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Crimes societários: Breve resumo

Neste artigo fazemos um resumo sintético dos principais crime societários.

11/4/2025

As S.A.s - Sociedades Anônimas são pilares da economia moderna, mobilizando capitais, gerando empregos e impulsionando a inovação. Sua estrutura complexa, que separa propriedade (acionistas) e gestão (administradores), e sua capacidade de captar recursos no mercado de capitais, no entanto, também abrem espaço para condutas ilícitas específicas, que podem gerar graves consequências não apenas financeiras e reputacionais, mas também criminais para os indivíduos envolvidos.

Embora a lei 6.404/76, a lei das S.A., seja o marco fundamental que rege a criação, organização, direitos e deveres dentro dessas companhias, ela própria, após diversas reformas (notadamente a lei 10.303/01), não concentra mais em seu texto a maioria das tipificações penais. Os crimes classicamente associados ao ambiente das S.A.s encontram-se hoje dispersos, principalmente, na lei 6.385/76 (que regula o mercado de valores mobiliários), no CP e em legislações extravagantes que tratam de temas como ordem tributária, sistema financeiro e meio ambiente.

Este artigo tem como objetivo apresentar um resumo dos principais tipos penais que mais diretamente se relacionam com a vida de uma Sociedade Anônima, explicando suas condutas, os bens jurídicos protegidos e sua conexão com os deveres e responsabilidades estabelecidos, ainda que indiretamente, pela lei 6.404/76. Compreender esses crimes é essencial para administradores, conselheiros, acionistas, auditores e todos os profissionais que atuam nesse ambiente, visando a prevenção e a mitigação de riscos penais.

1. O panorama legislativo: A migração dos crimes societários

Originalmente, a lei 6.404/76 continha um capítulo específico sobre disposições penais (capítulo XIX em sua redação original), que tratava de crimes como prestação de informação falsa, exercício abusivo de poder, entre outros. Contudo, buscando maior especialização e adequação, especialmente com o desenvolvimento do mercado de capitais, muitas dessas condutas foram redefinidas, aprimoradas e transferidas para outros diplomas.

A lei 10.303, de 2001, foi um marco nessa reestruturação, alterando tanto a LSA quanto a lei 6.385/76 (LMC - Lei do Mercado de Capitais). Ela inseriu na LMC tipos penais mais específicos e graves para condutas que afetam a confiança e a lisura do mercado, como a manipulação de mercado e o uso indevido de informação privilegiada (insider trading).

Outras condutas fraudulentas na gestão de S.A.s permaneceram ou foram especificadas no CP, como no art. 177, enquanto crimes relacionados a áreas específicas de atuação da empresa (tributária, ambiental, falimentar, etc.) são regidos por suas leis próprias, mas cuja prática no âmbito de uma S.A. atrai a discussão sobre a responsabilidade dos seus gestores.

Portanto, analisar os "crimes da Lei das S.A." hoje significa, necessariamente, navegar por esse conjunto de leis interconectadas, tendo a lei 6.404/76 como pano de fundo que estabelece os deveres cujo descumprimento doloso pode configurar um crime tipificado em outra norma.

2. Crimes contra o mercado de capitais (lei 6.385/76)

As S.A.s de capital aberto, por negociarem seus valores mobiliários (ações, debêntures, etc.) em bolsa ou balcão organizado, estão sujeitas a um conjunto específico de crimes previstos na lei 6.385/76, que visam proteger a confiança, a transparência e a eficiência do mercado. Os mais relevantes são:

2.1. Manipulação de mercado (Art. 27-C da lei 6.385/76):

2.2. Uso indevido de informação privilegiada

2.3. Exercício irregular de cargo, profissão, atividade ou função 

Estes crimes da lei 6.385/76 são de ação penal pública incondicionada e sua investigação e processo frequentemente envolvem a colaboração entre a CVM, o Ministério Público Federal e a polícia Federal.

