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O papel da lei na proteção das cultivares e as mudanças do PL 2.143/25

Como o Brasil protege novas plantas e o que muda com o PL 2.143/25? Entenda os direitos dos melhoristas e os rumos da inovação no campo.

21/5/2025
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A proteção jurídica de variedades vegetais no Brasil tem raízes que remontam ao século XX, ainda que de forma incipiente. O Código de Propriedade Industrial de 1945 já previa a possibilidade de proteção para novas variedades, mas sem regulamentação específica, o que tornava sua aplicação praticamente inviável. Enquanto isso, países europeus avançavam rumo à criação de um sistema jurídico próprio, voltado exclusivamente à proteção de obtentores vegetais. Em 1961, foi criada a UPOV - União Internacional para Proteção de Obtenções Vegetais, que estabeleceu os primeiros parâmetros internacionais sobre o tema.

O sistema brasileiro de proteção de cultivares foi formalmente instituído apenas em 1997, com a promulgação da lei 9.456, que estabeleceu um regime jurídico próprio para o reconhecimento dos direitos dos obtentores vegetais. Dois anos depois, em 1999, o Brasil aderiu à Convenção da UPOV com base na Ata de 1978, consolidando seu compromisso internacional com a proteção das novas variedades e alinhando-se às exigências do Acordo TRIPS e às práticas do comércio agrícola global.

A lei de cultivares tem como objetivo garantir ao melhorista — aquele que desenvolve uma nova variedade vegetal — o direito exclusivo de reproduzir, comercializar e explorar economicamente essa planta por um período determinado. O direito é reconhecido mediante a concessão de um certificado de proteção, que assegura ao titular uma espécie de monopólio sobre a cultivar por um determinado período de tempo de até 15 anos, e para até 18 anos no caso de videiras, árvores frutíferas, florestais ou ornamentais. Essa proteção é fundamental para justificar o investimento em pesquisa, infraestrutura técnica, recursos financeiros e tempo necessários ao desenvolvimento de uma nova variedade vegetal.

Do ponto de vista legal, cultivar é definida como uma variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por um número mínimo de descritores; que possua denominação própria; e que seja homogênea e estável ao longo das gerações. Isso está disposto no art. 3º, IV da lei 9.456 – lei de proteção de cultivares:

Art. 3º Considera-se, para os efeitos desta Lei:

(...)

IV - cultivar: a variedade de qualquer gênero ou espécie vegetal superior que seja claramente distinguível de outras cultivares conhecidas por margem mínima de descritores, por sua denominação própria, que seja homogênea e estável quanto aos descritores através de gerações sucessivas e seja de espécie passível de uso pelo complexo agroflorestal, descrita em publicação especializada disponível e acessível ao público, bem como a linhagem componente de híbridos;

Trata-se, assim, de um organismo vegetal diferente — o que não significa, necessariamente, que seja melhor — resultante de cruzamentos ou de processos seletivos, naturais ou induzidos, voltados à obtenção de novas características morfológicas, agronômicas ou genéticas. A lei protege, portanto, a identidade varietal, independentemente de haver ganho técnico mensurável.

Conforme relatado no início do artigo, a proteção das cultivares no Brasil tem respaldo na Convenção da UPOV - União Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais, especialmente em sua versão de 1978, à qual o país aderiu formalmente em 1999. Um dos pilares da convenção é a vedação da chamada “dupla proteção”, na qual não se pode proteger uma mesma planta, simultaneamente, por patente e por direito de cultivar.

Importante notar, contudo, que essa vedação não impede a proteção complementar de aspectos distintos da mesma inovação. Por exemplo, é possível patentear um gene que confere resistência a uma praga ou a um herbicida, enquanto a planta que contém esse gene pode ser protegida como cultivar. Nesse caso, a patente incide sobre o elemento genético ou o processo biotecnológico (dimensão inventiva humana), enquanto a cultivar protege o organismo vegetal como um todo, em sua expressão fenotípica (dimensão natural). Essa distinção é crucial para garantir segurança jurídica, evitar sobreposição indevida de direitos e, ao mesmo tempo, promover a valorização plena da inovação agrícola.

Outro aspecto de destaque na legislação é o chamado “privilégio do agricultor”, que permite ao produtor rural guardar sementes da própria lavoura para replantio em safras futuras, desde que não haja finalidade comercial, conforme disposto no art. 10 da lei. Essa prerrogativa preserva a autonomia do agricultor — especialmente os pequenos e médios produtores — e dialoga com os princípios da segurança alimentar e da função social da propriedade.

Vale lembrar que a lei de cultivares não exige atividade inventiva nos mesmos moldes da legislação patentária. Enquanto a lei de propriedade industrial demanda novidade, aplicação industrial e esforço inventivo, a lei 9.456/97 admite a proteção de variedades obtidas até por seleção natural, desde que atendam aos critérios legais de distinguibilidade, homogeneidade e estabilidade. Esse modelo mais flexível é essencial para adequar o direito à realidade da biotecnologia vegetal, respeitando a natureza dinâmica das plantas e sua interação com o ambiente.

Ao reconhecer juridicamente o valor da diferenciação genética, a lei de proteção de cultivares contribui para a organização do setor produtivo, fomentando a rastreabilidade das variedades comercializadas e permitindo maior previsibilidade jurídica nas relações agrárias. A proteção concedida não pressupõe superioridade agronômica, mas sim identidade própria — e é exatamente isso que a torna um instrumento técnico de grande relevância.

Novas perspectivas: o PL 2.143/25 e a ampliação dos prazos de proteção

Neste cenário, ganha destaque o PL 2.143/25 (anteriormente PLS 404/18), que propõe a ampliação dos prazos de proteção estabelecidos pela lei 9.456/97, alterando seu art. 11 para prever:

  • 20 anos de proteção para cultivares em geral;
  • 25 anos de proteção para videiras, árvores frutíferas, florestais, ornamentais e cana-de-açúcar.

A proposta, já remetida à Câmara dos Deputados, reflete a maturidade do setor e a crescente complexidade envolvida na obtenção de cultivares, sobretudo daquelas de ciclo longo, cujo desenvolvimento e adoção pelo mercado podem levar décadas. Não se trata apenas de aumentar o prazo de exclusividade, mas de reconhecer juridicamente que o valor da cultivar está em sua distinção e estabilidade — elementos que demandam tempo e investimento para serem caracterizados, registrados e reproduzidos com fidelidade.

Mais do que um estímulo à pesquisa privada, a ampliação dos prazos insere-se em um contexto de modernização do marco normativo brasileiro, alinhando-se a tendências internacionais e reforçando a confiança dos agentes econômicos no sistema de proteção varietal. Ao tratar a cultivar como um bem jurídico singular — protegido pela sua originalidade, e não por seu desempenho — o projeto fortalece a segurança jurídica e a diversidade genética no campo.

Em um mundo impactado por mudanças climáticas, pressões por produtividade e demanda por soluções sustentáveis, a consolidação de um sistema eficaz de proteção das cultivares é uma estratégia essencial. Ele assegura direitos a quem investe no desenvolvimento de novas variedades e, ao mesmo tempo, contribui para a diversidade agrícola, o abastecimento alimentar e a autonomia do setor rural. Em última análise, cultivar não é apenas plantar: é distinguir, selecionar, registrar e proteger, tendo o direito papel central nesse processo.

Autor

Ricardo Antonow da Costa Advogado. Formado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Especialização em Direito da Propriedade Industrial (PUCRJ). Mestrando PROFNIT/IFRS.

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