Garantindo a integridade dos leilões judiciais
O presente artigo emerge de um caso real em tramitação no TJ/SP, no qual se discute um tema relevante e, até onde se conseguiu averiguar, não enfrentado pelo Poder Judiciário: a obrigatoriedade de que as informações relacionadas a leilões judiciais realizados por meio eletrônico tenham a autenticidade e segurança de suas informações garantidas mediante o uso de certificação digital, conforme disposto no § 2º do art. 882 do CPC.
O cenário legal
De acordo com o § 2º do art. 882 do CPC:
CPC
Art. 882. Não sendo possível a sua realização por meio eletrônico, o leilão será presencial. (...)
§ 2º A alienação judicial por meio eletrônico deverá atender aos requisitos de ampla publicidade, autenticidade e segurança, com observância das regras estabelecidas na legislação sobre certificação digital.
Esse dispositivo legal encontra complemento na MP 2.200-2/01, que dispõe sobre a validade jurídica dos documentos eletrônicos assinados por meio da ICP-Brasil - Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira:
Medida Provisória 2.002-2/01
Art. 10. Consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata esta Medida Provisória.
§ 1º As declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 da Lei no 3.071, de 1º de janeiro de 1916 - Código Civil. (...)
O processo de certificação digital que obedece aos procedimentos estabelecidos pela ICP-Brasil oferece um nível elevado de segurança, pois garante que as informações armazenadas sejam autênticas, seguras e imutáveis ao longo do tempo. No contexto dos leilões eletrônicos, tal requisito é essencial para preservar a confiabilidade do procedimento e assegurar que as informações registradas estejam protegidas contra manipulações ou alterações indevidas, principalmente ao observar que os bens leiloados, por vezes, alcançam montantes milionários.
Assim, é obrigação do leiloeiro comprovar que o sistema por ele utilizado obedece às determinações do § 2º do art. 882 do CPC, garantindo a autenticidade e a segurança das informações por meio do uso de certificação digital. De forma que os autores deste artigo entendem que são nulos os leilões judiciais virtuais realizados por leiloeiros judiciais que falhem em comprovar sua adequação a esta determinação legal.
O desafio na prática
Frente aos altos custos inerentes ao desenvolvimento e manutenção de um sistema de informações capaz de realizar leilões on-line, muitos leiloeiros optam por contratar empresas terceirizadas que fornecem tais sistemas na forma de serviço em soluções chamadas de SaaS - Software as a Service no jargão da programação.
Assim, embora os atos realizados por leiloeiros sejam dotados de presunção de veracidade, a utilização de sistemas terceirizados para gerenciar as plataformas de leilão eletrônico cria uma lacuna na cadeia de custódia das informações. Os dados, que anteriormente estavam sob a guarda direta do leiloeiro, passam a ser administrados por terceiros, que são apenas prestadores de serviço contratados pelo leiloeiro nomeado.
Esse modelo apresenta vantagens, como o suporte técnico especializado e a segurança oferecida por equipes de programadores. Contudo, também impõe um desafio significativo: o distanciamento entre o responsável pelo desenvolvimento do software e o juízo, já que, diferentemente do leiloeiro, o prestador do serviço de software não goza de presunção de veracidade em seus atos.
Autenticidade vs. autenticação
Um aspecto crucial nesse debate é a diferenciação entre autenticidade e autenticação no contexto dos sistemas utilizados pelos leiloeiros. A autenticidade está relacionada à segurança da informação e à sua imutabilidade no tempo. Ela garante que os dados armazenados sejam confiáveis, seguros e não possam ser alterados indevidamente. Por outro lado, a autenticação refere-se à identificação do usuário no sistema, assegurando que o acesso seja feito por pessoas autorizadas.
A Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, nas suas normas de serviço (art. 255 do tomo I das NSCGJ), permite expressamente que a autenticação seja realizada por meio do uso de usuário e senha. No entanto, essa medida, embora suficiente para identificar os usuários, não substitui a necessidade de certificação digital para garantir a autenticidade e a integridade dos dados armazenados, os quais, ao menos teoricamente, podem ser alterados a qualquer momento pelo terceiro custodiante das informações.
Solução legislativa
Para mitigar os riscos e garantir o cumprimento das normas legais, é fundamental interpretar de maneira coordenada o § 2º do art. 882 do CPC e o § 1º do art. 10 da MP 2.200-2/01. Essa leitura integrada demonstra que a certificação digital baseada nos protocolos do ICP-Brasil é indispensável para assegurar a autenticidade e segurança das informações em leilões eletrônicos. Por meio dessa tecnologia, é possível garantir a imutabilidade e a confiabilidade dos registros, como logs de acessos e dados relacionados aos lances, permitindo que essas informações sejam auditáveis e protegidas contra manipulações indevidas.
No caso concreto, a defesa apresentou requerimento para que o leiloeiro comprovasse a utilização de certificação digital em seu sistema, de forma a garantir a autenticidade e segurança das informações. Apesar disso, até o momento, não houve resposta ao pedido, o que levou a questão ao Judiciário (ainda pendente de julgamento).
Riscos e consequências
Embora essa estratégia seja fundamentada e alinhada à legislação vigente, o advogado que pretenda pugnar pela nulidade de determinado leilão judicial virtual deve observar a existência perigos inerentes ao seu uso. Caso o juízo conclua que nenhum leiloeiro dispõe de sistema que atenda aos requisitos legais, pode optar pela realização de um leilão presencial.
Embora este artigo defenda a validade jurídica deste entendimento, esta medida, em alguns casos pode ser prejudicial ao bom andamento do processo, especialmente em situações em que a participação de possíveis interessados na arrematação do bem possa ser reduzida em decorrência da limitação geográfica, caso um leilão presencial seja designado.
Considerações finais
Os autores entendem que os leilões judiciais virtuais que sejam realizados por softwares de terceiros, e sem que a integridade e autenticidade de tais informações sejam garantidas pelo uso de certificação digital, são nulos, por não atenderem a requisito legal estabelecido pelo §2º do art. 882 do CPC.
Ressalta-se que o tema aqui abordado ainda carece de apreciação pelo poder judiciário, o que evidencia a relevância do debate. O caso concreto que motivou este artigo ainda não foi julgado, mas a falta de jurisprudência sobre o tema aponta para a necessidade de maior atenção por parte dos operadores do Direito quanto à segurança das informações geradas durante os procedimentos inerentes à realização de um leilão judicial eletrônico.
Desta forma, espera-se que esta reflexão contribua para o aprimoramento das práticas adotadas e para a observância das devidas cautelas inerentes aos leilões judiciais eletrônicos, propiciando a adoção de soluções tecnológicas que garantam maior transparência, segurança e confiabilidade ao processo judicial.