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A ciência processual e o direito de ação em contraste com conceitos ideológicos

Com a crescente influência de ideologias modernas no ideário social, o debate sobre os limites da ordem jurídica é crescente, muitos desses, influenciados por promessas de soluções fáceis na iniciativa privada. Mas o direito não se fundamenta em soluções fáceis, e eis aqui possíveis reflexões.

7/6/2021
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(Imagem: Arte Migalhas)

A ação processual e sua reflexão ontológica levou ao desenvolvimento de discussões que remontam o seu aspectivo descritivo desde o sistema romano de leis. Muitos foram os nomes que deram origem ao debate sobre onde a ação individual se situava no direito, derivado de uma discussão já iniciada desde Antígona, acerca da problemática da moral, ética, justiça e os limites do direito material e natural. Tentava-se enquadrar, posteriormente, o nascimento do direito de ação e seus mecanismos que eram direcionados em face da ordo iuris, e também entender se este dispositivo é parte do aparato legal ou aspecto meramente subjetivo, residindo no indivíduo.

As teorias em pauta não surgiram no período do sistema romanístico, tendo em vista que o fenômeno do Direito Processual é moderno, que de antemão se direcionava os estudos apenas em procedimentos, pois, os juízes nem sempre foram sujeitos às imposições sobre seu procedimento decisório. Diversos nomes tentaram abordar a discussão da ação e do direito processual como direito autônomo, desvinculando da análise estrita do direito material, os iniciantes nessa problemática foram Windscheid e Muther, que se distanciavam onde aquele entendia que a actio (i.e. ação) era o “meio” romano para se alcançar a ius (i.e. justiça), falando sobre dominação de vontade na ação, o que ia de encontro à filosofia de Hegel (MIRANDA, 1937, p.22); enquanto este, acreditava que o direito material era condição fundante para o alçar da actio, onde a ação era apêndice do direito material, relacionando o conceito romano com o conceito moderno e imanetista deste procedimento processual.

Nessa discussão surgem correntes com particularidades diferentes, a de Oskar Bülow tentava estender as ideias de Muther sob uma ótica concretista, de direito “concreto” à tutela jurídica, onde não existe direito de ação anterior ao juízo, teoria que dá ênfase aos “pressupostos processuais”. Esta corrente que teve como base também o Adolf Wach, embora o alemão tenha desvinculado o direito de ação da absoluta derivação do direito material, dizendo ser um direito exercido contra o Estado e o adversário (MIRANDA, 1937, p.117). Outra variante também foi a teoria abstratista, que dizia ser o direito de ação uma condição abstrata de agir do indivíduo, não sendo posto como o texto positivado, com variáveis na doutrina de Couture. 

No Brasil também há um expoente que tentou unificar outras teorias anteriores e entender a preponderância de teorias como a de Bülow e Windscheid, esse jurista foi Pontes de Miranda, que entendia como “Tatbstand” esses procedimentos de suporte fático e volitivo que vão de encontro aos pressupostos processuais para constituir o aspecto inicial da ação processual, que mais tarde foi estabelecido por Pontes conforme a preponderância e frequência dos efeitos que apareciam. Definia o jurista brasileiro, uma relação processual angular1, onde o autor vai até o Estado e declara o que pretende, o Estado acatando a pretensão, convoca o réu (podendo também analisar suas indagações) e inicia-se o procedimento. Neste caso, prova-se que o direito está anexado ao Estado, sendo detentor e assegurador do direito entre os entes processuais, não sendo esse, meramente subjetivo e desvinculado do direito material.

Entretanto, outro nome se situava concomitantemente na Itália, este era Giuseppe Chiovenda, que entendia a ação como direito potestativo e subjetivo (1992, p.75), e mais do que isso, a ação para ele seria autônoma, e não apenas submetida aos pressupostos legais. Pois, nasce com uma vontade do indivíduo em obter a tutela jurisdicional, numa relação indivíduo-indivíduo sob poder de sujeição do Estado, o qual manifesta também suas vontades em executar o texto legal. Sendo um direito potestativo, portanto, atua ad alterum, na esfera de outrem, que toma partida com o elemento volitivo e ingresso da petição com a causa petendi.

Na ótica de Miranda, o posicionamento de Chiovenda pode se assemelhar com vícios de posicionamentos ideológicos ou jurídicos que levantam a bandeira da soberania privada2, alertando, o jurista brasileiro, sobre os perigos desse individualismo para a seara processual. Admitindo Pontes ao confrontar a teoria de outro italiano: Carnelutti, que o reconhecimento do direito subjetivo pode existir a priori, mas que ele só é posto e garantido após o “aval” do direito objetivo, o pode existir anteriormente é uma “titularidade objetiva”, esta sendo dada para alguns entes que sob locais privados ou públicos, exercerem algum controle (v.g guardas, seguranças, funcionário público, etc.). 

