Migalhas de Peso

Pirâmides não constituem crime contra o mercado de capitais

Segundo o STJ o crime de pirâmide financeira encontra maior correspondência na definição estabelecida pela lei 1.521/51, enquadrando-se como crime contra a economia popular.

15/4/2025

A jurisprudência do STJ, em recente análise de casos envolvendo esquemas fraudulentos conhecidos popularmente como pirâmides financeiras, tem esclarecido com sofisticada precisão técnica a necessidade de um correto enquadramento penal dessas condutas, afastando qualquer hipótese de enquadramento errôneo em tipos penais que não refletem a natureza real dessas práticas delituosas.

De início, impende destacar que os esquemas conhecidos como pirâmides financeiras configuram-se por uma estrutura precária, dependente exclusivamente do recrutamento constante de novos participantes que, atraídos por promessas mirabolantes e lucratividade exacerbada, aportam recursos na expectativa de ganhos expressivos. Não obstante, conforme definido magistralmente pelo ministro Reynaldo Soares da Fonseca no emblemático julgamento do conflito de competência 146.153, inexiste qualquer atividade produtiva ou financeira legítima subjacente a essas estruturas, restando, ao fim e ao cabo, apenas uma transferência de recursos dos novos ingressantes para aqueles posicionados no ápice hierárquico da pirâmide.

Nesse contexto, segundo entendimento consolidado pelo STJ, o delineamento da estrutura típica do crime de pirâmide financeira encontra maior correspondência na definição estabelecida pela lei 1.521/51, em seu art. 2º, inciso IX, enquadrando-se, portanto, como crime contra a economia popular, e jamais como crime contra o mercado de capitais ou contra o sistema financeiro nacional.

Tal afirmação é corroborada pelo julgamento do habeas corpus 293.052, no qual restou bem esclarecido que as condutas associadas às pirâmides financeiras não se confundem, de maneira alguma, com aquelas previstas na lei 6.385/76, que trata especificamente de crimes contra o mercado de capitais. No caso concreto analisado pelo STJ, uma empresa oferecia aos consumidores a associação a um sistema de venda de rastreadores, camuflando a captação de recursos ilícitos sob o disfarce de uma atividade comercial legítima. O Ministério Público tentou caracterizar as condutas como crimes contra o mercado de capitais, sustentando que haveria exercício ilegal de atividade de administração de carteira de investimentos. Todavia, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca, com elevado rigor técnico, esclareceu que tal hipótese era inaplicável, pois não havia, na conduta imputada, qualquer correspondência efetiva às atividades típicas de administradores de carteira ou assemelhados.

A distinção traçada pelo STJ é essencial, uma vez que protege a segurança jurídica ao impedir a extensão indevida de figuras típicas próprias do mercado financeiro ou de capitais a condutas que, embora gravosas e merecedoras de punição exemplar, devem ser sancionadas sob outro prisma normativo. Assim, evita-se também a equivocada atração de competência para a Justiça Federal, mantendo-se intacto o princípio da competência material estadual estabelecida pela súmula 498 do STF.

Com efeito, na decisão referente ao conflito de competência 170.392, envolvendo investimentos em criptomoedas, o ministro Joel Ilan Paciornik reforçou o entendimento de que, na ausência explícita de elementos que demonstrem evasão de divisas ou crimes de lavagem de dinheiro diretamente ligados ao prejuízo de bens ou interesses da União, permanece indiscutivelmente a competência da Justiça Estadual. Tal decisão consolida de forma definitiva o entendimento de que pirâmides financeiras, mesmo quando revestidas de aparente complexidade ou vinculadas a mercados emergentes como o de criptoativos, não devem ser confundidas ou erroneamente enquadradas como delitos contra o mercado financeiro ou de capitais, salvo evidências robustas em sentido contrário.

