Migalhas de Peso

Imputação de responsabilidades aos gestores públicos pelas Cortes de Contas

Auditorias de Tribunais de Contas falham na definição da matriz de responsabilidades e (em regra) inobservam o princípio da segregação de funções nas acusações contra gestores públicos.

16/4/2025

As notas de austeridade havidas nos planos constitucional e normativo de nosso ordenamento jurídico em relação aos atos de gestão dos recursos públicos induzem frequentemente as auditorias dos órgãos de controle externo, especialmente às dos Tribunais de Contas estaduais, a avaliarem a conduta dos gestores sob uma ótica extremamente legalista e fundada (no mais das vezes) em exigências caracterizadoras de evidentes excessos de rigores formais.

Observam-se diariamente em diversos relatórios técnicos de auditagens imputações de responsabilidade civil-administrativa sem quaisquer incursões pormenorizadas sobre a dinâmica dos fatos inerentes aos processos decisórios tomados, na perspectiva de mapear-se e considerar-se (com a devida precisão) toda a concatenação e a sucessão da prática dos atos administrativos exarados por diferentes agentes públicos até a efetiva liquidação e pagamento da despesa.

A não definição clara e precisa das matrizes de responsabilidades de cada um dos agentes e partícipes na cadeia gerencial pela própria Administração Pública como também a deficiência técnica quanto à sua não correta aferição no curso dos processos administrativos fiscalizatórios acabam, corriqueiramente, induzindo o auditor/controlador a centrar seus achados e apontar suas acusações em desfavor do chefe do Poder Executivo (governador, prefeito) ou à autoridade máxima da instituição (ex.: diretor presidente de uma autarquia) atribuindo-lhes, pois, a responsabilidade pela prática de um fato que, por ato próprio, não lhe dera diretamente causa, sob o relês e atrofiado argumento de que tal gestor (chefe) figura como o principal ordenador da despesa.

Tal premissa apresenta-se por demais obsoleta, injusta e equivocada na medida em que as autoridades administrativas máximas não podem ser direta e unicamente responsabilizadas pelas Cortes de Contas porque, nessa condição, deveriam, segundo a ótica imperativa e punitivista, ser e estar, ao mesmo tempo, de forma utópica, onipresentes e oniscientes em todos os espaços de atuação e gestão de sua instituição ou entidade, como se a sua responsabilidade fosse do tipo objetiva, universal, elástica e englobadora em relação a todos os demais agentes públicos que estão sob o seu gerenciamento e comando, o que é, decerto, humanamente impossível em termos práticos ordinários.

A sistemática da responsabilidade civil subjetiva, a teoria da causalidade adequada (cf. art. 403 do CC), o princípio da segregação das funções (cf. arts. 5º e 7º, §1º, da lei 14.133/21 - NLLC), os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade aplicável aos atos administrativos, o dever do órgão de controle externo definir com a máxima certeza/probabilidade a materialidade e a autoria das infrações administrativas, bem como do grau de influência do agente e partícipe na tomada de decisão final quanto ao bom uso do recurso público — dentre muitos outros argumentos — não nos permite admitir que a responsabilidade do gestor seja configurada por “osmose” e em decorrência da assunção indevida e imprópria de responsabilidades de outros agentes e gerenciadores da coisa pública.

As máximas do Direito Romano de viver honestamente (honeste vivere), não lesar a ninguém (alterum neminem laedere), de dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere) e de responder o agente por danos na medida de sua culpabilidade, princípios régios do instituto da responsabilidade civil aquiliana incorporados (com as devidas adaptações) ao Direito Público, permite-nos retrucar e contestar com veemência a tese e a premissa equivocada de que o ordenador de despesa deva ser, ao fim e ao cabo, independentemente das reais circunstâncias e desdobramentos dos casos concretos, taxado implacavelmente como o responsável-mor por todos os problemas relacionados aos maus gastos ou demais ilícitos civis e administrativos ocorridos no exercício de sua administração.

Não! “A César, o que é de César!”

A instrução deficitária e outras inconsistências persecutórias promovidas pelos corpos de auditoria e demais intervenientes nos processos administrativos fiscalizatórios e apuratórios instaurados pelos órgãos de controle externo não devem servir de lastro e justa causa jurídica plausível para uma condenação de ressarcimento de supostos danos causados ao erário (“débitos”), a multas, suspensões, proibições e sanções em geral.

Os meios empregados pelo mau gestor, na perspectiva dos atos de gestão que lhe são afetos, devem sim justificar os fins ilícitos ou espúrios advindos das constatadas falhas na execução de despesas inadequadas dilapidadoras dos recursos públicos, e não o contrário.

A pretensão acusatória e punitiva estatal (ius puniendi) no âmbito do Direito Administrativo Sancionador relegada ao múnus público dos órgãos de controle externos não pode fundar-se e contaminar-se pela antiquada e inaceitável filosofia maquiavélica de que os fins sempre justificarão os meios. Não!

O resultado lesivo advindo do apontado mau uso do dinheiro público por si só, isoladamente considerado, não é suficientemente capaz de caracterizar responsabilidade administrativa do agente público. A caracterização de sua má e contestável conduta apurada ao longo de todo o iter procedimental empregado para a prática do ato de realização da despesa é (e continuará sendo) o elemento volitivo maior (ânimo) necessário para atestar-se o nexo de causalidade entre o seu agir (ou não agir) e o cometimento da suposta infração que lhe está sendo imputada, sempre e quando tal proceder comissivo ou omissivo configure, de forma indubitável, erro grosseiro ou dolo (cf. art. 28 do decreto-lei 4.657/1942 - LINDB), e nunca com fundamento em culpa por falha na escolha (in eligendo) ou na vigilância (in vigilando) em relação aos atos realizados por outros agentes, como (há muito) temos observado no exercício da advocacia na seara administrativa.

É preciso urgentemente que os Tribunais de Contas tratem com mais atenção e seriedade o dever legal que têm de bem e exaustivamente apurarem-se as matrizes de responsabilidades dos agentes públicos para que tanto as imputações de más práticas de gestão quanto os consequentes juízos condenatórios lançados pelos Conselhos de Contas sejam direcionados e aplicados aos reais, diretos e verdadeiros infratores, na exata proporção e medida de suas respectivas culpabilidades e interferências concretas na cadeia de atuação gerencial pública, como medida de equidade e de Justiça baseada no binômio de causa (prius) e efeito (posterius).

Hilário de Castro Melo Júnior
Advogado, Doutor em Direito pela Universidade de Salamanca, MBA em Governança Pública e Gestão Administrativa, Professor Adjunto UFAC, Desembargador Eleitoral TRE/AC (jurista), Consultor jurídico.

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