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A desconsideração da personalidade jurídica na Nova Lei de Licitações

O abuso da personalidade jurídica não se caracteriza pela tentativa de frustrar o recebimento, pelo credor, de uma quantia pecuniária que lhe é devida, tampouco o que se pretende estender tem conteúdo pecuniário.

7/4/2021

Em 1º de abril de 2021, o Presidente da República sancionou a lei 14.133, que “estabelece normas gerais de licitação e contratação para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” (artigo 1º), revogando as leis 8.666/93 (licitações e contratos administrativos), 10.520/02 (pregão) e 12.462/11 (Regime Diferenciado de Contratações Públicas – RDC).1

No seu artigo 155, a lei 14.133/21 elenca infrações administrativas cometidas pelo licitante ou contratado que implicarão a sua responsabilização e, no artigo seguinte, prevê quatro sanções que lhe podem ser aplicadas: advertência, multa, impedimento de licitar ou contratar e declaração de inidoneidade para licitar ou contratar. Em seus parágrafos, o artigo 156 esclarece quando cada uma dessas sanções deverá ser aplicada e os critérios para tanto, bem como, no artigo 158, há a previsão de que, quando se pretender aplicar as sanções de impedimento de licitar ou contratar e de declaração de inidoneidade, deverá haver prévia instauração de processo de responsabilização, cujo procedimento é previsto nos parágrafos desse dispositivo.

Pois bem. O artigo 160 da nova lei previu a possibilidade de extensão dos efeitos dessas sanções a terceiros, mediante a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica2, a qual já vinha sendo aplicada no âmbito das licitações e contratos administrativos, por exemplo, pelo Tribunal de Contas da União3.

Ao contrário do que se deu em outras menções à teoria no ordenamento jurídico brasileiro, como no Código de Defesa do Consumidor, em que se previu, a rigor, a imputação direta de responsabilidade pessoal a terceiros4, e não a desconsideração da personalidade jurídica, a Nova Lei de Licitações de fato trata de aplicação dessa teoria. Pois, ainda que a redação do seu artigo 160 seja passível de inúmeras críticas5, exige a presença de um elemento subjetivo, o “abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos”. Portanto, nesse particular, o dispositivo legal é bastante diferente, por exemplo, do inciso IV do artigo 38 da “Lei das Estatais”, em que o simples fato de o sujeito ser sócio de uma sociedade empresária suspensa, impedida ou declarada inidônea é suficiente (ainda que sem a prática de um ato com objetivo fraudulento) para impedir outra sociedade de que ele seja sócio de participar de licitações e de ser contratada por uma estatal.

Outra observação relevante é que se trata de previsão legal expressa de modalidade da teoria ainda pouco estudada no Brasil, a chamada desconsideração atributiva da personalidade jurídica, em que o abuso da personalidade jurídica não se caracteriza pela tentativa de frustrar o recebimento, pelo credor, de uma quantia pecuniária que lhe é devida, tampouco o que se pretende estender tem conteúdo pecuniário.6 Em outras palavras, o objetivo da nova lei, ao prever a desconsideração, com exceção da sanção prevista no artigo 156, II, não é estender aos terceiros uma obrigação de pagar quantia, mas sim uma advertência, o impedimento de licitar e contratar com a Administração ou a declaração de inidoneidade para tanto.7

O dispositivo também faz menção a hipóteses da chamada desconsideração indireta da personalidade jurídica, ao prever a extensão das sanções “a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado”. Ou seja, a desconsideração pode ser aplicada não apenas para responsabilizar administradores (sócios, ou não), mas também para estender as sanções a outras pessoas jurídicas.

Aliás, o artigo 160 contém uma opção questionável do legislador, ao prever que a extensão das sanções poderá se dar contra os administradores e os sócios com poderes de administração da pessoa jurídica licitante ou contratada. Nota-se que não se optou por aplicar a teoria apenas ao administrador ou sócio que efetivamente contribuiu para a prática do ato que caracterizou o abuso da personalidade jurídica, nos termos, por exemplo, do Enunciado nº 7 da I Jornada de Direito Civil8; optou-se por um critério meramente formal, em que se estende as sanções a administradores e sócios-administradores sem qualquer exigência de que estes tenham de fato contribuído para a prática do ato abusivo e, por outro lado, excluiu-se do alcance do dispositivo legal sócios não-administradores, ainda que estes tenham praticado esse ato.

Finalmente, convém ressaltar um acerto do legislador quanto à redação do artigo 160, ao prever a necessidade de respeito ao contraditório e à ampla defesa, apesar de isso ser depreendido do próprio artigo 5º, LV, da Constituição, o que também indica ser desnecessária a instauração do incidente previsto nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil, para se aplicar o artigo 160 – inclusive ante a difícil compatibilização desse instituto com a lógica do processo administrativo –, bastando que sejam respeitados os referidos direitos fundamentais antes de ocorrer a desconsideração da personalidade jurídica do licitante ou contratado.

__________________

1 Vale esclarecer que, nos termos do artigo 193 da nova lei, somente os artigos 89 a 108 da lei 8.666/93 serão imediatamente por ela revogados (inciso I), ao passo que os demais dispositivos das referidas leis serão revogados somente após decorridos dois anos de sua publicação oficial (inciso II). Durante esses dois anos a Administração poderá optar por licitar ou contratar de acordo com a nova lei ou as referidas leis – sendo vedada a aplicação combinada de ambas –, cuja escolha deverá constar expressamente do edital ou do instrumento de contratação direta (artigo 191).

2 “Art. 160. A personalidade jurídica poderá ser desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, e, nesse caso, todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia.”

3 Tribunal de Contas da União. Plenário. Acórdão 2.252/18. Relator: Bruno Dantas. Julgado em 26 de setembro de 2018. Tribunal de Contas da União. Plenário. Acórdão nº 1.092/2010. Relator: Aroldo Cedraz. Julgado em 19 de maio de 2010.

4 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial: direito de empresa. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, v. 2, p. 74-75.

5 Em respeito às limitações de espaço que o presente artigo apresenta, não serão abordadas algumas dessas possíveis críticas: i) a redação do artigo 160 é extremamente confusa no que tange aos pressupostos para a aplicação da teoria; ii) esse dispositivo legal não esclarece se é cabível, ou não, a desconsideração inversa da personalidade jurídica, apesar de os incisos VIII e IX do artigo 6º da nova lei evidenciarem que o licitante ou contratante também pode ser uma pessoa física; e iii) não está claro quem é o órgão competente para a proceder à desconsideração da personalidade jurídica, se isso se dará no próprio processo de responsabilização previsto no artigo 158, em momento posterior, como outro processo licitatório, por exemplo, ou somente em processo judicial.

6 BIANQUI, Paulo Henrique Torres. Desconsideração judicial da personalidade jurídica pela óptica processual. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-graduação do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2010, p. 42.

7 Isso torna a hipótese de desconsideração da personalidade jurídica prevista na Lei de Licitações bastante peculiar no ordenamento jurídico brasileiro, apesar de não ser inédita e, a princípio, a desconsideração atributiva ter sido a primeira modalidade da teoria aplicada, no caso Bank of the United States v. Deveaux, julgado em 1809, em que a Supreme Court dos Estados Unidos da América adotou, como critério para se definir a competência para julgamento da demanda, o domicílio dos acionistas do banco, em vez da sede deste.

8 “Só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido.”

Rodrigo Cunha Ribas
Advogado. Sócio do Lirani e Ribas Advogados. Pós-graduado em direito processual civil. Autor do livro “Incidente de desconsideração da personalidade jurídica”, publicado pela Juruá Editora.

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