Olhares Interseccionais

"Mamãe, olha o circo!": O olhar inocente de uma criança de ver uma chaga social

A tenda do circo nos revela muitas realidades encobertas e nesse particular, não podemos deixar de considerar a importância do trabalho, mas não qualquer trabalho, do trabalho decente na vida de todas as pessoas.

18/12/2023

Nos caminhos por onde passo, com minhas filhas, gêmeas de dois anos, muitas vezes nos deparamos com circos, que despontam na paisagem pelas suas altas tendas e elas sempre, ao verem, sempre fazem esse comentário "-Mamãe, olha o circo" e completam, dizendo tudo o que já viram por lá: palhaças(os), mágicas(os) artistas, bichos etc.

Outro dia, quando dirigia com elas, através dos vidros fechados, uma delas olha para fora e me diz "- Mamãe, olha o circo!". De pronto me veio a surpresa, afinal, o local era descampado, não havia circo algum. Olho pela janela e vejo, de fato, uma tenda, o tal circo. Que, na verdade, era a precaríssima habitação de um grupo em situação de rua.

Na hora, não tive o que dizer e passados tantos dias, ainda me pego refletindo como explicar àquelas bebês que aquela tenda era uma casa, e não um circo. Ainda não consegui explicar.

A paisagem urbana tem sido consumida, a cada dia, por essas imagens, com as quais convivemos com certa naturalidade. Às vezes, há quem se incomode, por motivos os mais variados, muitos deles por razões pouco dignificantes: porque tiram a beleza da cidade, outros porque acham que se tratam de pessoas que tem suas casas e ficam ali só para ganhar doações, porque são pessoas de outras localidades que vem custeadas pelos políticos da região para não administrar os problemas locais.

Por sua vez, há, sim, as(os)que se compadecem, lamentam, mas outras paisagens e dilemas das suas próprias vidas surgem e logo a paisagem passa. Mas, há os que verdadeiramente, se engajam, que veem aquelas pessoas, porque isso é o que são, para além da aparência e as vê como humanas que são e oferecem ajuda, o que se intensifica com o período natalino. Entretanto, ainda assim a paisagem pouco se altera, ao contrário, a cada ano se amplia.

Dados recentes do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, nos chocam ao apontar que o Distrito Federal tem o maior índice de pessoas em situação de rua do País, com 7.924 pessoas nessas condições  e que, Brasília, a capital federal, em termos proporcionais, é a quarta cidade com maior número de pessoas em condição de rua. Aqui, a cada 3 mil habitantes, uma pessoa encontra-se em situação de rua, sendo seguida pelas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte.

De acordo com os dados do Cadastro Único, de dezembro de 2022, o perfil da população em situação de rua é majoritariamente masculino (87%), adulto, na faixa de 30 a 49 anos (55%), e no critério raça/cor 68% dessas pessoas são negras, sendo 51% parda e 17% preta. Nada disso surpreende, a cor é a primeira que se destaca e, ao mesmo tempo, gera menos empatia.

Os números mostram que 90% das pessoas em condições de rua sabe ler e escrever e 68% já teve emprego com carteira assinada. Nos estados da Bahia e Amazonas, 93% das pessoas em situação de rua são negras.

A pesquisa também se debruçou sobre a condição da população indígena em situação de rua, a qual representa 0,2% no país, e é no Pará que o maior percentual é encontrado 0,9%. Em se tratando de pessoas com deficiência, identificou-se o percentual de 15%, sendo que 47% das pessoas em condição de rua tem deficiência física, 16% deficiência visual e 18% se relacionam a transtornos mentais1.

A pesquisa destacou ainda três pontos que merecem destaque: o local de nascimento, a situação familiar e o trabalho. Em relação ao local de nascimento, 37% nasceram no município em que vivem em condição de rua, enquanto 59% provém de outras localidades e 4% são de outro país.

A maioria das pessoas em situação de rua não vive com suas famílias na rua, o que soma 92%, aliás, 61% não vive com suas famílias ou quase nunca tem contato com familiares.

Por derradeiro, sobre o trabalho, constatou-se que a principal forma de auferir renda é como catadora/catador.

Os dados sobre o trabalho apontaram que 68% das pessoas em condição de rua já tiveram trabalho com carteira assinada, o que demonstra a ampla vulnerabilidade da condição das “pessoas que vivem do trabalho”, no dizer de Ricardo Antunes, de que qualquer oscilação socioeconômica, da política empresarial com sua automação, as modificações legislativas que restringem direitos são um caminho que conduzem a vias com poucas saídas, duas delas se destacam: a marginalidade e a miserabilidade.

A tenda do circo nos revela muitas realidades encobertas e nesse particular, não podemos deixar de considerar a importância do trabalho, mas não qualquer trabalho, do trabalho decente na vida de todas as pessoas.

Neste contexto, convém resgatar um fato histórico de que o portão de entrada do edifício da Organização Internacional do Trabalho é composto de três chaves, pela simbologia que representa. As portas da Organização Internacional do Trabalho somente se abrem quando conectadas ao mesmo tempo três chaves: uma que representa o governo; a outra, o empresariado e a terceira, os trabalhadores. Essa conjunção revela que sem o empenho conjugado desses três pilares não é possível a promoção da justiça social, que não é, nem pode ser apenas uma mera declaração, pois os impactos na sociedade são visíveis na paisagem, pela quantidade de pessoas em condição de rua e miséria, bem como os excedentes da população carcerária, dois dos poucos caminhos àqueles a quem o trabalho decente não é uma possibilidade.

