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Armadilha processual ou instrumento de pacificação? Os limites da produção antecipada de provas no Direito Empresarial brasileiro

Produção antecipada de provas pode garantir segurança jurídica ou ameaçar o sigilo empresarial dependendo de como for utilizada.

20/5/2025

Introdução. A dupla face da produção antecipada de provas

A dinâmica dos mercados contemporâneos entrelaça uma multiplicidade de agentes e interesses. Acionistas, consumidores, empresas, empregados, prestadores de serviços, investidores e financiadores compõem um ecossistema complexo, no qual cada ator persegue objetivos próprios, frequentemente divergentes, mas necessariamente interdependentes. Esse universo de relações vai emoldurado por uma ordem jurídica ancorada nos princípios constitucionais econômicos, que orquestram intrincado contraponto entre diferentes vetores. Da dignidade humana à livre iniciativa, da defesa da concorrência à proteção ambiental, do pleno emprego ao estímulo à inovação tecnológica, a Constituição estabelece balizas que se tensionam constantemente.

Sob a perspectiva jurídica, esse ambiente é regulado por permanente dialética entre transparência e sigilo. Por um lado, a segurança e eficiência das relações negociais exigem grau adequado de abertura informacional, vital para diminuir assimetrias, reduzir custos de transação e fomentar a circulação de bens e serviços que impulsionam o desenvolvimento econômico. Por outro lado, a própria vitalidade do sistema de mercado depende da preservação de conhecimentos estratégicos que constituem o diferencial competitivo das empresas. A inovação e o progresso técnico-econômico repousam, em grande medida, sobre a capacidade de proteger informações exclusivas, fruto de investimentos em pesquisa e desenvolvimento. Sem esse amparo, esvai-se o incentivo à busca de soluções criativas e eficientes, comprometendo a própria dinâmica concorrencial e o avanço econômico que dela decorre.

Nesse contexto, a produção antecipada de provas, reformulada pelo Código de Processo Civil de 2.015, emerge como instituto processual que, se mal compreendido, pode converter-se em instrumento de perturbação do sensível equilíbrio entre informação e segredo no ambiente negocial.

Essa reformulação consagrou o reconhecimento do direito autônomo à prova no ordenamento jurídico brasileiro. Para muitos processualistas, teria havido completa desvinculação da necessidade de ligação imediata a uma pretensão de direito material específica. Em algumas hipóteses [incisos II e III do art. 381 do CPC], seria possível a produção de prova sem o requisito da urgência tradicionalmente exigido e sem vinculação a processo principal futuro. A prova é vista como um fim em si mesma, dispensando a obrigatoriedade de ajuizamento posterior de ação principal. Isso permitiria que a parte requeresse a produção probatória simplesmente para avaliar a viabilidade de pretensão futura ou para buscar solução consensual. Outro aspecto significativamente polêmico da produção antecipada de provas é a limitação aos recursos e à defesa. O art. 382, § 4º estabelece expressamente que "não se admitirá defesa ou recurso, salvo contra decisão que indeferir totalmente a produção da prova pleiteada pelo requerente originário", em passagem de duvidosa constitucionalidade.

No ambiente empresarial, a Produção Antecipada de Prova [ou PAP, como tem sido chamada] assume contornos especialmente delicados, pois frequentemente envolve o acesso a informações estratégicas e sigilosas. O direito autônomo à prova é capaz desafiar fortemente a necessária proteção do sigilo empresarial, elemento central da livre iniciativa e da dinâmica concorrencial.

Assim, como ocorre com diversos instrumentos concebidos com finalidades nobres, a produção antecipada de provas, quando transladada para o ambiente empresarial sem as devidas cautelas, tem potencial para converter-se em seu oposto: em vez de instrumento de pacificação, tornar-se vetor de desequilíbrio; em vez de mecanismo de autocomposição, transmutar-se em arma de devassa e exposição de dados estratégicos; em vez de reduzir a litigiosidade, potencializar conflitos ao comprometer a paridade de armas no mercado. “Os mesmos cordiais se podem converter em venenos, pela precipitação da receita, ou intemperança de quem os toma”, na elegante síntese Cairu.