Chiovenda usa um exemplo para demonstrar sua teoria, de que a relação processual funcionaria da seguinte forma: pense numa relação de consumo, onde o interessado move-se até um comércio, adquire o que deseja baseado no seu interesse, o que, no entanto, não se assemelha com o interesse do comerciante, que põe seus fins para a sua atividade comercial (CHIOVENDA, 1992, p.84). Para Chiovenda, assim funcionaria a relação entre o Estado e o indivíduo, guiado pela execução da lei, de forma positiva ou negativa.

Nesse ponto, o jurista brasileiro argumenta que impor essa autonomia para o indivíduo de, através do Estado, satisfazer norteadamente o seu interesse, seria danoso para a evolução dos institutos processuais. No sentido de que, é justamente pelo Estado “chamar para si” o julgar sobre conflitos do âmbito social, com tribunais constitucionais que evitem abusos - até para os bens ou demanda do autor -, que reside o fator plural e superior do direito em face da soberania privada (MIRANDA, 2002, p. 52). Mitigando os riscos de uma relação processual injusta, evitando uma possível rivalidade frente ao Estado, ou mesmo ao réu de uma lide, como a doutrina alemã tratou sobre o Klagerecht3 (i.e. direito de reclamação) para denominar o direito de ação como uma tutela jurídica contra o corpo estatal, o que o próprio Windscheid mostrou ser conceito arbitrário e destituído dos mesmos fins da actio romana.

Vale salientar que o corpo estatal é também sujeito atuante e detentor de direito, o que não o faria como mero meio satisfativo entre o autor e o réu, por isso é mister a relação angular que Pontes de Miranda busca relatar, de que o direito subjetivo e seu elemento volitivo na ação processual aqui, é uma “individualização” da posição jurídica, e que a poluição ideológica individualista pode gerar um ato político, vazio de suporte objetivo. Isso porque os atos estatais (ou mesmo dos advogados) também são atos políticos, mas não ideológicos, como versa Piero Calamandrei, o movimento é de diagnose política, coordenando as forças opostas para uma relação mais justa.

O italiano Calamandrei mostra, inclusive, que resguardada as devidas diferenças quanto aos direitos individuais e fundamentais, tal forma de enxergar um “direito livre”, destituído de um sistema legal elaborado pelo Estado, um direito privado em face de “casos isolados”,  foi conduzido por um regime comunista nos anos iniciais da Rússia (CALAMANDREI, 2003, p.78). Regime este, tão demonizado pelos adeptos a um liberalismo mais ferrenho, cujo defendem a soberania privada em todas as associações. Isso porque, como relatado em parágrafo anterior, na definição deste autor, o ato jurídico, seja de elaborar leis ou de advogar, é um ato político, e quando carente de legalidade desde sua gênese, o jurídico e o político funcionam unitariamente, desestabilizando as instituições e tornando-as arbitrárias.

Ipso facto, a ciência processualista como uma forma de solução imperativa4 de conflitos depende, inicialmente, de um fator pré-processual que não resida simplesmente no elemento volito do ingressar da ação. O poder jurídico trazido por Chiovenda, para Pontes não reside previamente no indivíduo, por isso definições atuais ideológicas e puramente individualistas não condizem com a configuração científica posta, e destituída de uma análise mais precisa que tenha enfoque científico, são passíveis de problemas descritivos que lançam olhar apenas em erros políticos, e não na sua solidez teórica e funcionamento prático.  

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1 MIRANDA, Pontes de. Embargos, Prejulgado e Revista no Direito processual brasileiro. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco, 1937, p.22.

2 “A afirmação, ainda recente, de que o direito subjetivo é o comando da lei feito comando do titular (Francesco Carnelutti, Dante Angelotti), escorva o vício individualístico da “soberania privada”, um dos grandes absurdos da época despótica. O absolutismo, morto no nascedouro da lei, mas redivivo no sujeito de direito. Tal aberração chegou (dissemos) ao ponto de se falar em “súditos de direito” do proprietário, do locador de coisas, do credor de dinheiro, como há “súditos do Estado” (MIRANDA, Pontes de. Comentários sobre o Código de Processo Civil - Tomo I: Forense, Rio de Janeiro, 2002,  p.16)

3 CHIOVENDA, 1992, p.80

4 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil: São Paulo, Malheiros, 2003, p.45

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CALAMANDREI, Piero. Estudos de Direito Processual na Itália: Campinas, LZN Editora, 2003.

CHIOVENDA, Giuseppe. Principios de Derecho Procesal Civil: Madrid, Editorial Reus, 1922.

DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil: São Paulo, Malheiros, 2003.

MIRANDA, Pontes de. Comentários sobre o Código de Processo Civil - Tomo I: Forense, Rio de Janeiro, 2002.

MIRANDA, Pontes de. Embargos, Prejulgado e Revista no Direito processual brasileiro. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco, 1937.

Autor

João Lucas D. Azevêdo Graduando em Direito. Coordenador jurídico do Neoiluminismo e Cofundador da Sociedade Gravina de Estudos.

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