Olhar Constitucional

Tribunais constitucionais como cristais

Tribunais constitucionais como cristais.

2/7/2020

Tribunais constitucionais podem ser frágeis como cristais. E porque valiosos, é preciso ter sabedoria para identificar a melhor maneira de conservá-los. Embora muito se fale em ataques ao STF, pesquisas demonstram que, entre 1985 e 2008, o Brasil era o país onde juízes e tribunais sofriam menos ataques em toda a América Latina.

Cerca de 11 ataques eram desferidos contra o Poder Judiciário dos países vizinhos, a cada 5 anos, a partir de 1995. Por exemplo, em 1997, o Tribunal Constitucional do Peru tentou impedir o terceiro mandato de Fujimori. O preço foi o impeachment de quase metade dos seus juízes (3/7). Em 1999, Hugo Chávez dissolveu a Suprema Corte da Venezuela e a substituiu por outro tribunal. Em 2004, Chávez captura esse novo tribunal, acrescentando 12 juízes leais ao seu governo1. Apesar da frequência desses incidentes em países da América Latina, o gráfico elaborado por Helmke & Staton ilustra que o Brasil definitivamente não era um campo fértil para ataques a juízes2:

Enquanto o Judiciário latino-americano era sistematicamente atacado de um modo geral, ataques ao STF eram absolutamente escassos da Corte Moreira Alves (1985-1987) à Corte Ellen Gracie (2006-2008).

Os primeiros registros de ataques ao STF, após a Constituição de 1988, envolvem as bravatas de Antônio Carlos Magalhães. Em 1999, o Senado instaurou a CPI dos Bancos e determinou a quebra dos sigilos bancário e fiscal do ex-presidente do Banco Central. Porém, o ministro Sepúlveda Pertence suspendeu liminarmente a medida, o que desencadeou uma crise entre Legislativo e Judiciário.

Como presidente do Senado, Antônio Carlos Magalhães saiu em defesa das prerrogativas da Casa Parlamentar, classificando a decisão do STF como "crime"3. Carlos Velloso, por sua vez, saiu em socorro do tribunal. Ambos trocaram ofensas muito graves, de maneira reiterada, sempre publicando na imprensa as insinuações e hostilidades. Em um dado momento, ACM chegou a fazer a ameaça de que apresentaria uma proposta de emenda à Constituição para reduzir os poderes do STF, caso não houvesse retratação quanto à decisão liminar. Preocupado, Fernando Henrique Cardoso, então presidente da República, arbitrou o conflito entre os Poderes. FHC telefonou para os envolvidos e buscou a interlocução de caciques do PFL para dissuadir ACM. Aliás, o próprio presidente do STF pediu a intervenção do Presidente da República para encerrar a crise instaurada, pedido este que levou o Presidente do Senado a uma provocação desafiadora e infame: "engraçado que ele (Velloso) queira manifestação do presidente Fernando Henrique, já que o poder dele é independente. Vedetismo é bom em palco e não no Supremo"4.

Este era o pesadelo do STF nos anos 90: a incontinência verbal de autoridades públicas inconformadas. Desacordos desse tipo escandalizavam a comunidade jurídica e o país. Nada comparável aos dias de hoje. Mas um sinal amarelo já sinalizava os riscos de uma jurisdição constitucional pouco comedida. A noite chega lentamente. Entre o amanhecer e o anoitecer, há fases intermediárias. Antes da Corte de Toffoli (2018-2020), período marcado por um virulento backlash, muitos sinais e prenúncios já se manifestavam. Isso pode ser colhido de uma fonte até então negligenciada por muitos pesquisadores: a análise de décadas de discursos parlamentares.

Em 2001, pouco depois do incidente entre ACM e Carlos Velloso, uma decisão liminarmente concedida pelo STF interferiu em um ato da Mesa da Câmara dos Deputados. Na ocasião, o deputado Federal José Lourenço (PMDB – BA) foi à tribuna: "O STF que tome conta dos seus problemas. Dos problemas internos desta Casa cuida V.Exa. Sr. Presidente, os Ministros do STF precisam repensar suas posições, porque o Congresso não é filial do Supremo, muito menos subalterno de suas decisões"5. – Grifo nosso.

