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O desafio dos biossimilares e a postura do Ministério da Saúde no Brasil

O biossimilar fruto da PDP entre Bio-Manguinhos e a Bionovis representava 0% das compras totais desse produto em 2018 e em 2019, passando para 100% em 2020.

14/7/2021

(Imagem: Divulgação)

Os biossimilares vêm ganhando cada vez mais participação de mercado mundial. De acordo com o IQVIA Institute for Human Data Science, instituto especializado na análise de dados do mercado de saúde, em 2020, nos EUA, biossimilares à base de bevacizumabe, trastuzumabe e rituximabe chegaram a market shares de 42%, 38% e 20% respectivamente, já no primeiro ano. A expectativa é que atinjam quase 60% ao final do segundo ano1. No Brasil, o aumento da participação também ocorre, ainda que em razão de uma dinâmica própria do país: por meio das compras de medicamento no âmbito do Sistema Único de Saúde (“SUS”), em especial, do programa das Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (“PDP”). 

A análise das compras do Ministério da Saúde (“MS”) de produtos à base de etanercepte, por exemplo, indica que o biossimilar fruto da PDP entre Bio-Manguinhos e a Bionovis representava 0% das compras totais desse produto em 2018, passando para 53,86% em 2019 e para 100% em 20202. O mesmo também ocorreu com os produtos à base de rituximabe. O biossimilar fruto da PDP entre Bio-Manguinhos e a Bionovis representava 0% das compras totais desse produto em 2018 e em 2019, passando para 100% em 20203. 

O presente artigo traz um breve panorama da evolução da postura do MS acerca dos biossimilares e sua possível intercambialidade. Se a postura, antes de 2018, era de pouca interferência no tema, hoje se identificou que o MS vem adotando papel mais ativo para desenvolvimento técnico em torno do debate. 

A compra pública de medicamentos biológicos necessariamente passa pelo tema da sua (inexistente) intercambialidade. Se a questão é pacífica em relação aos medicamentos sintéticos – em função da sua previsão legal (art. 3º, XXI a XXIII, da lei 6.360/76) e da consequente exigência de as compras no SUS serem feitas a partir da identificação do seu princípio ativo (Lei 9.787/99, art. 3º) – o tema ainda é controverso em relação aos biológicos. A complexidade das suas estruturas moleculares impede que produtos de fabricantes diferentes possuam princípios ativos biológicos idênticos entre si, o que gera implicações práticas. 

Em um caso concreto, a ANVISA não aprovou o Vivaxxia (biossimilar à base de rituximabe, da Libbs) para todas as quatro indicações terapêuticas do biológico original Mabthera, da Roche, mas somente para duas4, por entender que os dados apresentados não seriam suficientes para fundamentar a extrapolação das indicações5. Essa é uma ilustração do gargalo da intercambialidade: como é que medicamentos biológicos que sequer estão aprovados para as mesmas indicações podem ser intercambiáveis entre si? 

Natural que diante desse cenário não haja uma previsão legal ou regulatória estabelecendo a intercambialidade de medicamentos biológicos. Por meio da Nota de Esclarecimento nº 3/2017, a Gerência de Avaliação de Produtos Biológicos da ANVISA6 se manifestou formalmente no sentido de que a intercambialidade dos medicamentos biológicos está mais relacionada à prática clínica (decisão do médico diante do caso concreto) do que a um status regulatório automaticamente concedido. Os estudos exigidos atualmente pela regulação para o registro de biossimilares não poderiam subsidiar decisões técnicas a esse respeito.

Nos EUA, a regulação americana do FDA exige estudos similares para a aprovação de um biossimilar e só confere o status de produto intercambiável7 se o produto for objeto de estudos adicionais. Tais estudos adicionais devem ser realizados especificamente para esse fim, para avaliar se os riscos decorrentes da troca ou alternância entre o produto originador e o candidato a intercambiável não são maiores do que os riscos com o uso exclusivo do produto originador8. Até o momento, apesar de o FDA já ter aprovado 29 biossimilares, nenhum deles possui o status de intercambiável9

No Brasil a atuação do MS na aquisição desses produtos para distribuição no SUS vem contribuindo para a prática de uma intercambialidade forçada, por meio de uma análise evolutiva do tema. Em 2013, em razão das PDPs, a postura do MS era adquirir via dispensa de licitação diversos biossimilares para atendimento de 100% da sua demanda para os produtos objeto de PDPs10. O tema da intercambialidade não era diretamente enfrentado no programa, muito por conta da aquisição exclusiva via PDP.

Outro posicionamento do MS, no sentido de não lidar diretamente com o tema, pode ser extraído do Pregão nº 5/2019, para registro de preço de medicamento à base de trastuzumabe. Nessa oportunidade, o MS se manifestou no sentido de que caberia à ANVISA (e não ao MS) avaliar a eficácia e segurança do biossimilar, quando comparado com o produto comparador, cabendo-lhe tão somente observar as regras de licitações11.

Ricardo Campello
Advogado associado do escritório Licks Attorneys.

Paula Carvalho
Advogada do Licks Attorneys.

Natália Toledo
Advogada do Licks Attorneys.

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