A realização de contratações públicas constitui fator fundamental para o regular funcionamento do Estado, pois viabiliza a aquisição de bens e serviços essenciais ao desempenho das atividades administrativas. Tradicionalmente, a licitação tem sido o principal instrumento, garantindo não apenas a seleção da proposta mais vantajosa, mas também a observância do princípio da isonomia entre os potenciais fornecedores. Não obstante sua relevância, a licitação nem sempre é economicamente recomendável ou sequer obrigatória, abrindo espaço para a contratação direta por inviabilidade de competição (inexigibilidade) ou por dispensa de licitação, consoante disposições legais específicas, entre as quais se destacam os incisos I e II do art. 75 da lei 14.133/211.
Até recentemente, a lei 8.666/1993 regulava as licitações e contratos administrativos de maneira preponderante2. Seu texto, ao longo dos anos, consolidou uma cultura na qual a licitação era vista como a regra absoluta, tratando a dispensa como exceção excepcionalíssima — muitas vezes associada à falta de transparência. Contudo, a NLLCA - Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos trouxe significativas alterações ao regime das contratações, inclusive quanto às possibilidades de contratação direta. A própria CF/88, no art. 37, inciso XXI, admite exceções ao dever de licitar, desde que previstas em lei3.
Mesmo com a inauguração de um novo marco jurídico pela NLLCA, ainda persiste o estigma de que a dispensa seria um caminho arriscado, propenso a desvios ou pouco eficaz4. Esse preconceito decorre em parte do receio de responsabilização por parte dos agentes públicos, bem como da tendência histórica de sobrevalorização do procedimento licitatório regular. Nesse sentido, a doutrina destaca a existência de um “Direito Administrativo do Medo”, em que gestores, temendo sanções dos órgãos de controle, refutam soluções mais simples e céleres, ainda que sejam totalmente amparadas pela lei5.
A NLLCA determina que as contratações de que tratam os incisos I e II do art. 75 da lei 14.133/21 serão preferencialmente precedidas de divulgação de aviso em sítio eletrônico oficial, pelo prazo mínimo de 3 dias úteis, com a especificação do objeto pretendido e com a manifestação de interesse da Administração em obter propostas adicionais de eventuais interessados, devendo ser selecionada a proposta mais vantajosa. Essa diretriz, embora não imponha obrigatoriedade aos entes federativos em qualquer hipótese, aponta para uma clara política de modernização e transparência.
Entretanto, no âmbito da Administração Pública Federal, a adoção de meios eletrônicos é mais do que uma mera preferência: a IN SEGES/ME 67/216 tornou compulsória a realização de dispensa de licitação em formato eletrônico quando a contratação se enquadrar no art. 75, I e II, da lei 14.133/21. Dessa maneira, obras e serviços de engenharia, aquisição de bens e outras situações previstas — respeitados os limites de valor —, devem ser processados obrigatoriamente pelo SDE - Sistema de Dispensa Eletrônica, integrante do Comprasnet 4.0.
Desse cenário emerge um novo paradigma para as dispensas de baixo valor7, pois o procedimento eletrônico, nos moldes da IN SEGES/ME 67/21, reproduz diversas etapas típicas de uma licitação convencional: pesquisa de preços prévia, ampla publicidade, disputa de lances e verificação de habilitação. Esse arcabouço se assemelha ao de uma licitação convencional (principalmente o pregão), garantindo um nível reforçado de transparência e competitividade, sem incorrer nos mesmos custos procedimentais de uma licitação comum8.
A modernização proposta pela NLLCA, somada às normas complementares, estabeleceu um passo a passo estruturado para a dispensa na forma eletrônica. Em linhas gerais, o processo inicia-se com a fase interna de planejamento, na qual a Administração elabora termo de referência, análise de riscos e pesquisa de preços. Essa pesquisa, por sua vez, deve seguir critérios objetivos para comprovar a compatibilidade dos valores ofertados com a média de mercado, consoante a IN SEGES/ME 65/219.
Posteriormente, há a divulgação do aviso de contratação direta no Portal de Compras e no Portal Nacional de Contratações Públicas, assegurando conhecimento amplo aos potenciais fornecedores. A fase de lances ocorre em plataforma eletrônica, permitindo a disputa competitiva e sucessiva entre os participantes. Ao final, procede-se à habilitação do melhor classificado, com exame dos documentos previstos na lei 14.133/21. Caso haja inabilitação ou descumprimento das regras, é possível convocar o segundo mais bem colocado, garantindo a busca pela proposta mais vantajosa.
