No intrincado universo do Direito Previdenciário, decisões judiciais paradigmáticas não apenas solucionam litígios individuais, mas também moldam a compreensão e a aplicação das normas, servindo como faróis para casos futuros. Recentemente, o TJ/PE, por meio de sua 2ª Câmara de Direito Público, no julgamento do agravo de instrumento 0009828-64.2025.8.17.9000, sob a relatoria precisa do desembargador Itamar Pereira da Silva Júnior, proferiu uma decisão de tutela recursal que merece destaque e análise aprofundada, não só pela sua importância intrínseca na concessão de um auxílio-doença acidentário (espécie B91) a uma trabalhadora diarista (contribuinte individual), mas, sobretudo, pelos seus potenciais e significativos reflexos para a obtenção do auxílio-acidente (espécie B94) e para os processos de reabilitação profissional.
Este artigo visa dissecar os fundamentos desta decisão, com foco no dispositivo adotado e na argumentação jurídica empregada, e, principalmente, demonstrar como os entendimentos ali consolidados podem e devem ser estrategicamente utilizados na defesa dos direitos de segurados que, mesmo após a cessação de um benefício por incapacidade temporária, permanecem com sequelas redutoras de sua capacidade laboral.
O bojo da decisão: Nexo concausal, prova médica e a proteção da diarista contribuinte individual
A segurada, exercendo a laboriosa atividade de diarista, desenvolveu patologias nos membros superiores (Síndrome do Túnel do Carpo e outras mononeuropatias) que a incapacitaram para o trabalho. O INSS, em sua esfera administrativa, e o juízo de primeira instância negaram a natureza acidentária do benefício. Contudo, a decisão do TJ/PE reformou esse entendimento, determinando a concessão do auxílio-doença acidentário (B91) pelo prazo de 12 meses.
O dispositivo da decisão é claro: “(…) defiro a tutela recursal, determinando ao INSS a concessão do auxílio-doença acidentário (B91), em favor da autora, pelo prazo de 12 meses, a contar da sua implantação, sob pena de multa diária a ser estipulada, sem prejuízo de nova apreciação do pedido após o final do mencionado prazo.”
A argumentação do desembargador relator foi multifacetada e juridicamente densa:
1. Nexo causal e Doença do Trabalho para contribuinte individual: A decisão reconheceu, de forma exemplar, o nexo entre as enfermidades e a atividade de diarista, enquadrando as patologias como doença profissional relacionada ao trabalho (Anexo II, Grupo VI da CID-10, decreto 3.048/1999). Este reconhecimento para uma contribuinte individual é de extrema relevância, quebrando barreiras muitas vezes impostas pela autarquia previdenciária.
2. Teoria da concausa (Art. 21, I, lei 8.213/91 e súmula 117/TJ/PE): Um dos pontos altos da fundamentação foi a aplicação da teoria da concausa. O julgador ressaltou que, mesmo havendo componentes degenerativos, a atividade laboral da segurada atuou como fator de agravamento das lesões. A súmula 117 do TJ/PE (”Configura acidente do trabalho a causa que originou diretamente a redução ou perda da capacidade laboral ou tenha sido responsável pelo seu AGRAVAMENTO”) foi corretamente invocada, demonstrando que o trabalho não precisa ser a causa única ou principal, bastando que contribua para a eclosão ou piora da moléstia.
3. Valorização da prova médica particular (Súmula 118/TJ/PE e princípio do in dubio pro misero): A decisão conferiu especial valor aos laudos e atestados médicos particulares, que indicavam a persistência da incapacidade. Aplicando o princípio do in dubio pro misero (ou pro operario), e em linha com a súmula 118 do TJ/PE (”O juiz não está adstrito ao laudo pericial podendo formar a sua convicção, desde que motivadamente, por outros elementos de prova colhida nos autos”), o desembargador entendeu pela suficiência da prova documental para a concessão da tutela, mesmo antes da perícia judicial. Este ponto é um alento para segurados que frequentemente se deparam com perícias administrativas e judiciais que desconsideram o histórico e a vasta documentação médica particular.
4. Natureza alimentar do benefício e perigo da demora: A urgência da medida foi justificada pelo caráter alimentar do benefício e pelo risco de dano irreparável à subsistência da autora, fundamentos clássicos para a concessão de tutelas de urgência (Art. 300, CPC/15).
Reflexos estratégicos para o auxílio-acidente (B94) e a reabilitação profissional
Ainda que a decisão trate da concessão de um auxílio-doença acidentário (B91), os entendimentos nela exarados são de imensa valia para pleitos de auxílio-acidente (B94) e para orientar processos de reabilitação profissional.
- Configuração do Direito ao auxílio-acidente Pós-B91: A lei 8.213/1991, em seu art. 86, estabelece que o auxílio-acidente será concedido, como indenização, ao segurado quando, após consolidação das lesões decorrentes de acidente de qualquer natureza, resultarem sequelas que impliquem redução da capacidade para o trabalho que habitualmente exercia. A decisão do TJ/PE, ao reconhecer o nexo acidentário e a incapacidade temporária, já estabelece um precedente importante. Se, ao final do período de 12 meses do B91 (ou mesmo antes, caso haja consolidação das lesões com sequelas), a segurada apresentar uma redução permanente de sua capacidade laboral, mesmo que mínima, para a atividade de diarista ou para qualquer outra que venha a exercer, o caminho para a concessão do auxílio-acidente (B94) estará significativamente pavimentado. A robusta fundamentação sobre o nexo concausal e a valorização da prova médica serão argumentos poderosos.
- Direcionamento da reabilitação profissional: Caso a incapacidade para a função de diarista se mostre definitiva, mas haja capacidade para outra atividade, a segurada será encaminhada à reabilitação profissional (arts. 89 a 92 da lei 8.213/1991). A decisão do TJ/PE, ao já fixar a natureza acidentária da moléstia, garante que o processo de reabilitação ocorra sob essa égide. Mais importante: se, mesmo após a reabilitação e o desenvolvimento de uma nova habilidade profissional, ainda persistir uma sequela que reduza sua capacidade para ESTA NOVA FUNÇÃO, o auxílio-acidente também será devido. Este é um ponto frequentemente negligenciado, mas de crucial importância para garantir a proteção integral do segurado.
- Fungibilidade dos benefícios: A própria decisão menciona, ainda que de forma sutil ao citar o AgRg no REsp 1320249/RJ, a questão da fungibilidade entre os benefícios por incapacidade. Isso significa que, mesmo que o pedido inicial seja de um benefício, o juiz pode conceder outro que se mostre mais adequado, sem que isso configure julgamento extra petita. Essa flexibilidade é essencial na seara previdenciária, onde o que se busca é a proteção social do segurado.
Conclusão: Uma decisão a ser replicada e aprofundada
A decisão proferida no agravo de instrumento 0009828-64.2025.8.17.9000 pelo TJ/PE é mais do que um caso isolado de sucesso. Ela representa um importante reforço jurisprudencial para teses defensivas em favor dos segurados, especialmente contribuintes individuais, cujas doenças relacionadas ao trabalho são muitas vezes subnotificadas ou desconsideradas pelo INSS. A ênfase na concausa, na força probante dos documentos médicos particulares e na aplicação do princípio in dubio pro misero são ferramentas que devem ser manejadas com precisão pela advocacia previdenciária.
Para os segurados que se encontram em situações análogas – seja buscando o reconhecimento inicial da natureza acidentária de seu benefício, seja pleiteando o auxílio-acidente após a consolidação de sequelas, ou mesmo durante um processo de reabilitação profissional – esta decisão serve como um precedente inspirador e um guia argumentativo.