O Estado Democrático de Direito carrega em seu DNA uma contradição aparentemente insolúvel: precisa punir para proteger, mas, ao fazê-lo, corre o risco de esmagar as liberdades que jurou preservar. Como jurista e autor de obras dedicadas a esse tema (Sobre a Estrutura do Dolo e da Imprudência, 2024), afirmo que essa tensão não é um acidente, mas uma prova de fogo para a maturidade democrática.
A resposta clássica a esse dilema é o princípio da ultima ratio: O Direito Penal só deve ser acionado quando todas as outras ferramentas — políticas sociais, mediação, educação — falharem. Mas, na prática, essa teoria muitas vezes naufraga. Por quê? Porque o Direito Penal, historicamente, foi moldado como um atalho para problemas estruturais, não como um último recurso.
A luta por limites ao poder punitivo remonta à Carta Magna de 1215, que enterrou o arbítrio real, e à Revolução Francesa, que elevou a lei ao status de expressão da vontade popular. Contudo, mesmo em democracias consolidadas, sobrevivem mecanismos que subvertem esses avanços.
No Brasil, por exemplo, o art. 18, inciso I, do CP é um exemplo gritante. A imputação por dolo eventual — que permite punir alguém por um crime não intencional, mas "aceito como risco" — transforma-se, na prática, em uma loteria jurídica. Como critiquei em minha obra, essa figura abre espaço para interpretações subjetivas, onde a linha entre o acidente e o crime se dissolve conforme a conveniência do aplicador da lei.
Trata-se de uma ficção perigosa, pois em vez de proteger a sociedade, gera insegurança jurídica e criminaliza condutas que deveriam ser analisadas sob outras perspectivas (como a civil ou administrativa).
Um sistema penal justo não é aquele que prende mais, mas aquele que preserva a dignidade humana mesmo ao punir. Isso exige leis claras e previsíveis. Normas ambíguas, como as que permitem o dolo eventual, são terreno fértil para arbitrariedades. Exige também juízes como filtros críticos, pois não basta aplicar a lei, é preciso questionar se ela serve à justiça ou ao autoritarismo. Por fim, faz-se necessária uma reforma normativa urgente, pois como propus em Fundamentos de la Teoría Significativa de la Imputación (Rudá, 2025), precisamos de teorias de imputação que reflitam a complexidade humana, não simplificações perigosas.
No Brasil, o abuso do Direito Penal é sintomático. Enquanto falhamos em investir em políticas públicas básicas, recorremos ao sistema penal para "resolver" conflitos sociais, da pobreza à falta de acesso à saúde. O resultado? Um sistema carcerário caótico e seletivo, onde os vulneráveis são criminalizados, e os poderosos, raramente alcançados.
A manutenção de dispositivos como o inciso I do art. 18 do CP não é um erro técnico, mas uma escolha política. Aceitar isso é compactuar com um Estado que finge ser democrático, mas age como inquisidor.
O equilíbrio entre Estado Democrático de Direito e Direito Penal não é uma meta distante, mas uma urgência. Para alcançá-lo, precisamos atentar a três pontos que reputo fundamentais: a) Revogar normas autoritárias, começando pela revisão crítica de figuras como o dolo eventual, escondido no referido inciso I do art. 18 do CP; b) priorizar alternativas ao cárcere, como defendido por muitos doutrinadores, lançando mão de institutos como a mediação, a justiça restaurativa e o investimento social, uma vez que não são "mimos ideológicos", mas ferramentas comprovadas; por fim, c) exigir responsabilização judicial, pois juízes e promotores devem ser cobrados não pelas condenações que proferem, mas pela justiça que realizam ou ao menos deveriam realizar.
Como tenho defendido ao longo de minha carreira, o Direito Penal só é legítimo quando reconhece que ninguém — nem mesmo o Estado — está acima da dignidade humana. Se ignorarmos isso, a democracia será apenas uma palavra em livros de história.