O setor de brinquedos nacional é anualmente marcado por eventos que promovem um impulsionamento na atividade econômica das empresas que o integram, garantindo que as marcas, os distribuidores, importadores e fabricantes possam revelar ao mercado o que têm de melhor a mostrar: inovar, renovar ou, simplesmente, reimaginar, pode ser a melhor medida para garantir ao player deste setor uma atração especial sob o olhar do consumidor final.
Um destes eventos é a Feira Abrin que, neste ano de 2025, foi realizada entre os dias 9 e 12 de março, no Expo Center Norte, em São Paulo/SP: antes de ser apenas um dos eventos que marcam o calendário anual do setor, a Feira Abrin consolida a sua posição como a maior feira do ramo na América Latina, tendo revelado ao mercado mais de 1.500 lançamentos e novidades, distribuídos por mais de 170 expositores que contaram com mais de 200 marcas1.
Fortemente influenciado pela Feira Abrin, o mercado de brinquedos opera hoje com números positivos: de acordo com a Abrinq - Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos, no Brasil o setor teve um crescimento de 36% em vendas de 2020 a 2024, com o aumento de R$7,5 milhões para R$10,2 milhões e a elevação do consumo de brinquedos per capita, que em 2024 alcançou o patamar de 11 unidades por criança ao ano2.
Em um evento como a Abrin, discutem-se inúmeros aspectos pelos quais o mercado de brinquedos se aperfeiçoa e se realiza: desde a logística de distribuição, as tendências para o ano, o licenciamento de marcas, produtos, patentes, e os seus respectivos registros, o papel relevante ocupado por influenciadores digitais e a legislação aplicável a este ramo, as influências globais no macroambiente de negócios e as repercussões que representam para o ambiente interno ou os meios mais céleres e adequados para conquistar notoriedade em um mercado que é notadamente disputado e concorrido.
Seja pelo ponto de vista do expositor ou do comprador, certo é que o mercado de brinquedos é indissociável do Direito: seja pelo Empresarial, no âmbito societário ou de propriedade intelectual e industrial, Civil, no âmbito contratual, Penal, que tem impacto na sanção da conduta penalmente típica e que, porventura, ameace suficientemente algum bem jurídico tutelado por norma penal, Administrativo, na dissuasão do comportamento ilícito, ou pelo Direito Tributário.
O ambiente da Feira Abrin, em um cenário que replica em menor dimensão o setor de brinquedos, revela uma intrincada realidade em que se aperfeiçoa uma miríade de fatos que se subsomem a normas jurídicas (tidas, neste cenário, como as interpretações que o sujeito participante do sistema pode conferir a um dispositivo).
É assim que, pela isomorfia entre o fato e a norma, “o direito existe como simples fato, e o que o direito é não depende, de modo algum, daquilo que ele deveria ser”3: é, portanto, um mundo paralelo ao empírico, constituindo uma das lentes interpretativas pelas quais se pode ver o mundo fenomênico4, revestindo-o de significado. Tem estrutura própria, cuja compreensão se situa além da mera literalidade da regra e do dispositivo, efetivando-se nas normas5.
Nesta lógica, um dos temas pelos quais a Feira Abrin e o setor de brinquedos se interseccionam com o Direito, consiste na tributação e nos seus reflexos no mercado: nos anseios de administradores de empresas e players do mercado, na geração de emprego e renda, no comportamento dos consumidores finais, enfim, na atividade econômica em geral realizada pelosetor.
A reforma tributária entrou em vigor pela EC 132/23 e, com ela, foram insculpidos no ordenamento jurídico o IBS - Imposto sobre Bens e Serviços (art. 156-A da Constituição da República), a Contribuição sobre Bens e Serviços (art. 195, inc. V, da Constituição da República) – os quais compõem o IVA - Imposto sobre Valor Adicionado - Dual6 –, e o IS - Imposto Seletivo (art. 153, inc. VIII, da Constituição da República).
Após, com a superveniência da LC 214/25, que instituiu o IBS, de competência compartilhada entre Estados, municípios e Distrito Federal, a CBS e o IS, de competência da União, conquanto seja expressa a não inclusão do IBS e da CBS na base de cálculo do IS, no PIS - Programa de Integração Social e na Cofins - Contribuição para Financiamento da Seguridade Social, não há qualquer determinação expressa a respeito da inclusão do IBS e da CBS na base de cálculo do ICMS - Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, do IPI - Imposto sobre Produtos Industrializados e do ISS - Imposto sobre Serviços.
