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Prestação de contas nas parcerias com Organizações da Sociedade Civil

Entenda como funciona a prestação de contas nas parcerias entre OSCs e o Poder Público, com foco em transparência, resultados e regras claras para uso de recursos públicos.

19/5/2025

1. Introdução

Toda vez que a Administração Pública repassa dinheiro para uma OSC - Organização da Sociedade Civil, seja por meio de um termo de colaboração, termo de fomento ou até mesmo com recursos oriundos de emendas parlamentares, esse valor continua sendo dinheiro público. E, como todo recurso público, ele deve ser usado de maneira correta, com responsabilidade, e sempre sob a vigilância de regras claras e mecanismos de controle.

É aí que entra a prestação de contas, um dos pilares da transparência e da legalidade na gestão de recursos públicos. No contexto da lei 13.019/14 (MROSC - Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil), a prestação de contas tem algumas características próprias que merecem atenção, tanto por parte da administração quanto pelas entidades parceiras.

No âmbito do município de São Paulo, o decreto municipal 57.575/16 regulamenta a aplicação da lei 13.019/14, determinando que toda parceria formalizada com OSC deve observar procedimentos específicos para o monitoramento, avaliação e prestação de contas. Além disso, o decreto municipal 59.210/20 dispõe sobre a execução das emendas parlamentares individuais, frequentemente utilizadas como fonte de financiamento das parcerias com OSCs, estabelecendo prazos, critérios técnicos e exigências adicionais para a prestação de contas.

Este artigo tem como objetivo explicar, de forma clara e acessível, como funciona a prestação de contas nas parcerias com OSCs, quais princípios estão envolvidos, quais documentos devem ser apresentados, e como a fiscalização é feita.

2. Por que a prestação de contas é importante?

Prestação de contas nada mais é do que o ato de mostrar como o dinheiro público foi utilizado, comprovando que ele foi gasto de forma adequada e em benefício da sociedade, de acordo com o quanto estabelecido em plano de trabalho estabelecido entre OSC e Administração Pública (art. 22, da lei 13.019/14). No caso das parcerias com OSCs, a prestação de contas tem uma função pedagógica e de controle, ou seja, ela não serve para punir, mas para orientar, corrigir e prevenir erros, além de permitir à sociedade acompanhar como as políticas públicas estão sendo executadas por meio dessas organizações.

No âmbito municipal, o art. 59, §2º do decreto 57.575/16 reforça essa diretriz ao estabelecer que o julgamento da prestação de contas se dará com base nos resultados atingidos pela execução da parceria.

3. Princípios da prestação de contas segundo o MROSC

A prestação de contas nas parcerias com OSCs deve obedecer a alguns princípios básicos, conforme o art. 5º da lei 13.019/14, dentre os quais destacam-se a transparência e participação social. Significa que a sociedade tem o direito de saber como os recursos estão sendo usados. Por isso, todas as parcerias devem ser publicadas em plataformas eletrônicas (art. 53, caput, decreto municipal 57.575/15) e seus relatórios devem estar acessíveis ao público. A prestação de contas não é feita apenas para os órgãos públicos. Ela também serve para que a população acompanhe, fiscalize e participe da gestão dos recursos.

4. Etapas da prestação de contas

A prestação de contas no regime jurídico das parcerias com OSCs - Organizações da Sociedade Civil deve ser compreendida como um processo técnico e sistemático, que se estende desde a entrega dos documentos por parte da entidade até a análise final pela Administração Pública. Esse processo, conforme definido pela legislação, está dividido em duas fases principais: a apresentação das contas pela OSC e a análise e manifestação conclusiva pela Administração Pública, ambas com prazos, documentos e procedimentos próprios (art. 2º, XIV, da lei 13.019/14).

A etapa de apresentação das contas consiste na entrega de um conjunto de documentos que comprovem tanto a execução física (as atividades realizadas) quanto a execução financeira (a aplicação dos recursos) da parceria. A fase seguinte, conduzida pela Administração Pública, consiste na análise das contas prestadas com avaliação desses documentos, considerando aspectos como cumprimento de metas, resultados alcançados, conformidade financeira e impactos sociais do projeto (art. 56 do decreto  57.575/16).

4.1 Prazo e obrigatoriedade da prestação de contas

A OSC tem o dever de apresentar a prestação de contas dentro dos prazos definidos tanto na lei quanto no instrumento da parceria. A regra geral é que, se a parceria durar até um ano, a prestação deverá ocorrer em até 90 dias após o encerramento da vigência. Se a parceria tiver duração superior, deve haver uma prestação a cada 12 meses e outra final ao término (art. 49 da lei 13.019/14 e art. 58, I e II, do decreto 57.575/16).

Ainda que o plano de trabalho determine prazos específicos, a Administração Pública pode autorizar prorrogação por até 30 dias, desde que haja justificativa adequada. A não observância dos prazos pode gerar a rejeição da prestação e o início de medidas de responsabilização (art. 58, §1º, do decreto 57.575/16).