Toda e qualquer política pública governamental, inclusive as judiciárias, não pode descurar que  trabalho decente retrata a ante sala que resguarda o ser humano da exploração, da miséria e da marginalidade, o que é ilustrado pela máxima trazida pelo Juiz do Trabalho Jonatas Andrade, de que o trabalho decente é uma porta comunicante e deve estar em interação com assuntos afetos à infância, à violência e ao cárcere, afinal, é o trabalho decente a ferramenta apta a reparar os inúmeros problemas sociais existentes, pois, sem ele não há direitos civis que lhe sustentem.

É imperioso ter consciência da sabedoria constitucional que, em seus princípios destacou a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa como premissas interpretativas e programáticas para que se alcance a sociedade em que todos possam conviver em igualdade, em liberdade, com bem-estar, de forma fraterna, pluralista e sem preconceitos e fundamentalmente, em uma sociedade em que não precisemos desviar o olhar de um semelhante em condição de miserabilidade como mais uma paisagem da cena urbana.

__________

1 ORTIZ, Brenda. DF tem maior percentual de pessoas em situação de rua do Brasil, diz pesquisa do governo federal. Disponível aqui. Acesso em 15 dez.2023.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Colunistas

Aléssia Tuxá Indígena do Povo Tuxá. Defensora Pública do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho sobre Igualdade Étnica da DPE/BA. Mestra em Direito Público pela UFBA; Graduada em Direito pela UEFS.

Camila Garcez advogada, candomblecista, Mestre em Direito Público pela UFBA, sócia do escritório MFG Advogadas Associadas, membro da Comissão Especial de Combate à Intolerância Religiosa OAB/BA.

Charlene da Silva Borges defensora pública Federal titular do 2º Ofício criminal da DPU-BA. Mestranda em Estudos de Gênero e Feminismos pela Universidade Federal da Bahia-NEIM. Ponto focal dos Grupos nacionais de Trabalho: GT Mulheres e GT Políticas Etnorraciais da Defensoria Pública da União. Coordenadora do Departamento e do grupo de estudos de Processo Penal e Feminismos do Instituto Baiano de Direito Processual Penal-IBADPP.

Fábio Francisco Esteves é graduado em Direito pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UNB), doutorando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), especializando em Direito Constitucional pela ABDConst, MBA em PNL e liderança de alto performance, juiz de direito do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT), atualmente exercendo o cargo de juiz instrutor do Gabinete do Ministro Edson Fachin, no STF, professor de Direito Constitucional e de Direito Administrativo da Escola da Magistratura do Distrito Federal, ex-vice-presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), co-fundador do Encontro Nacional de Juízes e Juízas Negros - ENAJUN e do Fórum Nacional de Juízas e Juízes contra o Racismo e Todas as Formas de Discriminação - FONAJURD, co-criador do Projeto Falando Direito para educação em cidadania, Presidente da Comissão Multidisciplinar de Inclusão do TJDFT, membro da Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados para revisão da legislação antirracista, membro da Comissão para Promoção da Igualdade Racional no Processo Eleitoral, do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, foi Presidente da Associação dos Magistrados do Distrito Federal (AMAGIS-DF), nos biênios de 2016/2018 e 2018/2020.

Jonata Wiliam é mestre em Direito Público (UFBA). Especialista em Ciências Criminais (UCSAL/BA). Diretor Executivo do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP). Presidente da Comissão da Advocacia Negra da OAB/BA. Professor na Faculdade de Direito da Fundação Visconde de Cairu/BA. Advogado criminalista.

Lívia Sant'Anna Vaz promotora de Justiça do MP/BA; mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia; doutoranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do Ministério Público do Estado da Bahia. Coordenadora do Grupo de Trabalho de Enfrentamento ao Racismo e Respeito à Diversidade Étnica e Cultural (GT-4), da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do Conselho Nacional do Ministério Público. Indicada ao Most Influential People of African Descent – Law & Justice Edition. Prêmios: Comenda Maria Quitéria (Câmara Municipal de Salvador); Conselho Nacional do Ministério Público 2019 (pelo Aplicativo Mapa do Racismo).

Marco Adriano Ramos Fonseca Juiz de Direito Coordenador do Comitê de Diversidade do TJ/MA. 1° Vice-presidente da AMMA. Mestre em Direito - UFMA.

Saulo Mattos promotor de Justiça do MP/BA; mestre pela UFBA; mestrando em Razoamento Probatório pela Universidade de Girona/ES; professor de processo penal da pós-graduação em Ciências Criminais da UCSAL; membro do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP).

Vinícius Assumpção sócio do escritório Didier, Sodré e Rosa - Líder do núcleo penal empresarial. Doutorando em Criminologia pela UnB e em Direito pela UFBA. Mestre em Direito Público pela UFBA. Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (Gestão 2021/2022). Professor de Processo Penal. Autor do livro "Pacote Anticrime" e coautor do Livro Introdução aos Fundamentos do Processo Penal.

Wanessa Mendes de Araújo juíza do Trabalho Substituta - TRT da 10ª região; mestra em Direito pelo programa de pós-graduação da UFMG; especialista em Direito e Processo Tributário pela Universidade de Fortaleza; graduada em Direito pela Universidade Federal do Pará; membro da comissão de Tecnologia e Direitos Humanos da Anamatra. Foi professora em curso de graduação e pós-graduação em Direito.