O princípio da boa-fé objetiva é composto de três funções, ora (i) interpretativa, (ii) limitadora do exercício de direitos e (iii) criadora de deveres anexos; devendo serem respeitadas tanto na fase pré-contratual, contratual e pós-contratual; constituindo uma forma de agir socialmente e contratualmente, através de um comportamento ético, leal, honesto e reto.
1. A função interpretativa da boa-fé objetiva estabelecida no art. 1131 do Código Civil caracteriza-se por uma técnica hermenêutica de interpretação das relações econômicas sociais, a fim de se buscar a razão do negócio jurídico buscado pelas partes contratantes, ou seja, a razoável negociação sobre eventual situação em discussão, fundamentando-se a interpretação na realidade econômica, comportamento posterior, boa-fé e observância do todo à celebração e tipo do negócio jurídico.
Um exemplo bem interessante da função interpretativa da boa-fé encontra-se no Resp 1.259.628-SE, o qual aborda sobre o pagamento de indenização securitária, ou seja, se a configuração da invalidez permanente e total por doença se dá somente às atividades específicas ou para qualquer outra atividade laboral. No presente exemplo em estudo, o autor recorrente, soldado do Exército Brasileiro, contratou com a Bradesco Vida e Previdência S/A um seguro de vida em grupo específico para militares, através da Fundação Habitacional do Exército, o qual previa uma indenização por enfermidade no caso de invalidez total e permanente, no valor “x”. O autor se tornou incapaz definitivamente para o serviço do Exército, apesar de não ter sido considerado inválido, mas a questão é: o segurado de seguro de vida em grupo específico de militares do Exército Brasileiro, declarado totalmente incapaz para a atividade profissional própria do serviço militar, deveria receber a indenização como totalmente e permanente incapaz para qualquer atividade? Houve a interpretação dos fatos, da incapacidade laborativa, da adesão contratual e das cláusulas contratuais como um todo. O autor celebrou o contrato de seguro coletivo de pessoas, sendo-lhe garantido a cobertura por ‘invalidez funcional permanente total por doença’, no valor de R$36.284,50. A argumentação do autor foi no sentido de que deveria receber a indenização porque não poderia mais se dedicar ao ‘Serviço do Exército’, tomando a palavra ‘funcional’ que constava da cláusula de cobertura a ‘serviço’, passando-se a ler como ‘Função no Serviço do Exército’. Assim, na sua argumentação, não podendo continuar no Exército passaria a ter direito a indenização por incapacidade para a ‘Função Laborativa do Exército’. Da leitura da cláusula contratual, restou manifestamente claro aos Ministros que o autor recorrente seria incapaz definitivamente para o ‘Serviço do Exército’, mas ‘não sendo inválido’ para exercer outra atividade laboral fora do serviço do exército. Além do que, a cobertura não possuía abrangência restrita, deste modo, não se destinava a indenizar por doença que impedisse o exercício da ‘função’ laboral específica ligada à atividade profissional, mas, contrariamente, a palavra ‘função’ se referia ao aspecto físico e mental, com perda total e permanente para toda e qualquer atividade profissional. No presente exemplo, o autor recorrente não podia exercer ‘função’ no Exército Nacional, mas poderia exercer várias outras atividades laborais para as quais possuísse ‘função’ física e mental. Ante a comparação das coberturas estabelecidas no contrato firmado entre as partes, a interpretação foi no sentido de que a Invalidez Funcional Permanente Total por Doença se caracteriza pela impossibilidade de trabalho pela perda da função física ou mental e, o fato de o seguro ter sido pactuado através da Fundação Habitacional do Exército não se pode concluir, já que também não consta em contrato, que o seguro seria exclusivo aos militares, pois a modalidade contratual é comum a outras atividades profissionais; sendo reconhecido e respeitado o princípio da boa-fé objetiva combinado com o método gramatical , pois, além da palavra ‘função’ ter sido empregada erroneamente pelo autor recorrente, a ética esperada em todo contrato - dever de lealdade de ambas as partes - aconteceu2.
Um outro exemplo de função interpretativa da boa-fé ocorre em oitivas de testemunhas sobre determinado fato ou pessoa, onde o termo ‘não conhecer pessoalmente’, do qual uma testemunha utiliza em sua oitiva quando indagada se conhecia ou não certa pessoa, dependendo da situação e do contexto a qual foi indagada e, sendo o testemunho sobre uma relação do autor da ação com determinada pessoa, a afirmação não ‘conhecer pessoalmente’ pode ser interpretada e estar ligada ao conhecer intimamente ou somente profissionalmente e, o desdobramento desta interpretação vai ocorrer dependendo do contexto, provas e indagação a qual o depoente foi submetido3.