A controvérsia jurídica, portanto, gravita em torno do seguinte: integram a base de cálculo do ICMS, do IPI e do ISS os tributos IBS e CBS, instituídos na Constituição da República pela EC 132/23 e regulamentados pela LC 214/25?
Reveste-se de relevância a solução desta controvérsia para qualquer setor que exerça a atividade econômica – e, no plano deste estudo, para o setor de brinquedos, que abrange os fabricantes, os importadores, os distribuidores, os lojistas e os consumidores de fato, enfim, os contribuintes de direito e de fato na cadeia7 – justamente porque a exclusão ou inclusão do IBS e da CBS na base de cálculo do ICMS, do IPI ou do ISS culminaria na elevação da carga fiscal e na oneração da cadeia.
Afinal, quando se trata da tributação sobre o consumo, embora o Brasil tenha privilegiado a não-cumulatividade, a extensão da cadeia produtiva e econômica será proporcional à elevação na carga tributária aos contribuintes8, porque “os atuais tributos que incidem sobre o consumo de bens, direitos e serviços ou são parcialmente cumulativos, no caso do ICMS, PIS, Cofins e IPI, ou é tributo cumulativo (ISS)”9.
Essa cumulatividade traduz o tributo sobre tributo, ou a superposição de tributos, a qual se configura quando se inclui, na base de cálculo da exação, o valor do próprio tributo já exigido na operação anterior, do próprio tributo da própria operação (o cálculo por dentro do ICMS, por exemplo) ou de outros tributos (a base de cálculo do IPI, que inclui o ICMS e o ISS, por exemplo).
Ao instituir o IBS e a CBS, a EC 132/23 determinou que a sua implementação seria gradual e observaria o seguinte regime:
- em 2026, com alíquotas de 0,1% e 0,9%, respectivamente, sem o efetivo recolhimento, mas obrigando às empresas a emitir na nota fiscal um valor que corresponderia aos novos tributos (art. 125 do ADCT);
- em 2027, serão cobrados a CBS e o IS (art. 126 do ADCT);
- entre os anos de 2029 e 2032, será implementada a gradual redução das alíquotas de ICMS e ISS (art. 128 do ADCT);
- até 2033, serão o IBS e a CBS implementados integral e definitivamente e, até este momento, coexistirão com o ICMS e o ISS (art. 129 do ADCT).
Portanto, a atenção dirigida controvérsia sobre a inclusão do IBS e da CBS na base de calculo da exação do ISS, do ICMS e do IPI se justifica pela implementação gradual dos tributos instituídos pela EC 132/23.
Em 6/2/25, com destaque de prioridade (art. 151, inc. II, do RICD) foi sujeita à apreciação do plenário da Câmara dos Deputados pelo seu presidente, deputado Hugo Motta, o PLP 16/2510, que pretende alterar as LCs 87/96 (lei Kandir) e 214/25 “para cumprimento do art. 149-B e para aplicação do princípio da neutralidade de que trata o § 1º do art. 156-A, ambos da Constituição Federal”.
Trata-se, essencialmente, de PLP que acrescenta ao art. 13 da LC 87/96 o §8º, para delinear que não integram a base de cálculo do ICMS “os montantes dos tributos previstos nos arts. 156-A e 195, V, da Constituição Federal” (o IBS e a CBS, respectivamente), e o §9º ao art. 12 da LC 214/25, para definir a exclusão do IBS e a CBS da base de cálculo do IPI, do ICMS e do ISS.
Este estudo não pretende, de qualquer modo, esgotar a apreciação do mérito a respeito do acerto no PLP 16/25, de sua pertinência ou de sua compatibilidade com o que a Constituição da República e a LC 214/25 dispõem sobre o IBS e a CBS.
Contudo, é absolutamente pertinente e urgente a discussão sobre o tema porque o setor de brinquedos, abalado pelas inovações e lançamentos apresentados pelos players do mercado na Feira Abrin que ocorreu neste mês de março de 2025, materializa-se em um dos ramos de atividade econômica nos quais repercute a definição sobre quais serão os tributos que integrarão a base de calculo dos impostos anteriores à EC 132/23.
