRANSPORTE MARÍTIMO DE CABOTAGEM – Operador portuário – Cobrança de estadia de contêineres que se difere da taxa de demurrage (sobre-estadia), de natureza indenizatória, não sendo esse o caso dos autos – Prestação de serviços de armazenamento pelo operador portuário – “Paralisação dos caminhoneiros”, movimento grevista de grande repercussão que, no entanto, não pode ser considerado caso fortuito ou força maior – Risco da própria atividade explorada pela autora – Fortuito interno-caracterização – Precedentes desse E. TJSP – Cobrança legítima – Sentença de procedência reformada para improcedência – RECURSO PROVIDO.3

Ante os julgados demonstrados anteriormente, nos parece que os tribunais compartilham da mesma opinião de que o fato de haver rolagem das mercadorias no pátio dos armazéns de mercadorias, e a consequente cobrança do serviço (que não é contemplado pelo Código de Defesa do Consumidor – CDC, já determinado por julgado do STJ, pois se trata de relação entre empresas)[iv], esta não deve ser mitigada por parte daquele que tem o dever de efetuar o pagamento, alegando caso fortuito, força maior, parametrização inesperada (como ocorre quando a mercadoria é encaminhada para o canal vermelho), vez que é da natureza do processo do comércio que as presentes situações venham a acontecer e alegar o não pagamento seria desnaturar a função dos terminais.

___________ 

* Carolina Daltoé é advogada e atua no contencioso cível do escritório Sammarco

*José Urbano Cavalini Jr. é advogado e atua no contencioso cível e regulatório do escritório Sammarco

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1 Processo Digital nº 1001050-80.2018.8.26.0562, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Comarca de Santos.

2 Processo Digital nº 1005568-28.2020.8.26.0309, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Comarca de Santos.

3 Apelação Cível nº 1012467-30.2018.8.26.05.62, relator Lavínio Donizetti Paschoalão, julgado em 24/03/2021.

4 Resp 1599042/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 14/03/2017, DJe 09/05/2017.

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Lucas Leite Marques é sócio do escritório Kincaid Mendes Vianna Advogados com especialização em Direito Marítimo, Portuário e Internacional. Graduado em Direito pela PUC/Rio). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela UCAM/IAVM, LL.M em Transnational Commercial Practice pela Lazarski University (CILS). Professor de Direito Marítimo da FGV/RJ e de cursos junto à Maritime Law Academy, Instituto Navigare, PUC/RJ, entre outros. Diretor da vice-presidência de Direito Marítimo e Portuário do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem - CBMA.

Luis Cláudio Furtado Faria sócio da área contenciosa do escritório Pinheiro Neto Advogados. Formado em Direito pela UERJ.Mestre em Direito Civil pela UERJ e possui LLM em International Commercial and Corporate Law pelo Queen Mary College, da Universidade de Londres. Fez estágio na Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional – CCI em Paris. Atuou como advogado estrangeiro nos escritórios Herbert Smith e Reed Smith, ambos em Londres, entre 2011 e 2012.

Marcelo Sammarco é mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela Universidade Metropolitana de Santos. Graduado em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos. Advogado com atuação no Direito Marítimo, Aéreo, Portuário e Regulatório. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo e Portuário da UNISANTOS. Professor convidado do curso de pós-graduação em Direito Marítimo da Maritime Law Academy. Vice-presidente da ABDM - Associação Brasileira de Direito Marítimo. Presidente da Comissão de Marketing do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Árbitro do CBAM – Centro Brasileiro de Arbitragem Marítima. Sócio do escritório Sammarco Advogados.

Sérgio Ferrari é professor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Professor convidado do FGV Law Program. Pesquisador Visitante do Instituto do Federalismo da Universidade de Freiburg, Suíça, de 2013 a 2014. Professor convidado da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) de 2011 a 2013. Doutor e mestre em Direito Público pela UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Sócio do escritório Terra Tavares Ferrari Elias Rosa Advogados.