O Brasil é um gigante na produção de alimentos. Nossa soja alimenta rebanhos e fábricas em países como China, Estados Unidos e boa parte da Europa. Mas, dentro de casa, a realidade é outra: milhões de brasileiros ainda enfrentam a fome. Como pode um país que planta tanto ver tanta gente com prato vazio?
É uma contradição difícil de aceitar. A soja é um sucesso de exportação, impulsionada por acordos comerciais, alta demanda e incentivos fiscais. Enquanto isso, o feijão, o arroz, a mandioca e outros alimentos básicos vão perdendo espaço nas lavouras. O que era para nutrir a mesa brasileira virou ativo de mercado.
A CF diz, com todas as letras, que a alimentação é um direito social. E a lei orgânica de segurança alimentar e nutricional (lei 11.346/06) reforça isso ao criar instrumentos para que esse direito seja cumprido. Mas na prática, o que vemos é um abismo entre o que está no papel e o que acontece na vida das pessoas.
Em 2022, mais de 33 milhões de brasileiros passaram fome. É como se toda a população de um país pequeno tivesse que escolher entre comer ou pagar as contas. Isso não é só um problema social — é um alerta jurídico, político e ético.
A soja, por sua importância econômica, acabou ganhando prioridade em políticas públicas, incentivos e até na destinação de terras. O sistema de exportações beneficia muito quem está no topo da cadeia, mas não garante comida no prato de quem mais precisa. O Direito, que deveria equilibrar essa balança, muitas vezes só assiste.
Há quem diga que o Direito é neutro, mas não é bem assim. Ele pode ser usado para proteger ou para excluir. Pode garantir dignidade ou reforçar desigualdades. E quando se trata de comida, não dá para ficar em cima do muro.
O conceito de soberania alimentar — ou seja, o direito de um povo decidir como se alimenta, o que planta e como distribui sua produção — ainda é pouco discutido no Brasil. Mas ele está presente em tratados internacionais que assinamos, como o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU.
Juristas como Fábio Konder Comparato e Ingo Sarlet defendem que os direitos sociais, como o da alimentação, devem ser garantidos de forma imediata, com políticas públicas e atuação do Judiciário sempre que houver omissão do Estado.
O STF já reconheceu isso em outras áreas, como no sistema penitenciário (ADPF 347). Está mais do que na hora de levar esse entendimento para a questão da alimentação.
Produzir não basta. É preciso distribuir. É preciso garantir acesso. É preciso lembrar que, por trás de estatísticas e commodities, existem pessoas. Famílias. Crianças. Vidas.
O Direito precisa sair do discurso e agir. Precisa proteger a dignidade acima da lógica do mercado. Porque transformar comida em número é fácil. Difícil é encarar a fome do lado de fora da janela sabendo que o país tem o que comer — mas não para todos.
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1 ALMEIDA, Guilherme Costa de. A soberania alimentar como direito fundamental: perspectivas constitucionais e internacionais. Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 17, n. 3, p. 37–59, 2020.
2 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 9. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
3 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [1988]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 10 abr. 2025.
4 KOSKENNIEMI, Martti. O direito e os fins da história: do progresso das ideias à desordem jurídica internacional. Tradução de Marta Lemos. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
5 ONU. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Nova York: Nações Unidas, 1966. Decreto nº 591, de 6 de julho de 1992. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0591.htm. Acesso em: 10 abr. 2025.
6 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
7 SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e controle jurisdicional: os direitos sociais e a Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2008.
8 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 36. ed. São Paulo: Malheiros, 2013.
9 COMPARATO, Fábio Konder. Os direitos fundamentais e a Constituição: a construção da democracia no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2016.