O presente artigo busca analisar as tensões entre o direito autônomo à prova e os imperativos de proteção informacional no âmbito empresarial. A jurisprudência recente revela um esforço dos tribunais togados em compatibilizar o instituto da produção antecipada com os princípios constitucionais, as regras específicas do direito empresarial e os valores tutelados pelo sistema concorrencial. Examinemos, pois, as diretrizes que vêm sendo erigidas para evitar que este mecanismo processual se converta em arma de perturbação da ordem econômica.

Primazia constitucional: necessidade de respeito às garantias processuais fundamentais

A interpretação/aplicação da disciplina de qualquer instituto jurídico, inclusive a produção antecipada de provas, submete-se necessariamente à Constituição. Repete-se o óbvio, no sentido de que garantias processuais fundamentais – contraditório, ampla defesa, isonomia e devido processo legal – são inafastáveis por regras infraconstitucionais.

Por uma simples questão de hierarquia, o art. 382, § 4º do CPC, ao estabelecer vedações ao exercício de defesa no procedimento de produção antecipada, não pode ser interpretado de forma isolada, sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Seria uma subversão da ordem que um dispositivo processual conseguisse neutralizar garantias constitucionais expressas. O Superior Tribunal de Justiça, sensível a esta questão, já assentou que a limitação ao contraditório não pode significar sua supressão total, sob pena de incorrer em "grave ofensa ao correlato princípio processual, à ampla defesa, à isonomia e ao devido processo legal"1.

No contexto empresarial, no qual a produção antecipada frequentemente pode envolver acesso a informações estratégicas ou uma investigação disfarçada, a observância rigorosa do contraditório é ainda mais crucial. Como bem identificado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a aplicação irrefletida do art. 382, § 4º pode configurar verdadeira "armadilha processual", em que o requerido se vê privado de meios adequados para proteger informações sensíveis, em frontal violação ao art. 5º, LV, do texto constitucional2 3. Acórdãos relatam casos em que a parte autora, em seu pedido de acesso, praticamente reproduz lista de informações e de documentos que costuma ser enviada pelas auditorias no início do processo investigativo conhecido como due diligence, visando à análise minuciosa de informações, documentos e operações, capazes de fechar diagnóstico preciso da situação econômica, financeira e jurídica da empresa4.

Não se trata, aqui, de esvaziar o instituto da produção antecipada, mas de reconhecer que sua aplicação está necessariamente condicionada à observância da Constituição Federal. O processo civil contemporâneo, embora voltado à efetividade, não pode prescindir de legitimidade constitucional, sob pena de configurar-se como instrumento de opressão, e não de justiça.

Regras específicas devem prevalecer sobre regras gerais: a coerência como pressuposto hermenêutico

O sistema jurídico não é um amontoado caótico de normas, mas um todo orgânico e coerente. A coesão sistemática, exigência inafastável da segurança jurídica, pressupõe que as regras processuais gerais não podem ser aplicadas de modo a esvaziar regras específicas de direito material, especialmente quando estas últimas representam opções legislativas conscientes pela proteção de determinados interesses jurídicos. O art. 2.º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro contém regra basilar de harmonização do sistema, forçando a resolução das aparentes antinomias com que nos depararmos: manda, nosso ordenamento, que a lei específica prevaleça sobre a lei geral5. E mais: “A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior”, determina o § 2º do art. 2º daquele diploma.

Os arts. 381 a 383 do CPC estabelecem o regime jurídico geral da produção antecipada de provas. No entanto, quando aplicados a relações empresariais, estes dispositivos não hão de ser interpretados isoladamente, desconsiderando o microssistema normativo que rege tais relações. “Não se interpreta o direito em tiras, aos pedaços”, sempre nos ensinou Eros Roberto Grau. No campo societário, por exemplo, a Lei das S.A. disciplina minuciosamente os mecanismos de acesso à informação, num delicado equilíbrio entre transparência e proteção de dados sensíveis.