Em 2005, a mesma razão levou o deputado Edinho Bez (PMDB-SC) à tribuna: "É gravíssima a maneira como o STF vem interferindo no Poder Legislativo. [...] Não é possível continuar assim. A crise política pode, certamente, culminar numa profunda crise institucional. [...] A interferência exacerbada do STF no Legislativo acaba [...] nos levando a crer que aquela máxima Corte está servindo de órgão revisor dos nossos atos aqui no Congresso. [...]devemos propor emenda constitucional que altere a forma de indicação dos Ministros do STF"6. – Grifo nosso.

As muitas palavras proferidas pelo parlamentar soaram como um vaticínio. Inclusive, quando alertou: "O STF [...] vem perdendo credibilidade perante esta Casa e junto à população. [...] já estamos no nosso limite". Um sinal sintomático de que algo estava errado, mas, há 15 anos, ainda pareciam palavras lançadas ao vento. A verdade é que, mesmo sem dons premonitórios, o parlamentar antecipou o destino do tribunal. Consoante os resultados obtidos em uma pesquisa desenvolvida pela Fundação Getúlio Vargas7, que mediu o Índice de Confiança na Justiça Brasileira (ICJBrasil), o Poder Judiciário desfrutava de apenas 29% da confiança da população no primeiro semestre de 2016. Entre os anos de 2013 e 2017, a queda foi de 34% para 24%.

Em 2012, o deputado Francisco Eurico da Silva (PSB-PE) sentiu-se aviltado pelo julgamento sobre a infidelidade partidária: "Da forma que o STF julgou, demonstrou que o Parlamento é um quintal, um terreno baldio da Praça dos Três Poderes, pois não permitiu que o Congresso decidisse a favor ou contra a matéria. Enfim, isso está acontecendo com todos os temas polêmicos"8. Percebe-se que o parlamentar se ressentia pela crescente judicialização da Política, fenômeno que teve início no começo do século XXI.

Em 2013, o mesmo dilema fez com que o deputado Danilo Forte (PMDB-CE) se manifestasse nos átrios da Câmara: "Ano passado, expressei nesta tribuna minha preocupação com a hipertrofia do Executivo, [...] Agora, [...] nossas preocupações se voltam para o outro lado da Praça dos Três Poderes: o Poder Judiciário, representado por sua máxima instância, que é o STF. [...] Esta é uma preocupação que nos inquieta há algum tempo [...] Recorrentemente o STF vem fustigando esta Casa [...] Em março fomos surpreendidos com mais um grave açoite vindo da tirania suprema". – Grifo nosso.

Em 2016, o senador Renan Calheiros foi mais longe. Recusou-se a cumprir a decisão do STF que o afastava liminarmente da Presidência do Senado (ADPF 402), inaugurando um ato de desobediência institucional. Simplesmente, o senador não recebeu o oficial de justiça do tribunal, um gesto do mais alto significado nessa escalada de tensão entre Legislativo e Judiciário.

No ano de 2017, após descrever uma pretensa apostasia constitucional no que concerne à decisão de afastamento do parlamentar Aécio Neves, o deputado Alberto Fraga (DEM-DF) concitou os parlamentares a uma reação: "o Senado se acovardou. Vai permitir que o STF continue inventando normas jurídicas [...] Aqueles que são encarregados de zelar pela Constituição brasileira estão fazendo exatamente o contrário. O STF não existe para mudar a Constituição. O STF existe para ser o guardião da Constituição. [...] Esta Casa possui muitos Parlamentares que têm conhecimento jurídico e sabem perfeitamente que isso não é possível, não pode perdurar, mas não têm coragem de enfrentar outro Poder, que a todo o instante se sobrepõe a nós e nos ataca [...]. Por isso, [...] expresso a minha mágoa, porque esta Casa não se impõe"9. – Grifo nosso.

