Há algo de hipnótico em O Beijo, de Gustav Klimt. A obra nos captura, como se fôssemos testemunhas silenciosas de um momento sagrado. O casal, embalado em um manto dourado, se entrega a um abraço de dimensões míticas, não é um beijo qualquer, mas um rito, um pacto, um instante suspenso no tempo e no espaço.
Mas o que há de jurídico nesse beijo? Talvez, um pouco mais do que se possa imaginar. O Direito de Família, esse grande cenário dos afetos disciplinados, sempre flutuou entre duas perspectivas: o amor como contrato e o amor como destino. Será que a cena de Klimt representa um encontro que transcende as normas sociais ou uma estruturação do afeto dentro dos modelos jurídicos?
O Direito, na tentativa de organizar a sociedade, transformou o amor em contrato. O casamento, a união estável, os regimes de bens, os pactos antenupciais, tudo isso revela o desejo de moldar aquilo que, por definição, deveria ser livre. O afeto ganha cláusulas. A paixão, termos e condições.
Por séculos, o amor romântico se tornou o paradigma das relações, mas a sua formalização jurídica nunca deixou de ser um negócio. Casar significava garantir heranças, unir famílias, consolidar poderes. Mesmo hoje, em tempos de liberdade sentimental, a Justiça continua decidindo sobre alimentos, partilha de bens e guarda dos filhos.
Na obra de Klimt, o beijo é irremediável. O casal não apenas se toca, mas se funde um no outro. Não há separação clara entre os corpos, como se o amor fosse maior do que qualquer um dos dois, como se o tempo não pudesse tocá-los. Mas a arte é dadivosa com os amantes, dá-lhes a eternidade que a vida, muitas vezes, nega.
A beleza de O Beijo está em sua permanência, mas a vida nem sempre permite que os amores durem como na arte. O Direito, em sua função mais humana, lida com a realidade das separações, dos divórcios, dos alimentos, das disputas de guarda, o que prova que nem todo afeto resiste ao tempo.
Por isso, o Direito de Família moderno deve sempre perseguir uma regulação que respeite a subjetividade, que entenda o afeto como um fenômeno dinâmico e não como uma ordem fixa, que não o limite, nem diminua, mas que o ampare se a promessa de eternidade se desfizer.
Contratos e acordos não devem ser encarados como meras formalidades frias, mas como um amparo essencial para aqueles que constroem uma vida em comum. Há algo de profundamente humano nisso. O Direito de Família não existe apenas para oficializar uniões, mas para garantir que, se o amor um dia terminar, o respeito permaneça. Ele protege não apenas os sentimentos que nos unem, mas também a dignidade na hora do fim, assegurando que rupturas não sejam sinônimo de sofrimento e que todos os envolvidos encontrem segurança para seguir em frente.
O casal, já no início de sua jornada, deve definir regras e buscar esse amparo. Isso não é um sinal de desconfiança, mas uma prova de amor e cuidado recíproco, garantindo que, em qualquer circunstância futura, ambos estejam assegurados e respeitados.
Klimt nos deu um amor sem tempo. O Direito nos dá um amor com regras. Mas ambos, no fundo, tratam da mesma coisa: da necessidade humana de se vincular e da inevitabilidade da mudança. Se o beijo de Klimt fosse um contrato, ele teria cláusulas inquebráveis ou permitiria rescisão amigável? Se fosse destino, ele seria eterno ou apenas um instante imortalizado pela arte? É impossível saber.
Talvez a resposta esteja na própria obra: no brilho do ouro que nos fascina, na ternura que nos atrai, na paixão que nos conduz, e na incerteza que nos faz humanos.