Seria verdadeiro contrassenso hermenêutico admitir que o procedimento genérico de produção antecipada pudesse simplesmente neutralizar este sistema específico, cuidadosamente arquitetado pela Lei. Quando a Lei das Sociedades Anônimas limita o acesso a determinadas informações, mesmo para acionistas, protege não apenas o interesse da companhia, mas também o próprio interesse público na preservação de um ambiente concorrencial saudável.

O princípio da especialidade impõe que as normas específicas do direito empresarial prevaleçam sobre as regras gerais do processo civil, quando houver incompatibilidade entre elas. Esta relação de especialidade é, ainda, reforçada pelos valores constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, que informam todo o direito empresarial brasileiro. Uma regra de processo não pode devassar o sigilo empresarial, muito menos anular vantagens competitivas.

O sigilo empresarial como elemento central da dinâmica concorrencial

A proteção ao sigilo de informações estratégicas constitui elemento nuclear do sistema empresarial e concorrencial. Em uma economia de mercado, a assimetria informacional é fator de dinamismo e inovação – é a possibilidade de desenvolver e preservar conhecimentos exclusivos que incentiva os agentes econômicos a investir em pesquisa, desenvolvimento e diferenciação competitiva.

O sigilo empresarial não representa mero capricho dos agentes econômicos, mas ativo intangível, muitas vezes mais valioso do que o próprio patrimônio material. Na tradição jurídica brasileira, esta compreensão manifesta-se na proteção legal aos segredos de negócio e informações confidenciais. A Lei de Propriedade Industrial [Lei nº 9.279/96], em seu art. 195, XI e XII, tipifica como crime de concorrência desleal a divulgação, exploração ou utilização de segredos de negócios ou informações confidenciais obtidas em relação contratual ou empregatícia, mesmo após o término do contrato ou mediante fraude.

Dados sobre estrutura de custos, margens operacionais, estratégias de expansão, técnicas produtivas, listas de clientes, modelos de negócio, pesquisas em andamento e inúmeras outras informações sensíveis compõem o patrimônio informacional da empresa que, uma vez exposto, tem a capacidade de comprometer irreversivelmente sua posição no mercado. A proteção a tais informações não visa apenas ao interesse egoístico do empresário, mas à própria funcionalidade do sistema concorrencial, que pressupõe diferenciação e inovação constantes.

A exposição indevida de informações estratégicas sem que haja respeito ao contraditório gera efeitos deletérios não apenas para a empresa diretamente afetada, mas para todo o ecossistema concorrencial. Permitir que um agente econômico tenha acesso privilegiado a dados sensíveis de seu competidor significa conceder-lhe vantagem competitiva artificial, comprometendo a paridade de armas que deve orientar a disputa no mercado.

Quando um tribunal determina, por exemplo, a exibição de documentos contendo "segredos de negócio", está potencialmente interferindo na própria dinâmica concorrencial do setor. Por isso, como bem pontuado pelo Desembargador Cesar Ciampolini, "há de haver mínimos indícios do direito à prova pleiteada, mormente quando se pretende o exame de sigilos fiscal, contábil e de segredos de negócio" de uma empresa6.

A jurisprudência, atenta a estas questões, tem adotado postura cautelosa quando a produção antecipada envolve informações empresariais sigilosas. Reconhece-se que o acesso a tais dados deve ser excepcional e condicionado à demonstração robusta de sua necessidade, sob pena de configurar-se verdadeira "devassa" incompatível com os valores tutelados pelo ordenamento jurídico.

A patológica "fishing expedition". Guerras societárias, disputas empresariais e a tentativa instrumentalização do Poder Judiciário pela Produção Antecipada de Provas.