3. Fraudes e abusos na fundação ou administração de S.A.s (CP - Art. 177)

O CP reserva um artigo específico (Art. 177) para tratar de diversas condutas fraudulentas que podem ocorrer no nascimento ou na gestão de uma sociedade por ações, visando proteger o patrimônio da própria companhia, de seus acionistas e de terceiros que com ela se relacionam. Podem ser responsabilizados os fundadores, diretores, gerentes, liquidantes e membros do conselho fiscal ou de administração.

As condutas tipificadas nos parágrafos do art. 177 incluem:

Bem jurídico protegido (Art. 177): Patrimônio da sociedade, dos acionistas (especialmente minoritários) e de terceiros (credores), além da confiança no funcionamento regular das S.A.s. Pena: Reclusão, de 1 a 4 anos, e multa. Se o crime é cometido para lesar a economia popular, a pena pode ser aumentada.

4. Outros crimes relevantes no contexto das S.A.s (fontes diversas)

Além dos crimes específicos do mercado de capitais e do art. 177 do CP, diversas outras condutas criminosas podem ocorrer no âmbito de uma S.A., tipificadas em leis extravagantes:

5. A responsabilidade pessoal e a importância da prevenção

Como ressaltado inicialmente, embora a lei das S.A. não tipifique diretamente a maioria desses crimes, ela estabelece os deveres fiduciários dos administradores (diligência, lealdade - arts. 153 a 158), cujo descumprimento doloso ou culposo pode ser o elo para a responsabilização penal por crimes previstos em outras leis.

A responsabilidade penal será sempre pessoal, exigindo a comprovação da conduta (ação ou omissão relevante – art. 13, §2º, CP) e do elemento subjetivo (dolo ou culpa) do administrador ou sócio específico. A mera posição no organograma não basta.

Nesse contexto, a implementação de programas de compliance e integridade robustos e efetivos torna-se não apenas uma boa prática de governança, mas uma ferramenta essencial de prevenção desses delitos e de mitigação da responsabilidade pessoal dos gestores. Um programa eficaz, com avaliação de riscos, controles internos, treinamentos, canais de denúncia e investigações, demonstra a diligência da empresa e de seus líderes em cumprir a lei, podendo afastar a alegação de omissão culposa ou até mesmo de dolo eventual.

Da mesma forma, a realização de due diligence aprofundada em operações de M&A, em contratações de terceiros e na análise de novos negócios é fundamental para identificar e evitar riscos criminais preexistentes ou potenciais.

Conclusão

Embora a lei 6.404/76 não seja, hoje, a principal fonte de tipos penais relacionados às Sociedades Anônimas, o universo de atuação dessas empresas está permeado por riscos criminais relevantes, definidos em um mosaico de leis que vão do CP à legislação do mercado de capitais, tributária, ambiental, concorrencial e anticorrupção.

Para sócios, administradores, conselheiros e demais gestores, compreender a natureza desses crimes – desde o uso de informação privilegiada e manipulação de mercado até fraudes contábeis, sonegação fiscal e danos ambientais – é o primeiro passo para uma gestão responsável e segura. A responsabilidade penal é pessoal e pode alcançar aqueles que, por ação ou omissão dolosa ou culposa, contribuem para a prática delitiva no âmbito corporativo.

Investir em estruturas sólidas de governança, em programas de compliance efetivos, em auditorias independentes, em due diligence criteriosa e, fundamentalmente, em assessoria jurídica especializada tanto na prevenção quanto na defesa, é o caminho indispensável para que as Sociedades Anônimas e seus líderes possam prosperar dentro da legalidade e da ética, protegendo seu patrimônio, sua reputação e, acima de tudo, sua liberdade.

Marcelo Campelo
Advogado atuante em Direito Criminal, com experiência de 25 anos. Trabalha na defesa de crimes contra a vida, contrata o patrimônio, dentre outros. Realiza audiência de custódia.

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