Em 2018, já havia anoitecido há algum tempo. O deputado Bonifácio de Andrada (PSDB-MG), suspeitando de uma apostasia constitucional, revelou que alguns parlamentares pretendiam o impeachment dos ministros do STF: "qualquer aluno no primeiro ano de faculdade de Direito - sabe muito bem [...] estamos assistindo [...] a um espetáculo de ilegalidade, de inconstitucionalidade, de desrespeito à Carta Magna por parte do STF. Mas esses episódios são antigos. [...] Nós não podemos, Sr. Presidente, ficar nesse marasmo! [...] Deputado Flávio Marcílio, que foi Presidente desta Casa. [...] saiu [...] indignado[...]. Foi ao Supremo pessoalmente[...] e falou que a Câmara tomaria providências graves contra o Supremo Tribunal, inclusive poderia, se quisesse, realizar aqui o processo de impeachment, porque os Ministros do Supremo [...] estão sujeitos [...] ao impeachment [...]". - Grifo nosso.

Seria muito fácil prosseguir com mais exemplos, mas também fastidioso. De um modo geral, os parlamentares reivindicavam aquilo que Jeremy Waldron chama de legislação como um modo de governança dignificado e uma fonte de direito a ser respeitada10.

Bem se vê, já faz décadas que o Parlamento, caixa de ressonância da sociedade, está possuído por um crescente espírito de revolta e permeado por discursos hostis ao STF. Nesse estado de coisas, era previsível que, um dia, as ruas fossem ocupadas por manifestantes que reproduzem as mesmas ideias – boas ou más, certas ou erradas - vocalizadas pelos seus mandatários.

Para piorar o cenário, hoje já não é apenas o Legislativo que se ressente pelo ativismo judicial. O mesmo discurso que há anos faz eco no Parlamento atualmente também se faz ouvir do Palácio do Planalto. Portanto, tem-se uma diferença significativa: ao contrário do que ocorreu entre ACM e Carlos Velloso, desta vez não há um árbitro para o conflito. O próprio árbitro entrou no conflito.

A Corte de Fux se avizinha e, mesmo sem ser consulente, já tem seus pretensos (Antônios) conselheiros. Neste cenário caótico de ataques e incertezas empíricas, que caracteriza uma Guerra Fria interinstitucional, Cláudio Pereira de Souza Neto sugere aos ministros que afundem o pé no acelerador11. Ao Tribunal que cria crimes (ADO 26), julga crimes (CF/88) e investiga crimes (INQ 4781), às vezes proibindo reportagens jornalísticas de revistas, talvez seja melhor buscar a companhia de Jeremy Waldron. Afinal, tribunais constitucionais podem ser frágeis como cristais.

Sinto que precisamos conversar mais sobre isso. É de bom alvitre.

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1 LEVITSKY, Steven. ZIBLATT, Daniel. How Democracies Die: What History Reveals About Our Future. Penguin Books, 2019. pp. 80-81.

2 HELMKE, Gretchen. STATON, Jeffrey K. The Puzzling Judicial Politics of Latin America, 2011. pp. 306-331. Cambridge University Press. In: Courts in Latin America. Edited by Gretchen Helmke, Julio Rios-Figueroa. p. 310.

3 Folha de São Paulo, 19 de Junho de 1999. Choque Entre Poderes. ACM associa Velloso ao Regime Militar.

4 ACM retoma ataques contra o ministro Carlos Velloso. Disponível aqui.

5 Sessão 250.3.51.O, 28/11/2001.

6 Sessão 315.3.52.O, 29/11/2005.

7 FGV Direito SP, Relatório ICJ Brasil, 1º Semestre/2016. pp. 11-15.

8 Sessão 175.2.54.O, 25/6/2012.

9 Sessão 288.3.55.O, 04/10/2017.

10 WALDRON, Jeremy. The Dignity of Legislation. Cambridge University Press, 1999. p.2. "legislation [...] as a dignified mode of governance and a respectable source of law".

11 SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Democracia Militante e Função Constitucional Anticíclica. 16/5/2020. Disponível aqui.

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Colunista

Samuel Sales Fonteles é promotor de Justiça no MP/GO. Doutorando em Direito pela UFPR. Ex-assessor Especial na Procuradoria-Geral da República. Visiting Scholar na Stanford Law School (USA). Mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Brasília). Autor de obras jurídicas. Professor. Palestrante. Ex-promotor de Justiça no MP/RO. Ex-defensor público. Twitter: @Samuel_Fonteles