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Tributar o próprio tributo? A exclusão do IRPJ e da CSLL do PIS e Cofins

O STJ deve decidir se o IRPJ e a CSLL devem ser excluídos da base do PIS e da Cofins. A definição é crucial para limitar a tributação em cascata e reforçar a segurança jurídica.

30/4/2025

A tributação em cascata constitui uma patologia histórica do sistema fiscal brasileiro, cuja persistência compromete os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da vedação ao confisco. O julgamento do RE 574.706/PR (Tema 69) pelo STF, em 2017, representou um marco nesse cenário, ao afirmar que a receita — para fins de incidência do PIS e da Cofins — corresponde apenas ao acréscimo patrimonial efetivo, vedando a inclusão de valores meramente transitórios, como o ICMS destacado nas notas fiscais. Essa decisão não apenas corrigiu uma distorção tributária histórica, mas também impulsionou o surgimento de diversas teses derivadas, conhecidas como "teses-filhote", entre as quais se destaca a controvérsia sobre a inclusão do IRPJ e da CSLL na base de cálculo dessas contribuições. Trata-se de discussão que mobiliza atualmente milhares de processos judiciais e valores bilionários, reacendendo o debate acerca da coerência e da integridade sistemática do conceito de receita no ordenamento jurídico brasileiro.

Sob a ótica normativa, a CF/88, em seu art. 195, inciso I, alínea “b”, autoriza a incidência de contribuições sociais sobre o “faturamento ou a receita”, sem, contudo, alargar esses conceitos a ponto de abarcar valores que não representem incremento real no patrimônio do contribuinte. Ademais, os arts. 154, inciso I, e 150, inciso IV, vedam a instituição de tributos com efeito confiscatório e impõem a necessidade de estrita legalidade tributária, limitando o poder de tributar do Estado. No plano infraconstitucional, o CTN, especialmente nos arts. 97 e 110, preserva a reserva legal e a integridade dos conceitos oriundos do direito privado, reforçando a necessidade de fidelidade semântica na definição de receita. A legislação ordinária, como o decreto-lei 1.598/1977 (alterado pela lei 12.973/14) e as leis 10.637/02 e 10.833/03, embora regulamentem a tributação do PIS e da Cofins, não afastam o núcleo conceitual assentado: receita bruta é o produto da venda de bens e serviços, descontados tributos que incidem sobre essas operações, à luz da decisão do STF.

A evolução jurisprudencial posterior ao Tema 69 reforçou, em parte, essa compreensão. No STJ, a ratio decidendi que fundamentou a exclusão do ICMS-ST da base de cálculo das contribuições (Tema 1.093) reafirmou a premissa de que valores que apenas transitam pelo caixa da empresa, sem representar riqueza própria, não podem ser tributados como receita. Contudo, em aparente paradoxo, a Corte Superior, no julgamento do REsp 2.080.205/RS, de 2023, manteve a inclusão de tributos como ICMS, ISS e até PIS/Cofins na base de cálculo do IRPJ e da CSLL apurados pelo lucro presumido, revelando uma tensão interpretativa que ainda demanda harmonização sistêmica. Essa divergência jurisprudencial, contudo, não deve obscurecer a solidez dos argumentos que sustentam a exclusão do IRPJ e da CSLL da base de cálculo do PIS e da Cofins, sob pena de se perpetuar uma distorção que onera indevidamente os contribuintes.

Nesse cenário, a exclusão do IRPJ e da CSLL da base de cálculo do PIS e da Cofins ganhou novo impulso com a tramitação do REsp 2.192.707/PR, interposto pela ANEOR - Associação Nacional das Empresas de Obras Rodoviárias. A tese defendida no recurso é que a inclusão desses tributos na base das contribuições viola o princípio da legalidade tributária, pela ausência de autorização legislativa específica, além de afrontar a lógica firmada pelo STF no julgamento do Tema 69. A relevância da matéria foi reconhecida pela manifestação favorável do Ministério Público Federal à afetação do recurso como repetitivo, sinalizando a importância jurídica e econômica do tema. Atualmente, o processo encontra-se sob relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, presidente da Comissão Gestora de Precedentes do STJ, que deverá definir os próximos passos para a fixação de tese vinculante.

Sob a perspectiva material, os fundamentos para a exclusão são robustos. Em primeiro lugar, o conceito constitucional de receita, interpretado à luz da decisão do STF, exige a identificação de um efetivo acréscimo patrimonial, inexistente nos valores destinados ao pagamento de tributos sobre o lucro. Em segundo lugar, a tributação desses montantes configuraria uma forma de bitributação dissimulada, na medida em que valores já sujeitos a IRPJ e CSLL seriam novamente onerados pelo PIS e pela Cofins, afrontando o princípio da capacidade contributiva. Em terceiro lugar, a estrita legalidade tributária, prevista no art. 97 do CTN, veda a ampliação da base de cálculo sem autorização expressa do legislador, interpretação que se impõe diante da ausência de previsão específica para a inclusão desses tributos. Finalmente, a sistemática não cumulativa das contribuições, conforme o art. 3.º das leis 10.637/02 e 10.833/03, reforça que apenas valores efetivamente destinados ao contribuinte devem compor a base de cálculo, em consonância com o princípio da neutralidade fiscal. Portanto, a manutenção da inclusão do IRPJ e da CSLL na base de cálculo do PIS e da Cofins representa uma afronta aos princípios basilares do sistema tributário nacional.