Fenômeno recorrente no uso distorcido da produção antecipada de provas é a chamada "fishing expedition" – prática mediante a qual uma parte busca, por meio de pedidos genéricos e especulativos, devassa irrestrita nos documentos da parte contrária, na esperança de "pescar" elementos que possam fundamentar futuras pretensões.

A produção antecipada de provas, mesmo quando desvinculada do requisito da urgência, não configura "carta branca" para investigações especulativas indiscriminadas. Como bem assentado pelo TJSP, "não se pode reconhecer tenha a parte autora um direito incondicionado e ilimitado à produção antecipada de qualquer prova que venha a pleitear com fundamento nos incisos II e III do referido art. 381 do Código de Processo Civil, com base em meras conjecturas"7.

O art. 382 do CPC exige "especificação das razões que justificam a necessidade da antecipação", o que pressupõe a identificação precisa dos fatos sobre os quais se pretende produzir prova. Esta exigência é incompatível com a vagueza típica da fishing expedition, em que se busca amplo acesso a documentos sem demonstração clara da pertinência e relevância da prova para fim específico.

No ambiente empresarial, a fishing expedition frequentemente visa ao acesso exagerado e ilegítimo a informações estratégicas das empresas. Qualquer advogado militante no foro empresarial tem consciência de que o Poder Judiciário assume relevância ímpar nas disputas comerciais e societárias. Uma antecipação de tutela ou decisão favorável obtida rapidamente não constitui mero acontecimento processual, mas representa a prevalência concreta do interesse do autor no plano dos fatos, fazendo pender a balança a seu favor em eventual negociação. Tome-se como exemplo o acionista minoritário que se opõe a determinado aumento de capital e obtém decisão liminar para obstar o registro da ata da assembleia deliberativa. Sua posição negocial perante o controlador será substancialmente diversa conforme a sorte da medida judicial. Com a liminar em seu favor, o minoritário impede que o controlador aporte o capital na forma planejada, paralisando a operação até que se deslinde a complexa questão da adequação/licitude do preço de emissão das ações considerado para a operação. Maior incentivo não há para que o controlador busque o acordo. Ao contrário, se a medida não lhe é concedida, o controlador fica em posição vantajosa, pois o tempo atua a seu favor.

Não por acaso, a disciplina jurídica empresarial estabelece ritos próprios e requisitos específicos para o acesso a informações societárias. Se houver resistência, o acionista minoritário somente logrará acesso pleno à contabilidade, aos negócios e aos números da empresa se propuser ação de exibição de livros, comprovando adequadamente seu direito e a sua detenção de mais de 5% do capital social8. É-lhe vedado iniciar processo investigativo amplo, vasculhando documentação mercantil por mera conveniência. No procedimento adequado, o magistrado analisará criteriosamente o direito daquele acionista, suas alegações e eventuais indícios de fraude para, somente então, autorizar o acesso pretendido. Poderia todo esse sistema de proteção ser superado em uma penada, toda a disciplina jurídica empresarial ser desconsiderada simplesmente porque agora existe a produção antecipada de provas, um instrumento aplicável também ao direito de família? A resposta é manifestamente negativa. Em uma frase: ao menos no campo empresarial, não existe um direito autônomo à devassa.

Normalmente, a exibição de livros não interessa à empresa, assim como a invasão de nossos computadores, escancarando nossa intimidade, não agrada a qualquer de nós. Independentemente de ser ou não justificada [o que somente se verificará após análise cuidadosa da situação fática e do direito material aplicável], é evidente que um acionista mal-intencionado pode utilizar a produção antecipada de provas como perigoso instrumento de coação: ou o controlador a ele se curva, ou enfrentará a ameaça de devassa dos livros, documentos e negócios da empresa, depoimentos de todos os administradores --- que seriam determinados sem que a empresa pudesse sequer se defender.

Merecem aplausos a jurisprudência e as decisões dos juízes especializados, que têm sido firmes no rechaço a estas tentativas, reconhecendo que a ação de produção antecipada "não se presta à devassa ou especulação nas contas" de empresas, tampouco permite "ampla investigação" sem objeto claro. Este posicionamento é essencial para preservar a integridade do instituto e impedir sua instrumentalização para fins escusos9.