Para alguns dos brinquedos negociados na Feira Abrin – que não envolve apenas os fabricantes e marcas nacionais, mas também distribuidoras e importadoras – a carga fiscal pode ultrapassar 70% do valor que o consumidor final (contribuinte de fato) encontra nas prateleiras, de acordo com dados do IBPT - Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação11.
Há casos, inclusive, nos quais o setor de brinquedos enfrenta a árdua tarefa de tornar rentável e atrativa ao consumidor final a comercialização de produtos sobrecarregados com o ICMS, o PIS-Cofins, o IPI e o II - Imposto de Importação. Assim, a segurança jurídica12 e a previsibilidade do Direito são ônus de que o Estado, por meio dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, deve se desincumbir, com o fim de desembaraçar ao máximo a operação de players em um mercado que é excepcionalmente sensibilizado pela tributação e seus reflexos no exercício da atividade empresária.
Aliás, são incontáveis os casos paradigmáticos que demonstram os danos causados a setores importantes da economia nacional em razão da ausência de segurança jurídica no Direito Tributário, sendo o mais célebre deles apreciado pelo STF no Tema 69 de repercussão geral, com a fixação da tese do século e a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins13.
Diante disso, inclusive, outras controvérsias pertinentes à exclusão de tributos das bases de cálculo de outros tributos tomaram lugar perante o STF, como a inclusão do PIS-Cofins em suas próprias bases de cálculo e do ISS, de modo a revelar que a insegurança jurídica tem efeitos perniciosos para o Estado e para o contribuinte.
Por fim, salienta-se que a aplicação dos princípios constitucionais tributários, tais como a segurança jurídica, a simplicidade, a transparência e a justiça tributária ao caso é apta a solucionar a controvérsia ora analisada, resultando na compreensão de que o IVA-Dual não deve integrar a base de cálculo do ICMS, do ISS e do IPI, sendo necessária a aprovação de medida legislativa apta a delinear expressamente a exclusão em definitivo do IVA-Dual da base de cálculo dos tributos anteriores à EC 132/23, para evitar a formação de um elevado contencioso tributário sobre a exação aperfeiçoada no período de transição.
Em encadeamento entre os pontos acima suscitados, embora a Feira Abrin materialize empiricamente o que é o setor de brinquedos, refletindo o macroambiente corporativo e negocial que permeia a atividade econômica, conclui-se que inexiste um espaço civil no qual o Direito não se faça presente.
A controvérsia jurídica referente à inclusão do IBS e da CBS à base de cálculo do ICMS, do IPI e do ISS no período de transição previsto nos arts. 125 a 129 do ADCT é um caso em que os aspectos pelos quais a simplificação, a racionalização, a segurança jurídica, a previsibilidade do Direito e a aplicação dos princípios constitucionais tributários repercutem no impulsionamento e na competitividade de atividade econômica tão relevante quanto a realizada pelo setor de brinquedos e pelos profissionais que o integram, os quais se revestem de inestimável relevância para perpetuar a alegria de brincar em gerações que devem persistir com o sonho de viver em um mundo mais justo.
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1 ABRIN. Post show report. 40ª Feira Internacional de Brinquedos Abrin. ABRINQ: São Paulo, 2024. Disponível em: https://abrin.com.br. Acesso em: 16 mar. 2025.
2 AGÊNCIA BRASIL. Mercado de brinquedos cresceu 36% em vendas em 4 anos, diz Abrinq. Agência Brasil: Brasília, 2025. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com .br/economia/noticia/2025-03/mercado-de-brinquedos-cresceu-36-em-vendas-em-4-anos-diz-abrinq. Acesso em: 16 mar. 2025.
3 DWORKIN, Ronald. O império do direito / Ronald Dworkin; tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 492. Para Dworkin, o Direito é inexaurível fonte de soluções para casos concretos, garantindo resposta até mesmo aos casos situados na zona de penumbra, por meio da aplicação de estrutura argumentativa fundada na interpretação que dele é própria e na jurisprudência.
Assim, “o império do direito é definido pela atitude”, que é “construtiva: sua Finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado”. DWORKIN, Ronald. Op. cit. p. 492. Cf.: TRF-4 – COR 5019555-75.2014 .4.04.0000. Rel. Des. Federal Cláudia Cristina Cristofani. T7 – Sétima Turma. Julgado em 07/10/2014.
