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Comunidade Andina: Uma experiência de harmonização legislativa para o regime de patentes

A CAN celebra 56 anos como modelo de integração regional, com legislação unificada e tribunal próprio que fortalece a proteção da propriedade intelectual.

7/5/2025

Em maio de 2025 a CAN - Comunidade Andina de Nações completa 56 anos de atividade. A comunidade é um bloco de integração sub-regional formada por órgãos intergovernamentais, organismos comunitários e sociedade civil, constituindo o que chamam de Sistema Andino de Integração, cujo objetivo é alcançar desenvolvimento regional e autônomo por meio da integração andina, além de uma integração sul-americana e latino-americana. No campo da propriedade industrial, sua grande contribuição vem da existência de uma legislação única que abarca princípios gerais e determinações endossadas em legislações especiais em cada país integrante e tribunal comum a estas jurisdições, sendo um importante modelo na América Latina.

Sobre o seu histórico, pode-se destacar que sua constituição em parte é resultado da atmosfera, visto que no fim da década de 1950 o mundo vivia sob uma perspectiva positiva da experiência integracionista em virtude da assinatura do Tratado de Roma, que, a princípio, formaria a CEE - Comunidade Econômica Europeia e futuramente culminaria na institucionalização do que hoje conhecemos como União Europeia. Sob forte influência da CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e suas diretrizes que visavam a superação da dependência externa e do subdesenvolvimento, os países latinos iniciaram suas primeiras iniciativas coletivas.

Em 26/5/1969, em resposta aos resultados ainda não satisfatórios trazidos pela ALADI1, devido às disparidades entre os países membros, foi constituída a CAN2 por meio do acordo de Cartagena, cujos países signatários originalmente eram Peru, Bolívia, Colômbia, Equador e Chile (que deixou de fazer parte dos países membros em 1976 para ser associado em 2006, junto com Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai). A Venezuela se tornou membro em 1973 e saiu em 2006. 

Um dos objetivos norteadores da comunidade é incitar a participação dos países membros em um processo contínuo de integração e, entre os feitos, vale destacar a zona de livre comércio que está ativa desde 1993, onde os produtos andinos circulam sem pagar tarifas alfandegárias. Há também em vigor um ordenamento jurídico com mais de 900 decisões e 2000 resoluções atuantes nos países membros, desobrigação de uso de visto para cidadãos de países membros, entre outros. 

No campo da propriedade intelectual há, especificamente, a Dirección General de Desarrollo Social, Cooperación y Propiedad Intelectual (ou Direção Geral de Desenvolvimento Social, Cooperação e Propriedade Intelectual, em tradução livre) que estabelece uma diretriz normativa comum sobre os direitos de propriedade intelectual, regulando os interesses dos titulares para oferecer proteção em relação às suas inovações por meio de decisões que atuem nos países membros. Na decisão 486 de 2000 (e suas decisões modificativas 632 e 689) encontram-se os dispositivos comuns que regulam as matérias de patentes, design, marcas, indicações geográficas, concorrência desleal, entre outros aspectos nos países membros. 

É importante destacar que para proteção de patentes não há artigos na legislação supracitada com caráter transfronteiriço tão característico como a “oposição andina” encontrada no art. 147 para proteção de marcas - cujo dispositivo permite que titulares de marcas registradas, ou solicitações anteriores tratadas por um país membro, tenham a possibilidade de impedir o registro de uma marca solicitada em outros países membros. Dessa forma, no que diz respeito ao caráter regionalista da legislação vigente para patentes, embora esta não preveja diretamente um exame regional – já que os pedidos e exames são realizados pelos escritórios de propriedade intelectual de cada país membro –, é possível observar cooperação e harmonização entre esses países. Isso ocorre devido à existência de princípios gerais que orientam a proteção da propriedade industrial, promovendo uma interpretação uniforme dos direitos garantidos (art. 2º). Além disso, há uma definição precisa do escopo do regime de propriedade industrial, incluindo patentes, como o respeito de patrimônio biológico e genético, conhecimento tradicional de suas comunidades indígenas, bem como afro-americano ou local (art. 3º). Havendo um reconhecido sistema harmonizado, seguindo determinados requisitos. E, embora o procedimento de exame seja realizado a nível nacional, como dito, o compartilhamento de práticas e critérios é incentivado, promovendo esta harmonização (arts. 33 a 35 e 42). Assim, tal embasamento legal comum reduz as divergências nas interpretações e procedimentos e facilita o entendimento dos requisitos de patenteabilidade e dos procedimentos para depósito, exame e concessão.

