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Medicina baseada em evidências: A função da Anvisa e da Conitec

O objetivo do artigo é analisar qual o papel da Anvisa e da Conitec sobre medicamentos não padronizados.

24/4/2025

Introdução

É corriqueiro aportarem no Poder Judiciário demandas prestacionais da área da saúde, cujo pleito é a condenação do Poder Público, seja União, Estado ou município, no dever de fornecer medicamento, equipamento ou insumo que não seja de dispensação obrigatória no âmbito do SUS.

Quando se trata de medicamento, a análise do direito não prescinde do exame dos requisitos estabelecidos no Tema 1.234 do STF (a negativa de fornecimento do medicamento na via administrativa; a ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec; a impossibilidade de substituição por outro medicamento constante das listas do SUS; a comprovação à luz da medicina baseada em evidências, da eficácia do fármaco; a imprescindibilidade clínica do tratamento; e a incapacidade financeira de arcar com o seu custeio).

Nas demais demandas prestacionais na área de saúde, que não contenham pedido de medicamentos, como órteses, próteses, equipamentos médicos, procedimentos terapêuticos etc, a análise do pleito continua sendo regida pelo Tema 793 do STF, segundo o qual os entes da federação são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, cabendo, se for o caso, direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.

Pergunta-se: qual o papel da Anvisa e da Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias sobre medicamentos não padronizados?

A Anvisa e a Conitec

A Anvisa é uma autarquia vinculada ao Ministério da Saúde, que possui como objetivo promover a proteção da saúde da população, por meio do controle da produção, comercialização e no uso de produtos e serviços, incluindo medicamentos, alimentos, cosméticos e outros produtos que possam impactar a saúde pública, conforme consta do seu regimento interno (resolução – RDC 585, de 10/12/21).

A Anvisa tem a atribuição de conceder registros de medicamentos e produtos, analisando sua segurança e eficácia, o que garante que os medicamentos disponíveis no mercado sejam seguros para o uso, e eficazes no tratamento das doenças para as quais são indicados.

A atuação da Anvisa visa minimizar os riscos associados a medicamentos não efetivos e não seguros, promovendo a saúde pública e garantindo que os profissionais de saúde tenham acesso a informações sobre os benefícios e riscos dos medicamentos que prescrevem. Exerce, ainda, uma função interventiva no domínio econômico, podendo impor restrições ao comércio e circulação de produtos que representem risco à saúde.

Digno de nota que a decisão da Anvisa, ao aprovar o registro, é amparada em estudos clínicos, acompanhando a avaliação por agências internacionais de renome e de especialistas independentes, como foi o caso da vacina contra a “chikungunya”, segundo matéria publicada no Estado de S. Paulo (Estadão), em 15/4/25 (A15).

A Conitec, por sua vez, é um órgão, composto por três Comitês, sendo que cada Comitê é composto por 15 instituições, com ampla representação na saúde pública brasileira, que possuem direito a voto, tendo por objetivo assessorar o Ministério da Saúde, nas atribuições relativas à incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde no SUS, sendo que sua recomendação pode culminar, ou não, na distribuição obrigatória do medicamento, equipamento ou insumo, à população.

Basicamente, à Anvisa cabe o registro do medicamento, equipamento ou insumo, para sua comercialização no país, e, à Conitec recomendar ao Ministério da Saúde se eles devem ser de dispensação obrigatória, com a sua inclusão nas listas do SUS (RENAME, REMUME e as próprias de cada Estado, como o REMEMG em Minas Gerais)

O fato de a Conitec ter recomendado que determinado medicamento, equipamento ou insumo não seja de dispensação obrigatória no âmbito do SUS, não quer dizer que não haja comprovação de eficácia científica, que não possua amparo na “Medicina Baseada em Evidências”, sob pena de aparente contradição entre ambos os órgãos vinculados ao Ministério da Saúde.

Não obstante a recomendação exarada pela Conitec, para que determinada ação ou serviço de saúde não seja de dispensação obrigatória à população, caberá ao julgador, nas ações que aportam no Poder Judiciário, a análise de cada caso concreto.

O Direito à saúde

A “mora irrazoável” da Anvisa, em apreciar o pedido de registro, e da Conitec, na análise do pedido de incorporação no âmbito do SUS, constitui um dos motivos que pode justificar a condenação do Poder Público no dever de fornecimento de determinado medicamento, equipamento ou insumo, conforme se extrai do Tema 500 e Tema 1.234, ambos do STF:

Tema 500 do STF:

“1. O Estado não pode ser obrigado a fornecer medicamentos experimentais. 2. A ausência de registro na Anvisa impede, como regra geral, o fornecimento de medicamento por decisão judicial. 3. É possível, excepcionalmente, a concessão judicial de medicamento sem registro sanitário, em caso de mora irrazoável da Anvisa em apreciar o pedido (prazo superior ao previsto na lei 13.411/16), quando preenchidos três requisitos: (I) a existência de pedido de registro do medicamento no Brasil (salvo no caso de medicamentos órfãos para doenças raras e ultrarraras);(II) a existência de registro do medicamento em renomadas agências de regulação no exterior; e (III) a inexistência de substituto terapêutico com registro no Brasil. 4. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa deverão necessariamente ser propostas em face da União.” Meu grifo.