A despeito desses argumentos, a Fazenda Nacional sustenta que a receita bruta, nos termos do art. 12 do decreto-lei 1.598/1977, não comportaria deduções de tributos incidentes sobre a própria atividade empresarial. Ademais, alega que, ainda que destinados ao pagamento de IRPJ e CSLL, os valores sairiam da esfera patrimonial do contribuinte, caracterizando-se como ingresso tributável. Por fim, invoca precedentes favoráveis emanados das turmas de Direito Público do STJ, que, desde 2019, vinham reconhecendo a inclusão. Todavia, essa argumentação mostra-se frágil diante da construção semântica firmada pelo STF. Se o ICMS destacado, mero ingresso financeiro transitório, não é considerado receita, com maior razão não o seriam valores destinados ao pagamento de tributos sobre o lucro, sob pena de distorcer a noção de riqueza tributável e intensificar o efeito cascata, exatamente o que a decisão do Tema 69 buscou mitigar.

As implicações econômicas da controvérsia são expressivas. A manutenção da inclusão do IRPJ e da CSLL na base de cálculo do PIS e da Cofins implica elevação da carga tributária efetiva, especialmente para empresas optantes pelo lucro presumido, que já enfrentam alíquotas combinadas de aproximadamente 3,65% (regime cumulativo) ou 9,25% (não cumulativo). Setores de margens operacionais estreitas, como os de prestação de serviços e infraestrutura, são particularmente prejudicados, agravando a perda de competitividade no ambiente econômico nacional e internacional. Além disso, a judicialização massiva da matéria evidencia o grau de insegurança jurídica e a necessidade de solução definitiva e harmônica. Nesse contexto, a decisão a ser proferida pelo STJ no REsp 2.192.707/PR assume contornos de extrema relevância para a estabilidade do ambiente de negócios no país.

Esse panorama torna-se ainda mais crítico diante da EC 132/23, que institui a CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços em substituição ao PIS e à Cofins. A transição para o novo regime tributário torna urgente a definição clara do conceito de receita tributável, a fim de evitar a perpetuação de controvérsias semelhantes. Caso prevaleça a tese dos contribuintes, o legislador complementar responsável pela regulamentação da CBS deverá estruturar suas normas de maneira a excluir expressamente tributos Federais da base de cálculo, fortalecendo a segurança jurídica e a eficiência do sistema tributário nacional.

Em conclusão, a exclusão do IRPJ e da CSLL da base de cálculo do PIS e da Cofins se alinha não apenas à melhor interpretação do conceito constitucional de receita, mas também aos princípios da capacidade contributiva, da vedação ao confisco e da legalidade tributária. A definição da tese no âmbito do REsp 2.192.707/PR e dos demais repetitivos poderá restaurar a simetria entre a tributação sobre receitas e sobre consumo, reduzir a litigiosidade e preparar o terreno para uma transição mais segura rumo ao novo modelo tributário previsto pela EC 132/23. Nesse ínterim, recomenda-se que os contribuintes avaliem cuidadosamente os impactos financeiros potenciais, mantenham ativa a defesa de seus direitos em contenciosos judiciais ou administrativos e monitorem de perto a regulamentação infralegal da CBS, para evitar a repetição de distorções históricas que comprometem a funcionalidade e a legitimidade do sistema tributário brasileiro. Em última análise, o tributo, enquanto expressão da capacidade contributiva, não pode incidir sobre valores que, por sua natureza, jamais se qualificaram como riqueza nova incorporada ao patrimônio do contribuinte. Afinal, a justiça fiscal exige que a tributação recaia sobre o efetivo acréscimo patrimonial, e não sobre meros valores transitórios ou destinados ao pagamento de outros tributos.

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Fonte: A exclusão do IRPJ e da CSLL da base do PIS e da Cofins: Expectativa de afetação de nova tese tributária no rito de recursos repetitivos", de autoria de Gabriel Sacramento Ramos, Giovana Sousa Ferreira, Gustavo Borges de Melo e Menndel Assunção Oliver Macedo, disponível em https://www.migalhas.com.br/depeso/428911/a-exclusao-do-irpj-e-da-csll-da-base-do-pis-e-da-cofins

Nicole Dubut Cruz
Mestre em Direito Internacional pela Miami University of Science and Technology, especialista em Direito Tributário, fundadora do Dubut Advocacia e CEO do Jusneural.

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