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A responsabilidade das prefeituras em casos de enchente

Falhas no planejamento urbano, na manutenção de galerias pluviais e na adoção de medidas preventivas podem gerar enorme prejuízo à população, contribuindo para responsabilização das prefeituras.

14/3/2025

A responsabilidade civil do Estado é um tema central no Direito Administrativo brasileiro, especialmente em situações envolvendo danos causados por enchentes. O reconhecimento dessa responsabilidade depende de uma análise detalhada dos fatos, da conduta estatal e das consequências para os particulares.

De acordo com o art. 37, § 6º, da CF/88, a responsabilidade civil do Estado é objetiva nos casos de atos comissivos, fundamentada na teoria do risco administrativo. Significa que as “pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”1

Já nos casos de omissão, aplica-se a responsabilidade subjetiva, que exige a comprovação de culpa ou dolo. Trata-se da responsabilização por via de faute du service (falta do serviço), relevante para compreender a responsabilização estatal em situações de omissão ou falhas administrativas que contribuem para danos causados aos administrados – especialmente nesses casos de enchentes.

Em síntese, essa responsabilização ocorrerá sempre que o serviço público operar de forma inadequada, deixar de funcionar corretamente ou sequer for prestado.

Nesse sentido, o TJ/SP já reconheceu a responsabilidade do ente municipal por negligência, em caso de prefeitura que:

- autorizou loteamento no local sem “implementar planejamento urbano eficaz para escoamento de águas pluviais”, fixando indenização em R$ 20.000,00 (TJ-SP - APL: 10056012920208260564 SP 1005601-29.2020.8.26.0564, Relator: Márcio Kammer de Lima, Data de Julgamento: 27/10/2022, 11ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 27/10/2022). No mesmo sentido: TJ-SP - AC: 10039267520198260302 SP 1003926-75.2019.8.26.0302, Relator: Paola Lorena, Data de Julgamento: 29/01/2021, 3ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 29/01/2021;

- mesmo com histórico de enchentes, não adotou medidas para evitar repetição do infortúnio. No caso em questão, houve arbitramento de danos materiais em valor equivalente ao do veículo perdido e danos morais decorrentes do falecimento do filho da autora na ocasião em R$ 100.000,00 (TJ-SP - AC: 10012723420218260274 SP 1001272-34.2021.8.26.0274, Relator: Carlos von Adamek, Data de Julgamento: 29/09/2022, 2ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 30/09/2022);

- demonstrou Insuficiência da infraestrutura de coleta de águas pluviais que causou as enchentes - Omissão administrativa constatada e que permanece há anos - Danos materiais demonstrados – Valores arbitrados a título de danos morais mantidos - Recurso do município desprovido, com observação, de ofício, quanto ao critério de reajuste dos consectários de mora. (TJ-SP - AC: 10099179520208260302 SP 1009917-95.2020.8.26.0302, Relator: Bandeira Lins, Data de Julgamento: 03/03/2022, 8ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 03/03/2022)

Da jurisprudência analisada, verifica-se que a responsabilização da prefeitura por faute du service pode ser caracterizada nas seguintes hipóteses exemplificativas: i) ausência de manutenção preventiva de galerias pluviais; ii) falha no planejamento urbano, com a permissão para construções em áreas suscetíveis a enchentes sem estudos de impacto ambiental; iii) não realização de obras emergenciais em áreas de risco com histórico de enchentes; iv) negligência na limpeza e desobstrução de redes de drenagem; v) descumprimento de planos de contingência em situações de calamidade em períodos de alerta climático; vi) falta de atualização de mapas de risco de enchentes; vii) descumprimento de normas ambientais ou de urbanismo, como a construção de reservatórios para conter o excesso de água.

Mas, como provar a omissão?

Por mais complicado que possa ser demonstrar a omissão do Estado, nesses casos, é possível se utilizar de diferentes vias probatórias, como provas documentais, periciais e testemunhais.

Relatórios de manutenção de galerias pluviais (ou sua inexistência), registros fotográficos de bocas de lobo obstruídas, depoimentos de moradores e laudos técnicos que atestem a falta de limpeza; Planos diretores municipais, estudos de impacto ambiental ausentes ou deficientes, autorizações de construção em áreas de risco e laudos técnicos apontando falhas no planejamento; Relatórios ou alertas da Defesa Civil sobre áreas de risco, histórico de alertas não atendidos, licitações frustradas ou inexistentes para obras emergenciais e estudos técnicos de engenheiros; Laudos ambientais, relatórios de órgãos fiscalizadores (ou a inexistência deles), fotografias e vídeos de ocupações irregulares e pedidos administrativos ignorados; todos esses elementos são meios de demonstrar o grau de intensidade da omissão (ou não) do município no trato da questão.

Além disso, pedidos via LAI - Lei de Acesso à Informação podem ser um meio eficaz para obter documentos que provem a omissão estatal.

Os danos causados por enchentes costumam ser significativos, abrangendo prejuízos materiais – destruição de veículos, eletrodomésticos, eletrônicos, móveis, desvalorização o dano em imóvel, etc. – e danos morais, devido ao sofrimento, terror psicológico e emocional provocados pela omissão estatal. De todo modo, o valor da indenização é ser analisado levando em consideração o caso concreto.

Mas é importante ter em vistas que a responsabilidade do Estado pode ser afastada em situações que configurem força maior ou caso fortuito, como chuvas excepcionais e imprevisíveis que superam a capacidade de resposta do Poder Público.

Se, na ação judicial, o município demonstrar que foram adotadas todas as medidas possíveis para minimizar os danos, a tendência é do Poder Judiciário entender que não houve qualquer responsabilidade por parte da Administração Pública.

_________

1 Disponível em: TJ-SP 10101154720168260602 SP 1010115-47.2016.8.26.0602, Relator: Antonio Celso Faria, Data de Julgamento: 29/11/2017, 8ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 29/11/2017 – acesso em 29/1/25

Daniel Santos de Freitas
Bacharel em Direito, Pós-graduado em Direito Administrativo, Membro das Comissões de Direito Administrativo, Consumidor, Constitucional, Processo Civil da OAB-SP e autor de artigos jurídico

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