Nos últimos anos, o setor de jogos eletrônicos tem demonstrado um crescimento exponencial, impulsionado por avanços tecnológicos, ampliação do acesso digital e forte capacidade de engajamento das novas gerações. Naturalmente, esse cenário tem atraído o interesse de investidores e compradores estratégicos, motivando uma onda de operações de fusões e aquisições (M&A) voltadas para estúdios independentes e desenvolvedores de jogos.
Em tais operações, a PI - propriedade intelectual ocupa posição central na análise de viabilidade e valuation do negócio. Em contraste com setores mais tradicionais, nas empresas de jogos eletrônicos os ativos intangíveis — como o código-fonte, personagens, marcas, trilha sonora, enredo e design visual — são os elementos que concentram o valor econômico da operação. Por isso, a condução de uma due diligence adequada deve se voltar, em grande medida, à investigação minuciosa desses ativos.
É imprescindível verificar a cadeia de titularidade de todos os ativos intelectuais relevantes. Muitos estúdios contam com equipes compostas por freelancers, prestadores de serviço autônomos ou colaboradores remotos, cujos contratos, por vezes, são precários ou ausentes. Na ausência de cláusulas expressas de cessão de direitos autorais, há risco jurídico real de que a empresa-alvo não detenha integralmente os direitos sobre partes substanciais do jogo, comprometendo sua exploração econômica ou mesmo sua permanência no mercado.
Embora o direito autoral, no Brasil, prescinda de registro para sua validade, é recomendável que os ativos estejam registrados junto ao INPI, como forma de facilitar a prova de titularidade. Da mesma forma, as marcas associadas aos jogos — que muitas vezes correspondem ao próprio nome do jogo ou da empresa — devem estar devidamente depositadas e concedidas.
Em negócios com operação internacional, a proteção da PI em outras jurisdições (via tratados multilaterais ou registros diretos) também se torna um fator de atenção relevante.
A composição de jogos frequentemente envolve o uso de softwares, bibliotecas, trilhas sonoras e assets visuais de terceiros, muitos deles sujeitos a licenças específicas, inclusive licenças open source. A depender das condições contratuais, pode haver limitações para uso comercial ou obrigações de compartilhamento do código-fonte (copyleft), o que pode inviabilizar a manutenção de segredos industriais ou afetar o modelo de negócio da empresa.
É recomendável investigar eventuais ações judiciais, notificações extrajudiciais ou disputas administrativas envolvendo a PI da empresa. Litígios com ex-colaboradores, concorrentes ou plataformas de distribuição podem representar passivos ocultos relevantes, além de impactar a reputação do negócio.
Um aspecto frequentemente negligenciado diz respeito às medidas internas de proteção da PI. A ausência de políticas eficazes de segurança da informação, controle de acesso ao código-fonte e uso de acordos de confidencialidade (NDAs) com funcionários e parceiros pode fragilizar a proteção dos ativos e expor o comprador a riscos de vazamento, concorrência desleal ou perda de vantagem competitiva.
Grande parte dos jogos eletrônicos é distribuída por meio de plataformas como Steam, App Store, Google Play, entre outras. É necessário analisar os contratos, termos de uso e políticas dessas plataformas, identificando possíveis riscos contratuais, cláusulas de exclusividade, dependência tecnológica e vulnerabilidades relacionadas à monetização.
Considerações finais
Em M&As que envolvem empresas de jogos eletrônicos, a análise da propriedade intelectual deve ir além da verificação formal de existência dos ativos. É necessário assegurar que tais ativos estejam regularmente constituídos, juridicamente protegidos e livres de passivos ocultos que possam comprometer o sucesso da operação.
A complexidade técnica do setor demanda uma atuação coordenada entre especialistas jurídicos e equipes técnicas, com compreensão aprofundada da lógica criativa, comercial e tecnológica que permeia a indústria de games. O cuidado com a PI, nesse contexto, não é apenas um detalhe — é a própria sustentação do negócio.