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STJ decide contra o princípio da proteção à confiança

O artigo é um crítica doutrinária sobre uma decisão do STJ, que vai contra o princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) , violando direito fundamental das pensionistas.

22/4/2025

É surpreendente como STJ, recentemente, decidiu no julgamento do Tema 1.080 - recursos especiais repetitivos, em total desprezo ao princípio da proteção à confiança, que decorre do Estado democrático de Direito, e, por sinal, é o aspecto subjetivo da segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, CF).

Calma lá, STJ! Até os tapetes do tribunal sabem do princípio constitucional da proteção à confiança...

Uma coisa deve ficar clara desde já: o Tribunal da Cidadania deliberou contra o direito fundamental à saúde, das pensionistas, que, por décadas, sempre descontaram para o FUNSA Fundo de Saúde da Aeronáutica.

Pior: sem dó e piedade. Sem o mínimo respeito às situações formadas e consolidadas no passado, vale dizer, fazendo, dessa maneira, uma retroatividade gravosa.

Pode isso? É assustador! Nem mesmo o óbvio é decidido à luz da proteção à confiança.

Vejam o tamanho do imbróglio. Como se sabe, os direitos fundamentais são: irrenunciáveis, inalienáveis, imprescritíveis, invioláveis, universais e históricos.

O festejado mestre de todos nós, que vai fazer 100 anos , professor José Afonso da Silva ensina que:

“no qualitativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem os quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive e concretiza uma garantia digna livre e igual de todas as pessoas”

Observa-se, portanto, que os direitos fundamentais existem para garantir à dignidade da pessoa humana, cabendo ao Poder Judiciário, por óbvio, ser o garantidor e dar concretude.

Antes de avançar, cabe um detalhe: um dos argumentos da União foi de que deve ser levado em consideração o impacto financeiro para o erário. A desculpa cômoda por parte da União; é a mais cômoda das desculpas.

Pois então. É a economia sendo predatória do Direito!

Em consequência, não é a pensionista da Aeronáutica que, sempre contribuiu para o FUNSA, que deve suportar todo o ônus das consequências das escolhas trágicas da Administração.

Pergunta: e o impacto financeiro dos supersalários, penduricalhos e gratificações?

Mérito do recurso especial repetitivo

O mérito do recurso especial repetitivo era para definir se há direito de pensionista de militar da Aeronáutica à assistência médico-hospitalar por meio do FUNSA

Outra pergunta: a pensionista da Aeronáutica, idosa, que já tem o direito à assistência médico-hospitalar e confiaram na Administração Castrense, terá que ficar à mercê de planos de saúde, aliás, caríssimos? 

E agora, Maria, Maria, que ri quando deve chorar, e não vive, apenas aguenta? 

Danem-se as pensionistas?

O que é o FUNSA - Fundo de Saúde da Aeronáutica?

“É o fundo constituído de recursos financeiros oriundos de contribuições mensais obrigatórias e indenizações por atendimentos prestados à saúde dos militares, pensionistas contribuintes do FUNSA e respectivos dependentes, destinado a complementar o custeio da assistência à saúde dos beneficiários”.

Nota-se, então, que as pensionistas contribuem para o FUNSA. Não existe “almoço grátis”. A sua condição de pensionista tem como premissa a situação de dependência. Não é possível dissociar uma coisa da outra.

A sua exclusão do plano de assistência à saúde é: perversa, ilegal, imoral e inconstitucional!

Doutrina do princípio da proteção à confiança

O princípio da proteção à confiança originou-se no direito alemão, em 1957. No direito europeu é chamado de proteção à confiança legítima. É considerada o aspecto subjetivo da segurança jurídica.

Em outras palavras, o cidadão, na lei, cria uma legítima expectativa.

O princípio da proteção à confiança ou à confiança legítima é consectário do princípio da segurança jurídica e decorre, portanto, diretamente do Estado democrático de Direito.

O brilhante professor Almiro do Couto e Silva2  foi um dos pioneiros do tema no Brasil. Vejamos a sua lição:

"A segurança jurídica é entendida como sendo um conceito ou um princípio jurídico que se ramifica em duas partes: uma de natureza objetiva e outra de natureza subjetiva"

"A primeira, de natureza objetiva, é aquela que envolve a questão dos limites à retroatividade dos atos do Estado até mesmo quando estes se qualifiquem como atos legislativos. Diz respeito, portanto, à proteção ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada”

A outra, de natureza subjetiva, concerne à proteção à confiança das pessoas no pertinente aos atos, procedimentos e condutas do Estado, nos mais diferentes aspectos de sua atuação”

Importante: O princípio constitucional da proteção à confiança, impõe ao Estado limitações na liberdade de alterar sua conduta e de modificar atos que produziram vantagens para os destinatários, mesmo quando ilegais e inconstitucionais, mas que antes, eram considerados legais e constitucionais.

Segundo o festejado mestre Gomes Canotilho3:

“O homem necessita de segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida"

"Por isso, desde cedo se consideravam os princípios da segurança jurídica e proteção à confiança como elementos constitutivos do Estado de Direito"

"Em geral, considera-se que a segurança jurídica está conexionada com elementos objetivos da ordem jurídica – garantia de estabilidade jurídica, segurança de orientação e realização do direito – enquanto a proteção da confiança se prende mais com as componentes subjetivas da segurança, designadamente a calculabilidade e previsibilidade dos indivíduos em relação aos efeitos jurídicos dos actos dos poderes públicos”

É preciso ressaltar, na linha de autorizado magistério doutrinário do professor José dos Santos Carvalho Filho4:

“Cuida-se de proteger expectativas dos indivíduos oriundas da crença de que disciplinas jurídico-administrativas são dotadas de certo grau de estabilidade. Semelhante tutela demanda dois requisitos:

1º) a ruptura inesperada da disciplina vigente; 2º) a imprevisibilidade das modificações e o que se pretende é que o cidadão não seja surpreendido ou agravado pela mudança inesperada de comportamento da Administração, sem o mínimo respeito às situações formadas e consolidadas no passado, ainda que não se tenham convertido em direitos adquiridos.”