Vale ressaltar que, dos países membros da CAN, apenas a Bolívia não é país contratante do PCT - Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes, e por isso a decisão 486 também incorpora o princípio de prioridade da CUP - Convenção de Paris. Isso significa que um inventor que deposite um pedido em um dos países membros tem até 12 meses para reivindicar a prioridade desse depósito em outro país membro da Comunidade Andina, conforme descrito no art. 9° da decisão.

Como parte do Sistema Andino de Integração, há ainda o Tribunal de Justiça da Comunidade Andina, órgão jurisdicional formado por um magistrado de cada país e presidido rotativamente por um magistrado por um período de um ano. O tribunal tem caráter permanente, supranacional e comunitário, cuja principal função é declarar a legalidade do direito comunitário e garantir sua aplicação, dirimir controvérsias sobre cumprimentos de obrigações e fornecer uma interpretação uniforme em todos os países membros. Assim, em caso de controvérsias relativas à propriedade intelectual das disposições da decisão 486 e demais, o Tribunal pode ser consultado a fim de fornecer interpretação vinculante que ao longo dos anos vem tornando a jurisprudência regional da comunidade mais robusta, como, por exemplo, o reforço da aplicação uniforme e coerente do ordenamento jurídico comunitário andino no que diz respeito do reconhecimento dos conceitos trazidos na lei, como em decisão recente (novembro de 2024 - processo 382-IP-2021 (TJCA) publicado na Gaceta Oficial do Acordo de Cartagena 5585), em que o tribunal refutou o conflito entre um modelo de utilidade e desenho industrial protegidos, informando que, nestes casos, prevalece o direito mais antigo.

Destarte, no que tange a um ambiente propício a inovação e seu fomento, a combinação de uma base normativa comum, a cooperação entre os países membros nos mais variados âmbitos e o papel ativo do Tribunal Andino diferencia a CAN como um bloco regional ativo nas Américas, principalmente na Latina. Fazendo-a, apesar de todos os desafios, um caso pioneiro de integração e harmonização no campo das patentes - e demais ativos da propriedade industrial - atualmente, endossando um ambiente juridicamente mais consistente.

___________

1 Em 1980 a ALALC (Associação Latino-Americana de Livre Comércio) passa a ser identificada como Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Intercâmbio (ALADI).

2 Até 1996 era conhecido como Pacto Andino, passando a se chamar CAN com o Protocolo de Trujillo.

3 ARAUJO, Flavia Loss de. O documento dos Quatro e as origens da Comunidade Andina. Brazilian Journal of Latin American Studies, São Paulo, Brasil, v. 20, n. 39, p. 343–390, 2021. DOI: 10.11606/issn.1676-6288.prolam.2021.171290. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/prolam/article/view/171290.

4 CAN. DECISIÓN 486. Régimen común sobre Propiedad Industrial. Disponível em: https://www.comunidadandina.org/normativa-andina/decisiones/

5 CAN. Manual para el Examen de Marcas en los Países Andinos Disponível em: https://www.comunidadandina.org/wp-content/uploads/2023/08/MANUAL-DE-MARCAS-COMPLETO-.pdf

6 CAN. La Comunidad Andina. Disponível em: https://www.comunidadandina.org/quienes-somos/

7 TJCA. Tribunal de Justicia de la Comunidad Andina. Preguntas y Respuestas. Disponível em:  https://www.tribunalandino.org.ec/index.php/preguntas_respuestas/#CAN 

8 TJCA. Tribunal de Justicia de la Comunidad Andina. Processo 257-IP-2022 de 23 de outubro de 2023, publicado no Diário Oficial do Acordo de Cartagena 5343 de 25 de outubro de 2023. Disponível em: https://www.tribunalandino.org.ec/decisiones/IP/Proceso%20475-IP-2022.pdf 

9 TJCA. Tribunal de Justicia de la Comunidad Andina. Processo 382-IP-2021 TJCA de 18/11/2024 e publicado na Gaceta Oficial do Acordo de Cartagena nº 5585, de 27/11/2024. Disponível em: https://www.tribunalandino.org.ec/decisiones/IP/Proceso_382_IP_2021_GOAC5585.pdf 

10 Smart IP for Latin América. Colombia. El Tribunal de Justicia de la Comunidad Andina analiza la infracción a un modelo de utilidad por medio de un diseño industrial. Disponível em:  https://sipla.ip.mpg.de/en/news/details/colombia-el-tribunal-de-justicia-de-la-comunidad-andina-analiza-la-infraccion-a-un-modelo-de-utilidad-por-medio-de-un-diseno-industrial.html#:~:text=En%20el%20proceso%20382%2DIP%2D2021%2C%20el%20Tribunal%20de,objeto%20de%20la%20acci%C3%B3n%20por%20infracci%C3%B3n%20el 

Suellen Oliveira
Analista do Latam HUB da Daniel Advogados.

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