Migalhas de Peso

Tecnofeudalismo e a nova ordem tributária

A transição econômico tributária na era da desglobalização: Grandes plataformas tecnológicas atuam como “senhores feudais”.

7/2/2025

A reforma tributária, recentemente aprovada no Congresso Nacional, representa a maior reestruturação do sistema de impostos brasileiro desde a promulgação da CF/88. Seu contexto histórico remonta a décadas de tentativas infrutíferas de racionalizar e simplificar a pesada carga tributária, bem como de reduzir a burocracia fiscal que onera tanto o empreendedorismo quanto o próprio Estado. A reforma desponta como resposta a um sistema fiscal anacrônico, marcado por complexidade, sobreposição de tributos e ineficiência arrecadatória. O Brasil, historicamente, convive com uma carga tributária elevada (33% do PIB em 2023) aliada a baixa eficiência na redistribuição e retorno social.

Desde a chamada “Constituição Cidadã”, diversos projetos de reforma tributária foram apresentados, mas muitos esbarraram na falta de consenso político ou em interesses regionais conflitantes. A federação brasileira, com entes estaduais e municipais autônomos na arrecadação de tributos, tornou o tema particularmente sensível. Governadores e prefeitos, historicamente, manifestaram preocupações quanto à redistribuição de receitas e ao potencial enfraquecimento de sua autonomia financeira.

No entanto, a atual reforma ganhou tração política em um momento de maior pressão macroeconômica e social. A necessidade de retomada econômica pós-crises recorrentes (econômicas, sanitárias e fiscais) intensificou o debate, levando o governo Federal a articular com o Congresso um texto consolidado que atendesse, ainda que parcialmente, às demandas de vários setores da economia. Nesse sentido, a agenda reformista ganhou legitimidade política ao prometer simplificação, unificação de tributos e maior transparência no recolhimento.

A reforma busca modernizar o sistema, substituindo impostos como ICMS, ISS, PIS e Cofins por um modelo unificado (IVA nacional), simplificando regimes e incorporando mecanismos digitais para fiscalização. As principais mudanças na estrutura tributária são:

Por outro lado, no âmbito da renda, há propostas de ampliação da base tributável e de redução de algumas alíquotas nominais, compensadas por mecanismos de progressividade. Isso visa, por um lado, melhorar a arrecadação e, por outro, atrair investimentos de longo prazo, sobretudo em setores de inovação tecnológica.

Os objetivos declarados da reforma passam pela facilitação do ambiente de negócios e pela redução da litigiosidade tributária, cujo custo operacional, tanto para empresas quanto para o fisco, é historicamente elevado. Espera-se que a unificação de tributos traga maior clareza aos contribuintes, incentive a formalização e torne o Brasil mais atrativo a investimentos estrangeiros.

Contudo, analistas alertam para riscos de distorções caso a implementação não seja homogênea e transparente, principalmente no que tange à distribuição do bolo tributário entre União, Estados e municípios. Além disso, persistem questões quanto às exceções setoriais e ao tratamento diferenciado para segmentos específicos, que podem, eventualmente, resvalar em aumento de complexidade ao invés de simplificação.

Nesse cenário, a reforma tributária acaba por criar uma moldura de oportunidades e incertezas, tornando-se ponto de convergência quando se analisa a dinâmica econômica global, especialmente no contexto de rápida evolução tecnológica.

1. Conexão com tecnologias disruptivas

A partir do momento em que a economia mundial se torna cada vez mais dependente de plataformas digitais, IA - Inteligência Artificial, blockchain e outras inovações, a estrutura tributária enfrenta pressões adicionais. Os fluxos de capitais e serviços transpõem fronteiras com velocidade e facilidade crescentes, criando lacunas para a evasão e elisão fiscal, além de exigirem novas fórmulas de regulação.

A IA, por exemplo, tem promovido transformações na maneira como se produz, consome e presta serviços – desde análise preditiva de mercado até o uso de algoritmos sofisticados para ranqueamento e intermediação de ofertas. Da mesma forma, o blockchain oferece um registro distribuído e praticamente imutável, que pode tanto reduzir a burocracia e os custos de conformidade quanto levantar preocupações sobre privacidade e concentração de informações em poucas mãos.

Plataformas digitais, como marketplaces globais (Amazon, Google, Meta, Apple, Microsoft), revolucionaram a interação entre produtores e consumidores, mas também criaram um ecossistema onde a fronteira entre o físico e o virtual se torna cada vez mais difusa. Essas empresas monetizam dados e algoritmos, não mais apenas bens físicos. Esse fenômeno cria uma economia intangível, onde a "renda algorítmica" substitui o lucro tradicional, e o controle de plataformas concentra poder em poucas corporações. Nesse ambiente, a tributação enfrenta o desafio de identificar o local efetivo da transação e o momento exato em que o fato gerador ocorre, especialmente quando a prestação de serviços ou a venda de bens digitais não ocorre dentro de uma jurisdição claramente identificada.

É nesse ponto que emerge o conceito de tecnofeudalismo, cunhado por autores como Cédric Durand e propagado por economistas como Yanis Varoufakis. A noção remete a um modelo em que grandes plataformas tecnológicas atuam como “senhores feudais” (os suseranos) modernos, impondo condições de uso e extraindo valor (sob forma de dados, taxas, publicidade e, claro, lucro) de uma massa global de “vassalos” – sejam eles consumidores, produtores ou outros negócios que dependem das ferramentas digitais para sobreviver no mercado contemporâneo.

Diferente do capitalismo clássico, no qual a disputa de mercado estaria pautada pela competição e pela busca de eficiência, o tecnofeudalismo pressupõe uma concentração de poder econômico em que a concorrência é gradualmente sufocada ou comprada. Isso torna a relação tributária ainda mais complexa, pois boa parte dos ativos intangíveis e dos dados que geram riqueza estão em jurisdições complexas ou até não claramente definidas.

Nesse contexto, quanto a erosão da soberania tributária, os Estados-nação enfrentam um paradoxo:

Essa análise estabelece a base para uma reflexão mais ampla sobre como a reforma tributária brasileira, embora necessária, é insuficiente para enfrentar os desafios do tecnofeudalismo. A economia global já não se submete a fronteiras físicas, e a capacidade dos Estados de tributar está sendo corroída por estruturas de poder centralizadas em plataformas digitais. A pergunta central que emerge é: como garantir justiça fiscal em um mundo onde o valor é gerado em redes algorítmicas e controlado por entidades transnacionais?

Confira a íntegra do artigo.

Gilmara Nagurnhak
Gilmara Nagurnhak é advogada e fundadora do Escritório de Advocacia & Assessoria Empresarial Mestranda e especialista em Direito Tributário, com formação pela PUCRS.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Autonomia patrimonial e seus limites: A desconsideração da personalidade jurídica nas holdings familiares

2/12/2025

Pirataria de sementes e o desafio da proteção tecnológica

2/12/2025

Você acha que é gordura? Pode ser lipedema - e não é estético

2/12/2025

Tem alguém assistindo? O que o relatório anual da Netflix mostra sobre comportamento da audiência para a comunicação jurídica

2/12/2025

Frankenstein - o que a ficção revela sobre a Bioética

2/12/2025