Migalhas Notariais e Registrais

Quem nos lê? Quem nos lerá? - Seção "Tudo é verdade e dou fé"

A caneta reconhece o bom escriba e a ele se dobra, dócil e gentilmente. Aprendi num velho cartório que a caligrafia nos torna homens muito melhores.

20/12/2023

Os velhos cartórios eram feitos à imagem e semelhança dos escritórios de mosteiros medievais. Dobrados sobre estações de carvalho, dispostas numa grande sala, deitávamos os pesados livros de registro sobre as escrivaninhas e neles inscrevíamos lentamente os títulos protocolados.

O tempo corria vagarosamente, como o pôr do sol sob as persianas do velho casarão do cartório. Diante de nossos olhos atentos passavam inventários, partilhas, hipotecas, penhoras, arrestos, arrematações... Quantos dramas humanos nos revelavam, quantas alegrias e tristezas, tantas chegadas, tantas partidas... lances da vida representados em rios de símbolos e de sentidos. Sentíamo-nos partícipes da grande família humana, retratávamos os lances do destino inscrevendo-os nos pesados livros de registro.

Cabia-nos recolher e coligir escrupulosamente os elementos de transcendência real para plasmar os atos de registro. Não se enganem, senhoras e senhores, o registro era um ato de criação. Não se pense que os antigos livros eram de mera transcrição, cópia literal, verbo ad verbum, das escrituras públicas. Nunca fomos meros amanuenses; realizávamos transcrições das transmissões, não reproduções literais de títulos e documentos. Éramos de certa forma livres, mas sempre advertidos pela tradição e pelo decano do ofício: "a liberdade é consentimento numa ordem". Lavrávamos os atos de modo pessoal, mas em estrita observância aos ditames da praxe multissecular. Sou capaz, ainda hoje, de reconhecer o estilo pessoal de cada um: a elegante caligrafia do Sr. Andrônico, a escrita robusta e precisa do Bepo, elas desfilavam garbosamente em contraste com os garranchos do Bodão.

Às vezes nos distraíamos junto à pia do scriptorium, desmontando e lavando a caneta tinteiro. A tinta se esvaía na água corrente e carregava consigo nossas angústias e tristezas. Outras vezes, substituíamos a pena cansada e viciada, deixando que o profundo azul-royal da tinta Quink tingisse os dedos. Depois de tudo, era preciso desbastá-la, buscando o exato eixo para que deslizasse suavemente sobre o papel. As penas, assim como os escreventes, se tornam melhores com a lavratura diuturna.

A caneta reconhece o bom escriba e a ele se dobra, dócil e gentilmente. Aprendi num velho cartório que a caligrafia nos torna homens muito melhores.

Outras vezes nos dedicávamos à árdua tarefa de decifrar a escrita irregular de um velho escrevente alcoólatra. Era preciso adivinhar o sentido do texto a partir dos garranchos e garatujas que se tornavam tanto mais esotéricos quanto mais avançada era a hora do dia. Pelas manhãs, sua letrinha serifada era nítida e elegante; já no começo da tarde, porém, com o raciocínio enturvado pelo álcool, o velho escriba derrapava, transbordava as margens tracejadas de linhas e colunas rubras e avançava sobre os vastos domínios que se acham à margem – o território livre das averbações. Hic sunt leones! O velho escrevente, no meio da tarde, já não se sustentava e esboroava feito um meteoro torpe sobre o livro.

Ingressei no nobile officium ainda muito jovem. Inscrevi, transcrevi, averbei… lavrei a verba elegante da praxe cartorária em livros de registros manuscritos. Tenho dito aos meus colegas de ofício: "vivemos uma espécie de crepúsculo do ofício registral". Isto dizemos para nós mesmos, velhos escribas, e rimos, rimos feito crianças. "Tudo o que no mundo existe começa e acaba num livro", todos sabemos – especialmente nós outros, os escribas, que lavramos a nota inaugural e final da sinfonia inacabada dos homens.

Quem nos lê, quem ainda nos lerá? Haverá quem nos compreenda essencialmente? Ou seremos tragados e traduzidos por uma máquina? A lavra perita que encarna o espírito do tempo (e de certo modo o traduz) é varrida pelo vento, como as folhas secas no quintal. É tão lindo e triste o ocaso. Todo o referido é verdade e dou fé.

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Coordenação

Carlos E. Elias de Oliveira é professor de Direito Civil e Direito Notarial e de Registral em diversas instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário. Advogado, parecerista e árbitro. Ex-advogado da AGU. Ex-assessor de ministro STJ. Doutor, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro.

Flauzilino Araújo dos Santos, 1º Oficial de Registro de Imóveis da Comarca de SP e presidente do Operador do Sistema de Registro de Imóveis Eletrônico (ONR). Diretor de Tecnologia do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB. Licenciado em Estudos Sociais, bacharelado em Direito e em Teologia e mestrado em Direito Civil. Autor de livros e de artigos de Direito publicados em revistas especializadas. Integra, atualmente, a Comissão de Concurso Público para outorga de Delegações de Notas e de Registro do Estado de Alagoas, realizado pelo CNJ.

Hercules Alexandre da Costa Benício, doutor e mestre em Direito pela Universidade de Brasília. É tabelião titular do Cartório do 1º Ofício do Núcleo Bandeirante/DF; presidente do Colégio Notarial do Brasil - Seção do Distrito Federal e acadêmico ocupante da Cadeira nº 12 da Academia Notarial Brasileira. Foi Procurador da Fazenda Nacional com atuação no Distrito Federal.

Ivan Jacopetti do Lago, diretor de Relações Internacionais e Coordenador Editorial do IRIB. Bacharel, mestre e doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Pós-graduado pelo CeNOR - Centro de Estudos Notariais e Registrais da Universidade de Coimbra e pela Universidade Autónoma de Madri (Cadri 2015). 4º Oficial de Registro de Imóveis de SP.

Izaías G. Ferro Júnior é oficial de Registro de Imóveis, Civil das Pessoas Naturais e Jurídicas e de Títulos e Documentos da Comarca de Pirapozinho/SP. Mestre em Direito pela EPD - Escola Paulista de Direito. Doutorando em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo - FADISP. Professor de graduação e pós-graduação em Direito Civil e Registral em diversas universidades e cursos preparatórios.

Sérgio Jacomino é presidente do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil (IRIB) nos anos 2002/2004, 2005/2006, 2017/2018 e 2019/2020. Doutor em Direito Civil pela UNESP (2005) e especialista em Direito Registral Imobiliário pela Universidade de Córdoba, Espanha. Membro honorário do CeNoR - Centro de Estudos Notariais e Registais da Universidade de Coimbra e Quinto Oficial de Registro de Imóveis da cidade de SP.