2. A função limitadora do exercício de direitos disposta no art. 187 do Código Civil4 tem como característica uma reação por um dos contratantes contra um abuso de direito exercido pelo outro contratante, sob os seguintes fundamentos, quais sejam, venire contra factum proprium5, supressio/surrectio6, tu quoque7, responsabilidade pré-contratual8, adimplemento substancial9, inadimplemento antecipado10 etc.
Um exemplo interessante de função reativa da boa-fé objetiva verifica-se no Resp 1.830.304-RS, o qual discute sobre direito de recebimento de comissão com cláusula limitativa territorial em contrato de consultoria e intermediação de negócios. A fundamentação do Ministro Relator foi no sentido que sendo tolerada pelas partes - em especial a parte que teve a obrigação de pagar a comissão - a atuação fora dos limites territoriais acordados, não seria aceitável, em momento posterior, negar-se a devida remuneração do intermediário pelos serviços prestados, comportamento contraditório vedado pela função reativa da boa-fé, ora venire contra factum proprium.
3. Por fim, a função integrativa da boa-fé como criadora de deveres anexos, exteriorizada pelo art. 422 do Código Civil, comporta no dever de ser observado, em todas as fases contratuais, padrões de comportamento pautada pela finalidade econômico-social do negócio contratado pelas partes, como informações necessárias, colaboração, proteção, cuidado, sigilo, cooperação, mitigação do próprio prejuízo etc. Assim, a função integrativa nada mais é do que novos deveres além dos que estão e que nasceram diretamente do contrato, da vontade das partes, como por exemplo, o dever de conservar a coisa até a tradição, bem como da obrigação do comodatário na conservação do bem emprestado como se fosse seu.
Outro exemplo interessante em grande perspectiva na pesquisa de jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é o Resp 758518/PR, em atenção especial ao Duty to mitigate the loss, o qual decidiu-se sobre o descuido do credor com o dever de mitigar o prejuízo sofrido, pois o fato de o credor ter deixado o devedor na posse do imóvel por quase 7 (sete) anos, sem que este cumprisse com o seu dever contratual (pagamento das prestações relativas ao contrato de compra e venda), evidenciou-se em clara ausência de cuidado com seu próprio patrimônio, tendo por consequência o agravamento significativo das suas perdas.
Portanto, nas relações econômicas sociais é preciso cautela, cooperação, informações mútuas, sigilo, sendo a ética, lealdade e probidade essenciais para o avanço cultural da sociedade e deveres de condutas necessários para poder atingir a função social de um contrato.
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1 Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
2 STJ. Resp. nº. 1.259.628-SE.
3 STJ. Recurso especial nº. 1.830.304-RS.
4 Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
5 Vedação do comportamento contraditório.
6 Na supressio (perda de direito) um dos contratantes age ou omite-se de alguma forma durante o lapso contratual, surgindo para a outra parte uma expectativa de não ação de direito ou obrigação. Já na surrectio (nasce um direito), o comportamento de um dos contratantes durante o lapso de tempo contratual faz a relação se estabilizar, não podendo depois de vários anos sem qualquer exigência, oposição ou impugnação, vir o contratante alegar o descumprimento de determinada obrigação contratual.
7 Ocorre quando um dos contratantes descumpre uma obrigação contratual e depois, com base neste mesmo descumprimento contratual, pretende exercer direito.
8 Tanto nas tratativas preliminares e na formação do pacto, as partes devem ter um comportamento probo, segundo as regras da boa-fé, através de um comportamento leal e íntegro, afim de não criar falsas expectativas, exteriorizar falsas informações e evitar prejuízos desnecessários, sob pena de se responsabilizar por perdas e danos.
9 Pela teoria do adimplemento substancial se afasta a resolução do contrato pelo contratante credor quando o contratante devedor pagou uma grande quantidade de parcelas (grande monta), ou seja, uma quantia substancial de sua obrigação de pagar quantia certa.
10 Pela teoria do inadimplemento antecipado, ante o caso concreto, havendo incontroversa manifestação ou pratica de atos anteriores ao termo pactuado que tornem inviável o cumprimento das obrigações com a intenção em descumprir obrigações contratuais a termo, gera-se um direito a parte inocente em requerer a extinção do negócio jurídico econômico.