Não se ignora que a dispensa, ainda que simplificada, exige rigor na verificação dos limites de valor, em especial para evitar o fracionamento de despesas ou práticas indevidas de parcelamento de compras. A legislação e a própria IN 67/21 vedam a fragmentação artificial de objetos com vistas a manter todas as aquisições dentro do teto legal da dispensa, constituindo tal conduta ofensa ao princípio da economicidade e passível de contestação pelos órgãos de controle.
A adoção da forma eletrônica representa um ganho substancial de tempo e recursos quando comparada aos procedimentos licitatórios mais complexos. Estudos da Controladoria-Geral da União, veiculados na nota técnica 1081/1710, mostram que o pregão eletrônico pode ter custos administrativos até dez vezes superior ao da dispensa. Assim, para contratações de pequeno valor, a licitação tradicional por vezes se torna desproporcional, pois exige pessoal treinado, maior prazo de tramitação e cumprimento de etapas cujo custo pode superar a própria vantagem esperada com a competição ampliada11.
Nesse particular, a dispensa eletrônica oferece um meio-termo valioso: alinha a publicidade e a possibilidade de disputa, típicas de um certame, à redução de burocracia e celeridade na contratação. Com isso, a Administração Pública pode concentrar esforços em licitações para contratações de maior expressão econômica ou complexidade técnica, sem despender energia administrativa e financeira em certames de baixos valores.
A efetividade da dispensa eletrônica pressupõe a existência de planejamento adequado. A NLLCA e os regulamentos dela decorrentes exigem que as demandas sejam justificadas e compatíveis com os objetivos e cronogramas da entidade. Dessa forma, evitam-se contratações fracionadas ou emergenciais que poderiam ser objeto de um planejamento anual e licitação regular. Além disso, a adoção de um bom estudo técnico preliminar, termo de referência e estimativas de custos contribui para reduzir o risco de sobrepreço ou especificações inadequadas12.
Outro ponto sensível é a chamada “cultura do medo” ou “apagão das canetas”13, expressão que designa o temor de muitos gestores em utilizar ferramentas à sua disposição, como a dispensa de licitação, devido ao receio de sofrer questionamentos ou sanções dos tribunais de contas e demais órgãos de controle. Essa postura conservadora tende a perpetuar a noção de que a licitação seria a única forma legítima de contratação, em detrimento de soluções legais e mais eficientes, como a dispensa eletrônica. Na mesma linha, autores apontam que o excesso de zelo pode até mesmo obstar inovações administrativas, atrasar entregas de bens e serviços e, em última instância, prejudicar o interesse público14.
O uso da dispensa eletrônica, ao se aproximar metodologicamente do pregão, desfaz a visão de que a contratação direta seria sinônimo de falta de transparência. Hoje, com a veiculação das disputas em meio digital e a obrigatoriedade de ampla divulgação, cada vez mais fornecedores se mostram interessados e competitivos mesmo em contratações de menor monta15. O controle social também se amplia, uma vez que toda a documentação — pareceres, estudos, propostas, lances e habilitação — fica disponível para consulta, ao passo que o procedimento se registra em ata, assegurando rastreabilidade.
Essa mudança de paradigma já conta com o respaldo da Secretaria de Gestão, que recomendou, em fevereiro de 2023, a priorização do uso da dispensa eletrônica no governo Federal16. Tal orientação reconhece que, em muitos casos, a contratação eletrônica direta pode alcançar resultados tão sólidos quanto os das modalidades licitatórias tradicionais, sem onerar indevidamente a estrutura administrativa com custos e prazos excessivos.
Em síntese, a dispensa de licitação na forma eletrônica emerge como um instrumento alinhado à eficiência, pois compatibiliza transparência, celeridade e racionalidade nos gastos públicos. Embora a NLLCA estabeleça a preferência pela forma eletrônica, o âmbito Federal foi além, tornando-a compulsória por força da IN SEGES/ME 67/21. Esse movimento atende a uma lógica de modernização e transparência, possibilitando a realização de procedimentos competitivos, ainda que se trate de contratações de baixo valor.
