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Admissibilidade dos recursos excepcionais: Peluso estava certo

É preciso pensar-se em alternativas, em reformas que, ou modifiquem o sistema de admissão do recurso, ou que eliminem a existência do recurso aos tribunais superiores, pois, na prática, sua existência é meramente simbólica, já que o acesso à justiça na instância superior é bastante mitigado.

9/9/2019
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Na esteira do que se conhece como jurisprudência defensiva, consistente na prolação de decisões que implicam em óbices formais ao processamento dos recursos para os tribunais superiores, é corriqueiro a invocação de enunciados de súmulas de forma descontextualizada.

Entre aqueles mais citados, nota-se a súmula 7 do STJ que atrai a ideia de que nos recursos não é possível a discussão sobre questão de prova (como se o juízo sobre o mérito e a qualificação jurídica fossem distintos no pensamento humano), bem como a súmula 211, ainda daquele tribunal, que exige o prequestionamento explícito para admissão dos recursos.

Já do STF a súmula 284 é invocada com o propósito de incutir a ideia de que o recurso especial e/ou extraordinário não contém fundamentação suficiente para seu processamento.

Isso não deveria ser assim, porque com o advento do CPC de 2015 e a vinculação dos precedentes, a incidência do verbete sumular exige efetiva demonstração do cotejo entre os fundamentos de similitude, e não apenas a menção genérica, conforme o artigo 489, § 1º deixa claro.

Reza a súmula 284 do STF que: “É inadmissível o recurso extraordinário, quando a deficiência na sua fundamentação não permitir a exata compreensão da controvérsia”.

Mas o que se deve compreender pela deficiência de fundamentação?

Obtempere-se que em momento algum a súmula 284 exige a indicação de dispositivo de lei federal, pois, a contrario sensu, não há necessidade de indicação de dispositivo de lei federal de forma numérica para que haja a compreensão da controvérsia.

Até porque o contrário poderia ser inverídico. Se a súmula 284 do STF se bastasse pela indicação numérica de dispositivo de lei federal ter-se-ia o problema de que a mera transcrição de artigos bastasse para impor o exame do recurso especial e extraordinário dispensando a argumentação. E não se trata nada disso.

Dito de outro modo, a súmula 284 do STF pretende obstar que a parte interponha recurso excepcional (expressão que abrange o recurso especial e o extraordinário) sem coesão, sem adoção de uma linha lógica de argumentação e fundamentação.

Para afastar qualquer dúvida, basta analisarmos a origem da súmula 284 do STF, devendo ser dito, de saída, que o verbete possui mais de 50 anos, tempo suficiente para que fosse compreendido pelas vice-presidências dos Tribunais.

A súmula 284 do STF possui como fundamento somente dois julgados que lhe deram origem, quais sejam: RE 53053 - Publicação: DJ de 01/08/1963 e AI 27480 - Publicação: DJ de 16/11/1962.

Vamos à análise deles. O primeiro, o  RE 53.053 foi relatado pelo eminente ministro Villas Bôas que, curiosamente, votava por conhecer do recurso, por considerá-lo suficientemente fundamentado:

Conheço do recurso que, como disse, está suficientemente fundamentado, para provê-lo, com o decreto de improcedência da ação rescisória (Voto do Relator).

O revisor, ministro Nunes Leal, abriu a divergência, negando seguimento ao recurso, por entender que a petição não estava devidamente fundamentada, em voto que restou acompanhado pelo ministro Hahnemann Guimarães:

O Sr. ministro Victor Nunes Leal – Sr. Presidente, por deficiência da petição de interposição do recurso extraordinário, data venia, não conheço do recurso.

Este foi o primeiro precedente que deu origem a súmula 284 que, como visto, não define resume a deficiência de fundamentação a indicação numérica de dispositivo de lei ou da CF, invocados como violados.

Já no tocante ao segundo precedente que originou a súmula 284, o caso se trata do AI 27.480 que foi relatado pelo eminente ministro Victor Nunes Leal, versando sobre ação de usucapião (lembrando-se que à época o STF concentrava competências na seara do direito federal), que assim votou pela manutenção da negativa de seguimento ao RE, desprovendo o agravo nos autos:

Nego provimento ao agravo pelas razões do despacho recorrido. Não cabia o recurso pela letra a, porque a decisão recorrida foi tomada à luz das provas. Também não houve dissídio de julgados, porque nessa parte, comprovou-se que o recorrente transcreveu adulteradamente trecho do acórdão recorrido. Quanto à matéria do agravo nos autos, ficou o recurso sem fundamentação (Voto do Relator Ministro Victor Nunes Leal).

Indaga-se: Em algum momento o relator menciona a inexistência de indicação de dispositivo legal? O relator aponta a deficiência de fundamentação com base na ausência de indicação de dispositivo de lei? A resposta para as perguntas é, desenganadamente, negativa. Em momento algum os precedentes que deram origem à súmula 284 do STF atrelam a admissão do recurso com a indicação dos dispositivos de lei ou da Constituição.

Nota-se que no caso enfrentado pelo ministro Nunes Leal a deficiência da fundamentação tem origem na adulteração do acórdão realizado propositadamente pela parte, de modo que, sem a parte falseada da motivação, o recurso restou deficiente, isto é, sem nada que o sustentasse.

Nesse compasso, é preciso repensar novamente a função dos tribunais superiores, bem como o filtro de admissibilidade exercido pelos Tribunais locais, já que o jurisdicionado tem o trânsito do seu recurso evitado efusivamente.

O ministro aposentado do STF, Cezar Peluso, então presidente da Corte, apresentou em 2011 texto que se transformou na proposta de emenda à constituição a fim de modificar o sistema de processamento dos recursos excepcionais, a PEC 15 de 2011 – PEC dos Recursos.

Basicamente a PEC modificava a estrutura de competência do STJ e STF, excluindo o recurso especial e recurso extraordinário do rol de remédios recursais, transformando-os em medidas rescisórias de julgado.

Os efeitos práticos diretos seriam a imediata execução dos julgados de segundo grau, transformando as cortes de justiça verdadeiramente em modelo de corte de cassação como é o modelo adotado por outros sistemas judiciários. O outro efeito seria desafogar a avalanche de recursos que chegam aos tribunais superiores em grande por intuito protelatório.

O que é pior: protelatório ou não, os recursos excepcionais caem na mesma vala de processamento de milhares de recursos, os quais são analisados e despachados, quanto a admissibilidade, não raras as vezes por decisões abstratas que invocam as súmulas defensivas.

Significa dizer, na prática, no atual sistema, o cidadão já não tem acesso aos tribunais superiores, pois apesar do numeral de casos que lá chegam, ínfima parte é apreciada e julgada no mérito.

É preciso pensar-se em alternativas, em reformas que, ou modifiquem o sistema de admissão do recurso, ou que eliminem a existência do recurso aos tribunais superiores, pois, na prática, sua existência é meramente simbólica, já que o acesso à justiça na instância superior é bastante mitigado.

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*Cristiano Quinaia é mestre em Direito Constitucional e advogado do escritório JBM Advogados.

 

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