4 Este mundo fenomênico se resume à aparição fenomenológica das coisas, na convergência entre o horizonte hermenêutico e a facticidade. HEIDEGGER, Martin. Ontologia: (hermenêutica da facticidade) / Martin Heidegger; tradução Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes, 2012.
5 As normas jurídicas são, neste caso, compreendidas como o produto da interpretação do dispositivo e “não atuam somente sobre a compreensão de outras normas”, mas sim “sobre a compreensão dos próprios fatos e provas”, sendo a sua aplicação condicionada ao exame de pertinência e valoração. ÁVILA, Humberto. Sistema constitucional tributário / Humberto Ávila. – 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 103.
6 Trata-se de imposto, IBS, e contribuição à seguridade social, CBS, duas espécies diversas de tributo. A respeito, Lopes Becho sublinha que “sistematicamente, tem havido desvinculação das receitas, o que acaba por fragilizar a distinção”. BECHO, Renato Lopes. A Criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). In: OLIVEIRA, Ana Claudia Borges de; PURETZ, Tadeu (coords.). Coletânea 100 anos do CARF. São Paulo: NSM Editora, 2024. p. 94.
7 A nomenclatura do consumidor final como sinônimo do contribuinte de fato é amplamente respaldada por precedentes do STF: a título de exemplo, cita-se o julgamento do Tema n. 87 de Repercussão Geral, no qual se fixou a tese de que a base de cálculo do PIS-Cofins é composta pelas vendas inadimplidas, por integrarem a receita da pessoa jurídica, recolhendo-se o tributo sobre as operações realizadas, malgrado os valores a elas correspondentes não sejam vertidos à empresa prestadora em razão da inadimplência do usuário, o contribuinte de fato. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 586.482. Rel. Min. Dias Toffoli. TP – Tribunal Pleno. Julgado em 23/11/2011. Publicado no DJe-119 em 19/06/2012.
8 Neste sentido, Helena Costa aponta que, a “seletividade em função da essencialidade do produto, mercadoria ou serviço” e a vedação à cumulatividade (arts. 153, §3º, inc. I e II, e 155, §2º, inc. I e III, da Constituição da República) são “reveladoras da preocupação constitucional com o contribuinte de fato”. COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário: Constituição e Código Tributário Nacional / Regina Helena Costa. - 13. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2023. p. 66. Para Aliomar Baleeiro, inclusive, a não cumulatividade deve ser compreendida como princípio constitucional tributário. BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 6. ed. rev. e atual. por Flavio Bauer Novelli. Rio de Janeiro: Forense, 1985; 7. ed. atual. por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 447.
9 BRASIL. Câmara dos Deputados Projeto de Lei Complementar n. 16/2025 (Projeto de Lei Complementar e Justificação). Brasília: Câmara dos Deputados, 2025.
10 ALCOFORADO, Antônio Machado Guedes. A Não Cumulatividade do IVA-dual (CBS e IBS) Prevista na Proposta de Reforma Tributária. Revista de Direito Tributário da APET, São Paulo, n. 49, p. 239 – 263, out. 2023/mar. 2024.
11 IBPT. Imposto de brinquedos e eletrônicos ultrapassa 70%. Disponível em: https://ibpt.org.br/imposto-de-brinquedos-e-eletronicos-ultrapassa-70/. Acesso em: 16 mar. 2025.
12 A proteção da segurança jurídica, princípio fundamental e “norma imediatamente finalística”, insere-se em sistematização circular, por atuar “na interpretação do sentido das regras de legalidade, irretroatividade e anterioridade”.ÁVILA, Humberto. Op. cit. p. 92. Nota-se, ainda, que Antonio Carrazza sublinha a leitura do direito tributário constitucional a partir dos elementares princípios republicano e federativo, da autonomia municipal, da anterioridade, da legalidade e da segurança jurídica. CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de direito constitucional tributário. 19. ed. 2. tir. Sa~o Paulo: Malheiros, 2003; 26. ed., rev., ampl. e atual. ate' a EC n. 64/2010. Sa~o Paulo: Malheiros, 2010.
13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – RE 574.706. Rel. Min. Cármen Lúcia. TP – Tribunal Pleno. Julgado em 15/03/2017. Divulgado em 29/09/2017. Publicado no DJe n. 223 em 02/10/2017.