A indenização por dano moral é, por natureza, uma medida subjetiva. Não existe, e nem deve existir, uma tabela fixa aplicável a todas as situações. O juiz, ao decidir, precisa considerar o contexto da ofensa, a repercussão do fato na vida do ofendido e, sobretudo, o impacto reparador e pedagógico da condenação para o ofensor. É uma operação que exige sensibilidade, ponderação e, principalmente, aderência à realidade.
Contudo, o que se vê no dia a dia forense é que essa subjetividade vem sendo gradualmente substituída por um automatismo perigoso. A segurança jurídica — que deveria representar estabilidade com justiça — tem sido confundida com replicação. E, nesse processo, a jurisprudência corre o risco de perder contato com o tempo.
Foi com esse pano de fundo que se estruturou uma pesquisa de natureza epistemológica e empírica, voltada a investigar como o TJ/RJ tem fixado valores de indenização por danos morais ao longo do tempo, especialmente em demandas envolvendo cancelamento ou atraso de voos.
O recorte adotado foi temático, temporal e local. O foco se concentrou em ações indenizatórias por interrupções em viagens, sobretudo internacionais, que costumam implicar não apenas frustração pessoal, mas também prejuízos financeiros expressivos. O intervalo analisado compreendeu decisões proferidas entre 2007 e 2010 e, em paralelo, entre 2020 e 2025 — uma janela de aproximadamente duas décadas. Já o recorte local limitou-se ao próprio TJ/RJ, tribunal que historicamente adota parâmetros indenizatórios relativamente estáveis.
O resultado chama atenção: tanto nas decisões mais antigas quanto nas mais recentes, o valor majoritariamente arbitrado a título de danos morais é R$ 10 mil quase sempre justificado com expressões como "valor razoável, proporcional e em consonância com a jurisprudência desta Corte".
Citações – 2007 a 2010:
"Atraso de voo internacional com perda de reunião profissional. Dano moral fixado em R$ 10 mil TJ/RJ, APL 0009068-59.2006.8.19.0001, j. 13/2/2007
"Atraso + ausência de comida vegetariana. Indenização de R$ 12 mil por autor." TJ/RJ, APL 0135753-53.2002.8.19.0001, j. 17/7/2007
"Atraso e extravio de bagagem. Fixado R$ 10 mil a título de dano moral." TJ/RJ, APL 0158570-38.2007.8.19.0001, j. 9/12/2008
"Atraso de 10 horas sem assistência. Valor majorado para R$ 10 mil." TJ/RJ, APL 0271903-65.2007.8.19.0001, j. 18/2/2009
"Atraso e cancelamento. Mãe amamentando bebê no chão. R$ 10 mil para cada." TJ/RJ, APL 17398-00.2009.8.19.0001, j. 30/4/2009
"Atraso de 24h. Ausência de informações. R$ 10 mil." TJ/RJ, APL 0007400-16.2007.8.19.0002, j. 9/6/2009
"Atraso + extravio de bagagem. R$ 10 mil para cada autor." TJ/RJ, APL 0167857-25.2007.8.19.0001, j. 22/7/2009
"Atraso por overbooking. R$ 10 mil por dano moral." TJ/RJ, APL 0125272-55.2007.8.19.0001, j. 23/11/2009
"Perda de festa de aniversário de 95 anos. R$ 10 mil." TJ/RJ, APL 0125272-55.2007.8.19.0001, j. 23/11/2009
Citações – 2020 a 2025:
"Atraso de 24h em voo nacional. Majoração para R$ 10 mil por autor." TJ/RJ, APL 0015673-11.2017.8.19.0203, j. 30/9/20
"Atraso + falta de assistência em voo remarcado. R$ 10 mil por passageiro." TJ/RJ, APL 0164798-09.2019.8.19.0001, j. 12/4/23
"Cancelamento de voo nos EUA. R$ 10 mil para cada." TJ/RJ, APL 0827762-39.2022.8.19.0209, j. 28/11/23
"Atraso e pernoite forçado. R$ 10 mil para cada autora." TJ/RJ, APL 0861670-95.2023.8.19.0001, j. 23/1/24
"Atraso internacional. Majoração de R$ 5 mil para R$ 10 mil." TJ/RJ, APL 0814307-28.2022.8.19.0202, j. 5/2/24
"Cancelamento com perda de compromissos. R$ 10 mil fixados. TJ/RJ, APL 0830509-04.2022.8.19.0001, j. 1/2/24
"Atraso em noite de Natal. Fixado R$ 10 mil por danos morais." TJ/RJ, APL 0036937-35.2022.8.19.0001, j. 14/5/24
"Atraso de 13h na Alemanha. R$ 10 mil arbitrados." TJ/RJ, APL 0012738-72.2020.8.19.0209, j. 10/8/23
"quantum... fixado R$ 10 mil. Verba compensatória adequada" TJ/RJ, APL 0111509-59.2022.8.19.0001, j. 3/4/24
De referência, o valor passou a ser dogma. Em muitos casos, sequer se discute o contexto — limita-se a citar a "jurisprudência consolidada", sem qualquer análise da inflação, do aumento no custo das passagens, da severidade do transtorno ou da repetição da conduta pelas companhias.