4.2 Documentos exigidos e conteúdo mínimo

A prestação de contas deve conter um conjunto robusto de documentos que possibilitem ao gestor avaliar o cumprimento do objeto da parceria. Isso inclui, principalmente, o relatório de execução do objeto, no qual a OSC descreve as atividades realizadas, compara as metas previstas com os resultados obtidos e explica eventuais desvios ou dificuldades. Se houver descumprimento parcial de metas, é obrigatório também o relatório de execução financeira, detalhando despesas e receitas com os respectivos comprovantes (art. 66 da lei 13.019/14 e art. 54 do decreto 57.575/16).

Além disso, são exigidos extratos bancários, comprovantes de recolhimento de saldos não utilizados, materiais comprobatórios (fotos, vídeos), relação de bens adquiridos e, quando aplicável, lista de presença e memória de cálculo de rateio de despesas (art. 54, incisos I a VIII, do decreto 57.575/16).

4.3 Forma de apresentação e uso de plataforma eletrônica

Todas as etapas da prestação de contas devem ocorrer preferencialmente em plataforma eletrônica disponibilizada pela Administração Pública, garantindo o acesso público aos documentos e permitindo maior transparência e controle social. Essa plataforma deve assegurar a rastreabilidade e a autenticidade dos arquivos, inclusive com certificação digital (arts. 65 e 68 da lei 13.019/14 e art. 53 do decreto 57.575/16).

O uso de sistemas digitais também facilita a padronização dos procedimentos, a segurança jurídica para as entidades e a supervisão por órgãos de controle externo, como os Tribunais de Contas. Por esse motivo, o município de São Paulo tem implementado a transição do modelo físico para um sistema digital unificado (art. 53, §1º, do decreto 57.575/16).

4.4 Avaliação da prestação de contas pela Administração

A análise feita pela Administração deve ir além do aspecto formal-contábil. O foco está na verificação do cumprimento do objeto pactuado, da entrega das metas, da conformidade dos gastos com o plano de trabalho e dos impactos sociais gerados. Essa análise é dividida em dois blocos: execução do objeto e execução financeira (art. 56 do decreto 57.575/16).

Na análise da execução do objeto, verifica-se se as metas qualitativas e quantitativas foram alcançadas. A execução financeira avalia se os recursos foram utilizados conforme o orçamento aprovado, com especial atenção à conciliação entre despesas realizadas e extratos bancários. Se tudo estiver em ordem, a Administração pode aprovar a prestação de contas sem exigir verificação individualizada de cada recibo (art. 56, §2º, do decreto 57.575/16).

4.5 Relatórios técnicos e parecer conclusivo

A decisão final sobre a prestação de contas é baseada não apenas nos documentos entregues pela OSC, mas também em relatórios técnicos elaborados pela equipe do órgão público responsável pela parceria. Esses relatórios — de monitoramento e de visita técnica — devem ser incorporados ao processo, e o gestor deve emitir parecer técnico conclusivo, manifestando-se pela aprovação, aprovação com ressalvas ou rejeição (arts. 61 e 67 da lei 13.019/14 e art. 55, §3º do decreto 57.575/16).

Esse parecer deve obrigatoriamente abordar quatro dimensões: os resultados já alcançados, os impactos sociais ou econômicos, o grau de satisfação do público atendido e a possibilidade de sustentabilidade da ação após o fim da parceria (art. 67, §4º da lei 13.019/14 e art. 55, §§ 3º e 6º do decreto 57.575/16).

4.6 Regularização de pendências e responsabilização

Se forem identificadas inconsistências ou omissões na prestação de contas, a organização deve ser notificada formalmente e terá até 45 dias para corrigir as falhas, prazo esse prorrogável uma única vez por mais 45 dias. Caso não haja regularização, a autoridade competente deve instaurar procedimento para apuração de responsabilidade e eventual devolução dos recursos (art. 55, §§7º e 8º, do decreto 57.575/16).

Esse mecanismo garante o direito ao contraditório e à ampla defesa, ao mesmo tempo em que evita a impunidade no uso indevido de recursos públicos.

4.7 Transparência das informações sobre a prestação

A OSC também tem o dever de divulgar, em local visível em sua sede e na internet, todas as parcerias celebradas com o poder público, incluindo a situação atual da prestação de contas, prazos de apresentação, datas e resultados. Essa obrigação reforça o controle social e a accountability da sociedade civil perante a população (art. 11, parágrafo único, inciso V, da lei 13.019/14).

5. Prestação de contas simplificada: Proporcionalidade e eficiência no controle

Um dos avanços mais significativos trazidos pelo MROSC foi a previsão da prestação de contas simplificada em casos de parcerias de menor complexidade. Essa medida tem por objetivo desburocratizar o processo de controle quando os valores envolvidos ou a natureza da parceria não justificarem um procedimento longo e excessivamente formal (art. 63, §3º, da lei 13.019/14).