Em outra esfera de análise técnica, na apreciação do recurso em habeas corpus 132.655, o ministro Rogerio Schietti Cruz elucidou a impossibilidade do bis in idem ao imputar conjuntamente os delitos de estelionato e crime contra a economia popular a uma mesma conduta de pirâmide financeira. Esse julgamento, de precisão técnica irretocável, esclareceu ainda mais as fronteiras delicadas entre os tipos penais, realçando que o estelionato requer vítimas determinadas e individualizadas, enquanto o delito contra a economia popular caracteriza-se pela indeterminação ou generalidade das vítimas.

Tal entendimento foi corroborado na decisão do habeas corpus 464.608, na qual o ministro aposentado Nefi Cordeiro esclareceu de maneira inequívoca que, ao captar investidores em quantidade indeterminada e genericamente definida, a conduta afastava-se completamente da configuração do crime de estelionato, sendo cabível exclusivamente a imputação como crime contra a economia popular, confirmando a coerência doutrinária e jurisprudencial do Tribunal.

Deste modo, resta evidente que, embora altamente nocivas e criminosas, as chamadas pirâmides financeiras não constituem crimes contra o mercado de capitais, não se confundem com crimes financeiros em sentido estrito e tampouco se enquadram, necessariamente, no delito de estelionato. A jurisprudência consolidada do STJ impõe, assim, um dever de rigor técnico àqueles que operam no sistema judiciário, visando a correta classificação dos fatos para assegurar uma atuação jurisdicional harmônica, efetiva e tecnicamente correta.

Conclui-se, portanto, que a polêmica gerada pela afirmação aparentemente audaciosa de que “pirâmides não constituem crime contra o mercado de capitais” encontra pleno amparo no entendimento cristalizado e robustamente detalhado pelo STJ. Tal orientação, longe de significar qualquer forma de condescendência ou minimização da gravidade dessas condutas fraudulentas, apenas reafirma a importância imprescindível da adequada qualificação jurídica, garantindo precisão técnica, segurança jurídica e coerência doutrinária no enfrentamento desses ilícitos, protegendo assim, com rigor e responsabilidade, o sistema econômico e a ordem jurídica brasileira.

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BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Os quatro lados de um projeto de ruína: as pirâmides financeiras segundo a jurisprudência do STJ. STJ Notícias, 18 set. 2022. Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2022/18092022-Os-quatro-lados-de-um-projeto-de-ruina-as-piramides-financeiras-segundo-a-jurisprudencia-do-STJ.aspx. Acesso em: 11 abr. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência n. 146.153/SP (2016/0098236-2). Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Terceira Seção. Autuado em: 05 abr. 2016. Arquivado em: 06 jun. 2016. Processo eletrônico. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=CC%20146153. Acesso em: 11 abr. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus n. 132.655/RS (2020/0206191-0). Relator: Ministro Rogério Schietti Cruz. Sexta Turma. Autuado em: 18 ago. 2020. Processo eletrônico. Tribunal de origem: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=RHC%20132655. Acesso em: 11 abr. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 293.052/SP (2014/0090984-5). Relator: Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Quinta Turma. Autuado em: 23 abr. 2014. Processo eletrônico. Tribunal de origem: Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Arquivado definitivamente em: 17 out. 2017. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=HC%20293.052. Acesso em: 11 abr. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 464.608/PE (2018/0208235-1). Relator: Ministro Nefi Cordeiro. Sexta Turma. Autuado em: 15 ago. 2018. Processo eletrônico. Tribunal de origem: Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco. Arquivado definitivamente em: 24 jun. 2019. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=HC%20464608. Acesso em: 11 abr. 2025.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência n. 170.392/SP (2020/0010188-4). Relator: Ministro Joel Ilan Paciornik. Terceira Seção. Autuado em: 20 jan. 2020. Justiça suscitante: Juízo Federal da 2ª Vara Criminal Especializada em Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional e Lavagem de Dinheiro – SJ/SP. Justiça suscitada: Juízo de Direito da 2ª Vara Criminal de Jundiaí/SP. Baixa definitiva: 04 ago. 2020. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=CC%20170392. Acesso em: 11 abr. 2025.

Gilmara Nagurnhak
Gilmara Nagurnhak é advogada e fundadora do Escritório de Advocacia & Assessoria Empresarial Mestranda e especialista em Direito Tributário, com formação pela PUCRS.

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