Cumpre ressaltar, porém, que o sucesso desse modelo depende de planejamento adequado, pesquisa de preços bem conduzida, capacitação dos agentes envolvidos e segurança jurídica para que os gestores não se deixem paralisar pelo medo da fiscalização. Assim, a dispensa eletrônica não deve ser vista como mera exceção, mas como um legítimo instrumento de gestão administrativa, capaz de conferir maior dinamismo às contratações e de canalizar esforços públicos para projetos de maior complexidade. Quando usada com responsabilidade, atende aos princípios constitucionais da eficiência e da economicidade, sem descurar da publicidade e isonomia que caracterizam o interesse público, devendo ser a “regra” e não a “exceção”.
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1 BRASIL. Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021. Lei de Licitações e Contratos Administrativos. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1 abr. 2021. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/NLLCA.htm. Acesso em: 07 fev. 2025.
2 BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 jun. 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8666cons.htm. Acesso em: 07 fev. 2025.
3 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.Acesso em: 07 fev. 2025.
4 HALPERN, E. Contratação direta por inexigibilidade: O preconceito dos controladores e o medo dos gestores. Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro - PGE-RJ, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, set./dez. 2018.
5 SANTOS, R. V. O Direito Administrativo do Medo: a crise da ineficiência pelo controle. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
6 BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria de Gestão. Instrução Normativa SEGES/ME nº 67, de 8 de julho de 2021. Estabelece normas complementares à Lei nº 14.133/2021. Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, DF, 9 jul. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/instrucoes-normativas/instrucao-normativa-seges-me-no-67-de-8-de-julho-de-2021. Acesso em: 08 fev. 2025.
7 Para fins deste artigo, utilizou-se o termo “baixo valor” para caracterizar as contratações públicas com valores inferiores aos estabelecidos pelo art. 75, I e II, da Lei nº 14.133/2021.
8 FERNANDES, A. L. J.; FERNANDES, U. J.; FERNANDES, M. J. Contratação direta sem licitação na nova Lei de Licitações, Lei nº 14.133/2021. Belo Horizonte: Fórum, 2023.
9 BRASIL. Ministério da Economia. Instrução Normativa SEGES/ME nº 65, de 7 de julho de 2021. Dispõe sobre a pesquisa de preços para a aquisição de bens e a contratação de serviços em geral, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional. Diário Oficial da União, seção 1, Brasília, DF, n. 128, p. 92, 8 jul. 2021. Disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/acesso-a-informacao/legislacao/instrucoes-normativas/instrucao-normativa-seges-me-no-65-de-7-de-julho-de-2021. Acesso em: 08 fev. 2025.
10 BRASIL. Controladoria-Geral da União. Nota Técnica nº 1081/2017/CGPLAG/DG/SFC. Disponível em: https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2017/07/cgu-divulga-estudo-sobre-eficiencia-dos-pregoes-realizados-pelo-governo-federal/nota-tecnica-no-1-081-2017-cgplag-dg-sfc.pdf. Acesso em: 8 fev. 2025.
11 FERNANDES, A. L. J.; FERNANDES, U. J.; FERNANDES, M. J. Contratação direta sem licitação na nova Lei de Licitações, Lei nº 14.133/2021. Belo Horizonte: Fórum, 2023.
12 JUSTEN FILHO, M. Comentários à Lei de licitações e contratações administrativas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021.
13 SANTOS, R. V. O Direito Administrativo do Medo: a crise da ineficiência pelo controle. 3. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.
14 HALPERN, E. Contratação Direta por Inexigibilidade: O Preconceito dos Controladores e o Medo dos Gestores. Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro - PGE-RJ, Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, set./dez. 2018.
15 VITAL, L. P. S.; ZUCATTO, L. C. Novidades da Lei 14.133/2021: discussões acerca da dispensa de licitação tradicional e eletrônica. Revista da AGU, 7 mar. 2023.
16 BRASIL. Ministério da Economia. Secretaria de Gestão. Recomendação sobre a priorização do uso da dispensa de licitação na sua forma eletrônica. Portal de Compras do Governo Federal. Fevereiro de 2023. Disponível em: https://www.gov.br/compras/pt-br/agente-publico/orientacoes-e-procedimentos/38-recomendacao-sobre-a-priorizacao-do-uso-da-dispensa-de-licitacao-na-sua-forma-eletronica. Acesso em: 08 fev. 2025.