A lógica que sustenta essa modalidade de prestação de contas é o princípio da proporcionalidade, que também orienta a atuação dos órgãos de controle. Em outras palavras, a exigência de comprovações deve ser compatível com o porte da organização, o volume de recursos repassados e o risco da atividade executada.

Mesmo sob esse regime simplificado, a prestação de contas não perde sua essência. A OSC ainda deve apresentar relatório de execução do objeto, acompanhado dos principais comprovantes de despesa e documentos básicos que permitam a verificação da boa aplicação dos recursos públicos.

Por outro lado, a análise administrativa tende a ser mais célere, com menor grau de formalismo e foco no cumprimento das metas principais da parceria.

Esse modelo de prestação simplificada permite que pequenas OSCs, especialmente aquelas com estrutura administrativa reduzida, não sejam sufocadas por exigências incompatíveis com sua realidade, promovendo maior inclusão e equidade no acesso aos instrumentos de parceria com o poder público.

6. Aprovação, ressalvas e rejeição das contas: Critérios de julgamento e consequências

Após a apresentação da prestação de contas pela OSC e a análise técnica pela Administração Pública, o processo deve culminar em uma manifestação conclusiva quanto à regularidade da execução da parceria. Essa manifestação pode resultar em três desfechos distintos: aprovação, aprovação com ressalvas ou rejeição das contas, cada qual com consequências e encaminhamentos próprios (art. 59 do decreto 57.575/16).

A aprovação da prestação de contas ocorre quando o gestor público constata que o objeto da parceria foi devidamente executado, os resultados foram alcançados e os recursos foram aplicados conforme o plano de trabalho aprovado. Neste caso, o procedimento é encerrado sem qualquer penalidade ou exigência adicional à OSC.

Quando são verificadas impropriedades formais ou falhas sem prejuízo à execução do objeto ou dano ao erário, como ausência de assinaturas em documentos, pequenos erros de preenchimento ou atraso justificado na entrega de relatórios, é possível que a prestação de contas seja aprovada com ressalvas. Essa possibilidade é prevista expressamente pelo decreto municipal 57.575/16 (art. 59, II).

Por outro lado, a rejeição da prestação de contas ocorrerá sempre que houver descumprimento injustificado do objeto pactuado, uso indevido dos recursos públicos, ausência de documentos essenciais ou prejuízo ao erário. Nessas hipóteses, a autoridade competente deverá adotar medidas administrativas e, se for o caso, judiciais para o ressarcimento integral dos valores (art. 59, III, do decreto 57.575/16 e art. 70 da lei 13.019/14).

A OSC deve ser formalmente notificada das inconsistências identificadas e terá prazo para apresentar esclarecimentos, justificativas ou documentos complementares, garantindo-se o contraditório e a ampla defesa (art. 55, §7º do decreto 57.575/16). Se, mesmo após o prazo de regularização, as falhas não forem sanadas, o processo deverá ser encaminhado para apuração de responsabilidade, quantificação do dano e cobrança de ressarcimento, conforme determina a legislação vigente (art. 55, §8º do decreto 57.575/16).

É importante observar que a rejeição das contas pode ainda acarretar restrições à celebração de novas parcerias, inclusão em cadastros de inadimplência e, nos casos mais graves, o encaminhamento para abertura de tomada de Contas Especial.

Esse sistema escalonado de julgamento das contas — que distingue falhas formais, vícios sanáveis e irregularidades graves — tem por objetivo garantir segurança jurídica, coerência técnica e proporcionalidade na avaliação das parcerias. Ele também preserva a lógica pedagógica do MROSC, segundo a qual o controle deve ser orientado ao fortalecimento institucional das OSCs, sem comprometer o zelo com os recursos públicos.

7. Conclusão

A prestação de contas nas parcerias entre a Administração Pública e as OSCs - Organizações da Sociedade Civil vai além de um simples procedimento burocrático. Ela representa um instrumento essencial de transparência, controle e avaliação de resultados, conforme disciplinado pela lei 13.019/14 e, no município de São Paulo, pelo decreto 57.575/16.

A legislação estabelece etapas bem definidas, combinando análise técnica com critérios objetivos de avaliação. O foco vai além da conformidade documental: busca-se verificar o cumprimento do objeto, o alcance das metas e os impactos sociais gerados.

A possibilidade de prestação de contas simplificada, conforme critérios legais, evidencia um compromisso com a proporcionalidade e com a realidade das OSCs de menor porte, sem abrir mão do zelo com os recursos públicos. Por outro lado, quando há irregularidades, a norma prevê mecanismos de responsabilização e devolução dos valores.

Mais do que uma exigência legal, a prestação de contas deve ser entendida como uma ferramenta de aprimoramento institucional, que fortalece a parceria entre Estado e sociedade civil, confere legitimidade às ações desenvolvidas e contribui para a efetividade das políticas públicas.

Daniel Santos de Freitas
Bacharel em Direito, Pós-graduado em Direito Administrativo, Membro das Comissões de Direito Administrativo, Consumidor, Constitucional, Processo Civil da OAB-SP e autor de artigos jurídico

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