Tema 1.234 do STF:

“i) a negativa de fornecimento do medicamento na via administrativa;

ii) ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação, ou mora na sua apreciação, tendo em vista os prazos e critérios previstos nos arts. 19-Q e 19-R da lei 8.080/1990;

iii) impossibilidade de substituição por outro medicamento constante das listas do SUS;

iv) comprovação à luz da medicina baseada em evidências, da eficácia, acurácia, efetividade e segurança do fármaco, necessariamente respaldadas por evidências científicas de alto nível;

v) imprescindibilidade clínica do tratamento, comprovada mediante laudo médico fundamentado, descrevendo inclusive qual o tratamento já realizado; e

vi) incapacidade financeira de arcar com o custeio do medicamento.” Meu grifo.

Afinal, as ações e serviços de saúde devem ser prestadas aos cidadãos, ainda que não incluídos nas listas do SUS, vez que o legislador constitucional, no art. 196, não fez qualquer ressalva ao exercício do direito, sendo norma de eficácia plena.

Comprovada a imprescindibilidade de procedimentos, produtos e insumos indispensáveis para preservar a saúde do cidadão, estes devem ser fornecidos de forma irrestrita, sendo que a negativa do Poder Público implica em manifesta ofensa ao direito à saúde, garantido constitucionalmente.

Com efeito, as normas constitucionais que garantem ao cidadão o direito à saúde são de aplicação imediata e não se vislumbra a hipótese de restrição de tal direito constitucional, por meio de lei, e, tampouco, atos administrativos de hierarquia inferior.

Em outras palavras, a Constituição da República impõe a obrigação ao Poder Público de oferecer atendimento integral à saúde, o que torna irrelevantes eventuais restrições a procedimentos e insumos previamente estabelecidos nas listas do SUS.

Colide com o princípio da razoabilidade a ideia de que o Poder Público possa condicionar/restringir o direito de prestação material à saúde às medidas de padronização implementadas.

Nos casos postos à apreciação do Poder Judiciário podem estar presentes a probabilidade do direito e o perigo de dano, para concessão de eventual tutela de urgência, caso se constate que a inicial foi instruída com “relatórios médicos que atestem a enfermidade do cidadão”, bem como informem que as “outras medidas terapêuticas foram ineficazes”.

Mister, ainda, averiguar se o medicamento, equipamento ou insumo possui “registro na Anvisa, não havendo similar oferecido pelo SUS”, além da “incapacidade do cidadão de arcar com o seu custeio”.

Hipoteticamente, estarão presentes a probabilidade do direito, porquanto a pretensão possui amparo no art. 196 da CF, bem como no Tema 793 do STF, e o perigo de dano, consubstanciado na imprescindibilidade clínica do controle da enfermidade do cidadão.

No que se refere ao perigo de irreversibilidade do provimento antecipado, a não concessão de liminar poderá acarretar ineficácia da prestação jurisdicional ao final, sendo evidente que deve ser prestigiado o bem jurídico maior, o que se conhece como irreversibilidade recíproca.

Já entendeu o TJ/MG que a norma que veda a concessão de liminar satisfativa não possui caráter absoluto (art. 1º, §3º, Lei nº. 8.437/92 e art. 300, §3º, CPC/15), devendo ser flexibilizada, nas hipóteses de ineficácia da medida, caso outorgada a prestação jurisdicional somente ao final do processo, e sempre que a situação de fato envolver bem jurídico de relevante importância.

Considerações finais

Em conclusão, não obstante a Anvisa, como a Conitec, fundamentem seus estudos na medicina baseada em evidências, para o cumprimento de seu mister, possuem funções diversas, cabendo à primeira o registro do medicamento, equipamento ou insumo, e à segunda recomendar ao Ministério da Saúde se eles devem, ou não, ser de dispensação obrigatória, com a sua inclusão nas listas do SUS.

A recomendação negativa da Conitec não quer dizer que não haja comprovação de eficácia científica, sob pena de aparente contradição entre ambos os órgãos vinculados ao Ministério da Saúde, cabendo ao julgador, nas ações que aportarem no Poder Judiciário, a análise de cada caso concreto.

Ademais, a “mora irrazoável” dos referidos órgãos, em apreciar o pedido de registro, e, de análise do pedido de incorporação no âmbito do SUS, constitui um dos motivos que pode justificar a condenação do Poder Público no dever de fornecimento de determinado medicamento, equipamento ou insumo.

___________

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasíllia: Senado, 1988.

BRASIL. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa. Disponível em: https://www.gov.br/Anvisa/pt-br/acessoainformacao/institucional.

BRASIL. Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema ùnico de Saúde – Conitec. Disponível em: https://www.gov.br/Conitec/pt-br/assuntos/a-comissao/conheca-a-Conitec.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tema 500 STF. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=754312026. Acesso 15/4/25.

BRASIL. Tema 793 STF. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur476124/false. Acesso 15/4/25.

BRASIL. Tema 1.234 STF. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE1.366.243_tema1234_infosociedade_LCFSP.pdf. Acesso 15/4/25.

PRIMEIRA vacina contra chikungunya tem registro aprovado pela Anvisa. O Estado de S. Paulo, São Paulo, ano 2025, p. 15, 15 anril 2025.

TJ/MG - Agravo de Instrumento-Cv 1.0000.20.023467-2/001, Relator(a): Des.(a) Alexandre Santiago, 8ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 23/7/20, publicação da súmula em 28/7/20. Acesso 15/4/25.

TJ/MG - Agravo de Instrumento-Cv 1.0396.16.002533-6/001, Relator(a): Des.(a) Yeda Athias , 6ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 14/2/17, publicação da súmula em 24/2/17. Acesso 15/4/25.

Andeirson da Matta Barbosa
Mestre em Constitucionalismo e Democracia pela FDSM. Analista do Ministério Público de Minas Gerais. Revisor de periódicos. Autor e coautor de livros jurídicos.

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