A tecnologia e o ser humano são indissociáveis, não sendo possível, atualmente, imaginar um contexto em que inexistam smartphones, redes sociais e outros “apps” que tornam nossas vidas mais fáceis.
A verdade é que houve uma transformação da vida humana, em todas suas dimensões: profissional, pessoal, social, e, alterando-se a realidade social, altera-se o direito. Em suma, ocorreu a tecnologização deste, em especial, como se verá a seguir, do direito das famílias.
Em que pese, atualmente, sejam reconhecidas as famílias de uma pessoa só, que seriam as denominadas famílias celibatárias ou single, a regra é a do grupo familiar, ou seja, dois ou mais sujeitos que buscam viver a vida juntos, relacionando-se com base no afeto. Na era das redes sociais o “se relacionar” ganha novos contornos, o que acaba por repercutir, diretamente, no contexto familiar.
Sejam idosos ou crianças, grande parte dos sujeitos possuem redes sociais, permitindo, com isso, a facilitação da convivência familiar, que é direito das crianças e adolescentes, e dever dos demais familiares, nos termos do art. 227, da CF. Neste sentido, destaca-se o julgado recente, do STJ (2021), em que se reconheceu a possibilidade de guarda compartilhada entre pais que moram em cidades diversas, até porque, com as novas ferramentas digitais, a ideia de distância é relativizada.
Em suma, as novas tecnologias são importantes ferramentas de aproximação e facilitação da relação entre pais e filhos, sendo louváveis por isso. Não obstante, trazem também aos pais obrigações de cuidado e vigilância com os seus, pois, como dito, trata-se de ambiente livre a todos. Partindo desta premissa, surge a figura do abandono digital, que pode ter uma série de reflexos jurídicos:
É a negligência parental configurada por atos omissos dos genitores, que descuidam da segurança dos filhos no ambiente cibernético proporcionado pela internet e por redes sociais, não evitando os efeitos nocivos delas diante de inúmeras situações de risco e de vulnerabilidade (ALVES, 2017).
Não são apenas as relações entre pais e filhos que ganham novos aspectos com as inovações tecnológicas. Conforme já dito, as redes sociais são importantes ferramentas de facilitação da relação humana, permitindo interações afetivas entre sujeitos que se encontram em localidades distantes, e que, virtualmente, vivem o amor. Assim sendo, não tardou a surgir o questionamento acerca da possibilidade – ou não – de se reconhecer união estável, decorrente de namoro virtual (STEFANO; VALÉSI, 2020).
Aqui se defende ser possível, isto porque o CC exige, para tanto, animus familiae¸ não fazendo ressalvas sobre a necessidade de ser ele virtual ou pessoal, e, mesmo se o fizesse, não seria razoável, pois o objetivo da tutela jurídica da família é a realização da pessoa humana, independentemente do seu modo.
Em outras palavras, as redes sociais são importantes ferramentas para formação de casais. Ocorre que muitas vezes elas servem, também, para o fim deles. Neste sentido, merece destaque o importante julgado do TJDFT, no acórdão n. 1084472, em que se reconheceu o dano moral, em razão da infidelidade conjugal, praticada em ambiente virtual; trata-se do que alguns chamam de “cyber traição” (VENANCIO; GOMES, 2019), que assim como as físicas, geram direito de indenização ao traído, se em razão delas sofrer danos.
Com o surgimento das novas tecnologias, surgiu, também, novas formas que trabalho, antes inexistentes, como é o caso dos “digitais influencers” e de novos empreendimentos, como, por exemplo, o “marketing digital”. Estas novas formas de ganho repercutem na estrutura familiar, sobretudo no que toca às obrigações alimentares, bem como no que se refere à formação do patrimônio familiar. Neste sentido, vem se construindo o entendimento de que redes sociais e outros endereços na internet, quando possuírem valor ou potencial econômico, são considerados bens partilháveis e transmissíveis (NEGRETI, 2021).
Por fim, a evolução tecnológica trouxe as chamadas moedas virtuais, que compreendem as criptomoedas e as moedas digitais. Segundo o Banco Central Europeu, são elas "uma forma não regulamentada de dinheiro virtual, comumente distribuída e controlada por seus desenvolvedores, que é usada e aceita apenas entre os membros de uma comunidade virtual específica” (2012, p. 13). Embora não físicas, são dotadas de valor patrimonial, razão pela qual devem ser igualmente consideradas partilháveis e transmissíveis, na dissolução familiar ou sucessão.
Concluindo, são várias as novas tecnologias, que acabam por fazer surgir novos direitos, sobretudo no âmbito das relações familiares. Com a evolução dos costumes e das práticas sociais, torna-se necessária a evolução jurídica, que se inicia com a compreensão de que não resta outra alternativa a não ser se modernizar.
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ALVES, Jones Figueirêdo. Negligência dos pais no mundo virtual expõe criança a efeitos nocivos da rede.
EUROPEAN CENTRAL BANK (EUROSYSTEM). Virtual Currency Schemes, 2012. Disponível em: https://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/other/virtualcurrencyschemes201210en.pdf. Acesso em: 28 jul. 2021.
NEGRETI, Felipe. As redes sociais como patrimônio partilhável e transmissível. Migalhas, Ribeirão Preto, 7. abr. 2021. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/343190/as-redes-sociais-como-patrimonio-partilhavel-e-transmissivel. Acesso em: 28 jul. 2022.
STEFANO, Isa Gabriela de Almeida; VALÉSI, Raquel. Relacionamento virtual pode gerar união estável. Migalhas, Ribeirão Preto, 10 ago. 2020. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/331807/relacionamento-virtual-pode-gerar-uniao-estavel. Acesso em: 28 jul. 2022.
STJ. Notícias: guarda compartilhada é possível mesmo que pais morem em cidades diferentes, 2021. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/23062021-Guarda-compartilhada-e-possivel-mesmo-que-pais-morem-em-cidades-diferentes.aspx. Acesso em: 28 jul. 2022.
VENANCIO, Isabelly Medeiros; GOMES, Luiz Geraldo do Carmo. Uma análise psicossocial do sujeito enquanto perpetuador da infidelidade virtual e reflexões acerca das jurisprudências cíveis. Encontro internacional de produção científica: anais eletrônicos, Maringá, ano XI, 2019. Disponível em: https://rdu.unicesumar.edu.br/bitstream/123456789/3477/1/ISABELLY%20MEDEIROS%20VENANCIO.pdf. Acesso em: 28 jul. 2022.