"Tenho que o montante compensatório arbitrado em R$ 10 mil se revela razoável, proporcional, equilibrado e consonante com importantes julgados desta Corte." TJ/RJ, APL 0012738-72.2020.8.19.0209, j. 10/8/23.
Ocorre que R$ 10 mil em 2007 não têm o mesmo valor que em 2025. Corrigido pelo IGP-M da FGV, esse montante hoje corresponderia a R$ 34.347,80. A defasagem, no entanto, vai além da mera atualização monetária: em 2007, o salário mínimo era de R$ 380 o que fazia com que uma indenização de R$ 10 mil equivalesse a mais de 25 salários mínimos. Em 2025, com o salário mínimo fixado em R$ 1.412,00, o mesmo valor corresponde a pouco mais de sete salários. Em termos proporcionais, houve uma perda de quase quatro vezes na capacidade de impacto econômico da reparação — revelando o esvaziamento silencioso da função indenizatória.
A distorção torna-se ainda mais gritante quando se observa o pano de fundo dos próprios casos analisados. Em 2009, uma passagem aérea para a Europa custava, em média, entre R$ 1.500 e R$ 2 mil. Hoje, esse mesmo bilhete internacional dificilmente sai por menos de R$ 8 mil. A jurisprudência, no entanto, continua afirmando que a frustração de uma viagem desse porte "vale" R$ 10 mil — como se o tempo, a inflação e a realidade econômica fossem irrelevantes para fins de quantificação do dano.
É como se, em pleno 2025, o Judiciário mantivesse o mesmo discurso — “justo, equilibrado, razoável” —, mas ignorasse que a régua há muito deixou de medir com exatidão.
Essa jurisprudência congelada cria um paradoxo: de um lado, afirma-se que a indenização cumpre função compensatória e pedagógica. De outro, esvazia-se seu conteúdo prático a cada ano, ignorando o valor real do dinheiro, uma omissão diante da mudança do mundo.
O que este levantamento revela é mais do que uma curiosidade estatística. Ele denuncia um descompasso entre a prática jurisdicional e a realidade econômica. O valor de R$ 10 mil se tornou, ao longo dos anos, uma cifra mágica: suficientemente elevada para evitar críticas por suposta banalização do dano moral, mas suficientemente confortável para ser aplicada sem grande esforço argumentativo. Ocorre que o tempo não para — e a jurisprudência não deveria parar com ele.
Já passou da hora de se discutir, com a seriedade que o tema exige, mecanismos de atualização e calibragem do dano moral fixado judicialmente. O mundo ideal talvez comportasse a vinculação, ainda que meramente referencial, das indenizações por dano moral ao salário mínimo vigente. Trata-se de um critério que, ao menos em tese, evolui conforme a maturidade do sistema monetário, acompanhando minimamente o custo de vida da população.
Contudo, a Constituição Federal, em seu art. 7º, IV, proíbe expressamente a vinculação do salário mínimo para qualquer fim, salvo quando utilizado como base de cálculo para o próprio salário mínimo ou em prestações de natureza trabalhista. A jurisprudência do STF já consolidou que não se pode vincular benefícios, tarifas ou obrigações a múltiplos do salário mínimo, sob pena de violação dessa regra.
Nesse cenário, impõem-se alternativas mais viáveis — e igualmente eficazes — para evitar que a jurisprudência se transforme em instrumento de desatualização do próprio direito. Entre elas, destacam-se:
- A revisão periódica dos parâmetros jurisprudenciais adotados pelos tribunais, com base em índices oficiais de inflação (como IPCA ou IGP-M), podendo o próprio tribunal editar enunciados orientativos de atualização, nos moldes das tabelas de honorários da OAB;
- A publicação de relatórios estatísticos pelos tribunais, evidenciando a evolução dos valores fixados a título de danos morais nas mais diversas matérias, permitindo à sociedade acompanhar com clareza a trajetória indenizatória da jurisprudência;
- A inclusão de fundamentos econômicos nas decisões, de modo que, ao manter um patamar nominal fixo, o julgador indique de forma expressa as razões pelas quais o faz, considerando o impacto inflacionário ou eventuais elementos de exceção que justifiquem a medida.
Nada disso implica tabelamento, automatismo ou engessamento. Ao contrário: são mecanismos que preservam o que há de mais relevante na fixação do dano moral — seu poder de comunicar justiça.
Porque, ao fim e ao cabo, a indenização não deve apenas reparar: ela deve significar.
E o Judiciário, como instituição essencial à confiança social, não pode continuar dizendo em 2025 que uma perda de viagem internacional vale o mesmo que dizia em 2007 — a não ser que esteja disposto a aceitar que sua jurisprudência, por mais coerente que pareça, seja percebida apenas como ruído.