Cabe, também, ter presente, neste ponto, por oportuno, a lição da renomada jurista e professora Maria Sylvia Zanella Di Pietro5:

“A preocupação era a de, em nome da proteção à confiança, manter atos ilegais ou inconstitucionais fazendo prevalecer esse princípio em detrimento do princípio da legalidade.

"Do direito alemão passou para o direito comunitário europeu, consagrando-se em decisões da Corte de Justiça das Constituições Europeias como “regra superior de Direito” e “princípio fundamental do direito comunitário “

Jurisprudência do TRF-2

Vejamos fragmentos do voto do desembargador Federal Guilherme Calmon Nogueira da Gama, no processo 0021914-24.2018.4.02.5101 e do desembargador Federal Reis Friede, no processo 0154856- 35.2016.4.02.5151, no mesmo sentido:

"Considerando que a condição de pensionista tem como premissa a situação de dependência, não se mostra possível conceber uma coisa dissociada da outra” cabível, portanto, o direito da agravada à assistência médico-hospitalar do sistema de saúde da Aeronáutica, mediante contribuição, conforme já tinha sendo realizado E nem se diga que existe distinção entre o termo “pensionista” e “dependente” e, por isso, a autora não faria jus ao benefício. Como já dito, a condição de pensionista é, antes, um dos requisitos para que se configure a condição de dependente”.

A propósito, essa jurisprudência é pacífica nos Tribunais Federais. Todos entendem que a pensionista tem, sim, direito à assistência médica. 

Parecer do Ministério Público Federal

No seu parecer o MPF destacou a relevância dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança, que visam a garantir previsibilidade e estabilidade nas relações estabelecidas entre o Estado e o administrado.

Decisão equivocada do STJ

Trata-se de uma crítica doutrinária. Epistemológica. Aliás, é o papel da doutrina. Mas o que importa a doutrina? Importa e muito! Os juízes são humanos. Acertam e erram.

Por isso, sinto lhe informar: infelizmente, no recurso especial 1871942 - PE (2020/0096786-4) a 1ª seção do STJ fixou, equivocadamente, a tese:

"Não há direito adquirido a regime jurídico relativo à Assistência Médico-hospitalar própria das Forças Armadas - benefício condicional, de natureza não previdenciária, diverso da pensão por morte e não vinculado a esta-, aos pensionistas ou dependentes de militares falecidos antes ou depois da vigência da lei 13.954/19”

Pois bem. Discordo dessa tese. Ora, a causa de pedir é a violação ao princípio da proteção à confiança. Houve violação ou não, STJ? Porém, esse argumento o STJ não enfrentou. Fez cara de paisagem. Foi omisso. O STJ muda rapidamente de assunto é fala o mantra: “não há direito adquirido a regime jurídico”

Daí a observação do professor Renato Ferraz6:

“Sempre ouvia a frase repetida, mecanicamente, que não há direito adquirido ao regime jurídico. Não é bem assim. Isso é um dogma que precisa, urgentemente, ser revisto. Aliás, o dogma da coisa julgada foi quebrado nas ações de investigação de paternidade, não é? O fim do direito não é fazer justiça?”

Muito Difícil advogar em Pindorama. Não há diálogo. Não há dialética. Não há contraditório. 

É o triste decido, depois fundamento! Por mais importante que seja o Superior Tribunal; não se pode transformar uma reta em curva, por não gostar da reta.

Temos que levar o Direito a sério na defesa da sua coerência e integralidade para a construção de resultados justos!

Pois então. Mais uma maldade jurídica. Sobrou para as pensionistas - com o agravamento do regime jurídico - que, aliás, descontaram, por décadas, no seu contracheque, para o FUNSA.

Observe-se o detalhe da tese: é evidente que viola, escancaradamente, a Constituição, no princípio da segurança jurídica, no seu aspecto subjetivo que é, como falado, é a proteção à confiança.  

Logo, o STJ está violando um direito fundamental! Alguma dúvida?

Além do que, vale lembrar que os princípios da segurança jurídica e proteção à confiança estão presentes no art. 54 da Lei nº 9784/1999, onde decai em 5 anos o prazo para anular atos de boa-fé.

Conclusão

Uma palavra final: ao adotar a tese de que não há direito adquirido a regime jurídico relativo à assistência médico-hospitalar, o STJ vai contra o princípio constitucional da proteção à confiança, e, mesmo que a lei, doutrina, parecer do MPF e a jurisprudência pacífica dos Tribunais Federais digam o contrário.

Errou o STJ. Esperamos que, no recurso extraordinário, o STF modifique o acórdão do Tribunal da Cidadania.  

A ver.

___________

1 DA SIlVA, José Afonso, Curso de Direito Constitucional, p.180, 2018

2 SILVA, A. do C. e. (2004). O princípio da segurança jurídica (proteção à confiança) no direito público brasileiro. Revista De Direito Administrativo, 237, 271–316. https://doi.org/10.12660/rda.v237.2004.44376

3 CANOTILHO, J.J Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2003, p.257

4 CARVALHO FILHO, José dos Santos, Manual de Direito Administrativo, p.38, 2018

5 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, p.154, 2018

6 FERRAZ, Manual do Estatuto dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, p.58, 2014

Renato Otávio da Gama Ferraz
Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras

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