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A urgência da unificação da dosimetria das sanções no SNDC

O artigo analisa a falta de padrão nas multas dos Procons e defende a urgência de uma dosimetria unificada no Brasil para fortalecer a proteção do consumidor e evitar injustiças.

19/5/2025

A atuação dos Procons no Brasil representa um dos pilares fundamentais da proteção administrativa dos consumidores. Esses órgãos foram concebidos para atuar de forma integrada dentro do SNDC - Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, coordenado pela Senacon - Secretaria Nacional do Consumidor, órgão do Ministério da Justiça.

No entanto, na prática, o que se observa é uma grande dissonância entre os Procons estaduais e municipais em relação à própria Senacon — especialmente no que diz respeito à aplicação das sanções administrativas e, mais especificamente, à dosimetria das multas aplicadas.

Essa fragmentação se revela problemática em vários níveis. O primeiro deles é a ausência de um padrão uniforme e técnico na fixação das penalidades. Cada Procon — e até a própria Senacon — adota resoluções, instruções normativas ou critérios próprios para definir o valor das sanções, ainda que com base no mesmo CDC.

A consequência imediata é que, para a mesma infração, um fornecedor pode sofrer penalidades radicalmente diferentes a depender do ente federativo que realizou a autuação. O que deveria ser um sistema com diretrizes e parâmetros compartilhados tornou-se, na prática, um conjunto de atuações administrativas dissociadas, com graus variados de severidade, tecnicidade e fundamentação.

Essa disparidade alimenta um segundo problema: a insegurança jurídica. A falta de critério uniforme para a dosimetria das sanções é constantemente utilizada pelas empresas autuadas como argumento para contestar as penalidades aplicadas, principalmente no Judiciário.

A jurisprudência tem reconhecido, em muitos casos, a desproporcionalidade das multas impostas por Procons, reduzindo seus valores sob os fundamentos de ausência de razoabilidade ou de proporcionalidade.

Essa atuação judicial, ainda que amparada nos princípios constitucionais, compromete a eficácia das sanções administrativas e enfraquece o papel pedagógico e dissuasório das penalidades. Além disso, esse quadro cria incentivos perversos: fornecedores de grande porte podem se valer dessas inconsistências para judicializar sistematicamente as autuações, cientes de que há margem concreta para anulação ou redução das multas.

Há, portanto, um descompasso evidente entre o ideal normativo do SNDC e sua execução concreta. O sistema, como previsto no título IV do CDC e regulamentado por normas como o decreto 2.181/97, deveria funcionar de forma articulada, técnica e harmônica.

A ideia de sistema implica intercomunicação, coordenação de esforços, compartilhamento de bases normativas e coerência na atuação. Mas o que se vê é o oposto: os Procons não se comportam como partes de um mesmo organismo, e sim como órgãos autônomos, muitas vezes agindo com total independência em relação aos parâmetros estabelecidos pela Senacon.

A ausência de um regulamento nacional e vinculante de dosimetria das sanções representa um dos maiores obstáculos à plena efetividade do sistema de defesa do consumidor no Brasil. A solução, portanto, passa pela criação de um instrumento normativo com força obrigatória para todos os integrantes do SNDC. Esse regulamento deve conter critérios objetivos e subjetivos para a fixação das multas, considerando elementos como a gravidade da infração, o porte econômico do infrator, o grau de lesividade da conduta, a reincidência, a vantagem auferida e a cooperação do fornecedor no processo administrativo.

A construção dessa matriz unificada de dosimetria deve ser feita com base em dados empíricos e boas práticas administrativas, com consulta pública, participação técnica dos Procons e coordenação da Senacon.

Esse regulamento pode tomar a forma de um decreto Federal, uma resolução do CNDC, ou ainda integrar um futuro instrumento normativo de consolidação das normas de proteção administrativa do consumidor. Independentemente da forma, o fundamental é que ele seja vinculante para todos os órgãos do SNDC e sirva como referencial mínimo e obrigatório de dosimetria das sanções.

A uniformização trará benefícios diretos e concretos. Em primeiro lugar, garantirá tratamento igualitário para os fornecedores em todo o território nacional, respeitando o princípio da isonomia administrativa. Em segundo lugar, permitirá maior segurança jurídica para consumidores e empresas, reduzindo o espaço para interpretações subjetivas ou arbitrárias. Em terceiro, fortalecerá a atuação dos Procons, que passarão a aplicar sanções com base em critérios técnicos sólidos e reconhecidos nacionalmente, conferindo maior legitimidade às penalidades impostas. Em quarto lugar, o Judiciário terá um parâmetro de referência para aferir a proporcionalidade das sanções, reduzindo o grau de intervenção nas decisões administrativas e, consequentemente, diminuindo a litigiosidade.

Mais do que uma medida técnica, a unificação da dosimetria das sanções representa um passo essencial para a concretização da ideia de sistema prevista no CDC. O SNDC precisa funcionar como um verdadeiro sistema, e não como uma rede fragmentada de órgãos com agendas e práticas próprias.

A coordenação entre Senacon e Procons deve ser efetiva, contínua e estruturada, com o compartilhamento de bancos de dados, critérios de atuação, estratégias de fiscalização e, principalmente, diretrizes sancionatórias. A atuação sistêmica é condição para o fortalecimento da proteção administrativa do consumidor e para o respeito ao direito fundamental à defesa do consumidor, previsto no art. 5º, inciso XXXII, da CF/88.

Por fim, é importante destacar que a ausência de coordenação na dosimetria das sanções não afeta apenas os fornecedores. Ela compromete a própria credibilidade do sistema de proteção ao consumidor perante a sociedade. Quando um consumidor percebe que uma grande empresa é multada em valores simbólicos por condutas lesivas, ou que as penalidades são anuladas ou reduzidas sistematicamente pelo Judiciário, forma-se a impressão de que a legislação consumerista é ineficaz ou simbólica. Isso reduz o poder dissuasório das normas e enfraquece a confiança social no sistema de defesa do consumidor.

A construção de um regulamento nacional de dosimetria das sanções é, portanto, medida urgente e necessária. Mais do que uma inovação normativa, trata-se de um imperativo institucional para que o SNDC - Sistema Nacional de Defesa do Consumidor funcione como deve: com unidade, coerência e eficácia. A atuação administrativa deve ser previsível, técnica e proporcional. E isso só será possível com a padronização da forma como se aplicam as sanções em todo o território nacional.

Leonardo Garcia
Procurador do Estado do Espírito Santo; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, Autor dos livros e parecerista

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