Produção antecipada x Discovery: falsa equivalência e perigos da importação acrítica

Uma interpretação equivocada que ganhou corpo é a de que a produção antecipada de provas, nos moldes do CPC/2015, teria introduzido em nosso ordenamento o instituto da discovery, característico do processo civil norte-americano. Tal equiparação, além de tecnicamente imprecisa, mostra-se potencialmente nociva ao adequado funcionamento do sistema processual brasileiro, especialmente no campo empresarial.

A discovery norte-americana constitui fase processual obrigatória e preliminar do processo, conforme disposto especialmente na Regra 26 das Federal Rules of Civil Procedure. Por meio daquele procedimento, as partes podem obter acesso a documentos e informações em poder da parte contrária ou de terceiros, com escopo significativamente amplo10. No entanto - e este ponto é frequentemente negligenciado nas análises comparativas - mesmo no sistema norte-americano existem limites rigorosos quando se trata de informações empresariais sensíveis.

A Regra 26(c) das Federal Rules of Civil Procedure prevê expressamente que os tribunais podem emitir ordens de proteção [protective orders] para evitar a divulgação de "segredos comerciais ou outras informações confidenciais de pesquisa, desenvolvimento ou comerciais" ou estabelecer que tais informações "sejam reveladas apenas de maneira específica".

No paradigmático caso Seattle Times Co. v. Rhinehart (1984), a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu a validade constitucional dessas ordens de proteção, estabelecendo que "o caráter único do processo de discovery exige que o tribunal tenha ampla latitude para formular ordens de proteção"¹¹.

Assim, mesmo no sistema jurídico que serviu de inspiração para comparações com a produção antecipada de provas brasileira, há salvaguardas significativas para proteger informações empresariais sensíveis. A própria jurisprudência americana reconhece que "segredos comerciais gozam de um privilégio qualificado e, portanto, têm direito a alguma proteção"11 durante o procedimento de discovery.

Como bem assentado pela jurisprudência do TJSP, a produção antecipada de provas não possui caráter investigativo amplo e genérico, característico da discovery, mas configura procedimento específico voltado à produção de provas sobre fatos determinados e relevantes5. A equiparação entre os institutos, longe de representar modernização do processo civil brasileiro, configuraria retrocesso na proteção a valores constitucionalmente tutelados, como o sigilo empresarial e a livre concorrência.

Controvérsia arbitral e produção antecipada de provas: delimitação de competências

No universo das relações empresariais contemporâneas, a arbitragem consolidou-se como mecanismo preferencial de solução de controvérsias, especialmente em contratos de maior complexidade. Neste contexto, surge a delicada questão sobre a competência para processamento de ações de produção antecipada de provas quando existe convenção de arbitragem entre as partes.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em construção que merece aplauso, estabeleceu importante distinção a este respeito. A intervenção do Poder Judiciário em matéria submetida à arbitragem somente se justifica nas hipóteses expressamente previstas em lei, dentre as quais se destaca a concessão de medidas de urgência antes de instituído o tribunal arbitral [art. 22-A da lei 9.307/1996].

Assim, quando a produção antecipada se fundamenta no inciso I do art. 381 do CPC, caracterizando medida de urgência diante do "fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos", admite-se sua apreciação pelo Poder Judiciário antes de instituída a arbitragem. Contudo, quando baseada nos incisos II ou III do mesmo dispositivo, desvinculada do requisito da urgência, a competência é exclusiva do tribunal arbitral.

Esta distinção é crucial para preservar a eficácia das convenções de arbitragem no ambiente empresarial. Admitir que qualquer produção antecipada de provas pudesse ser processada pelo Poder Judiciário, independentemente de urgência, significaria esvaziar significativamente o escopo da jurisdição arbitral e comprometer a autonomia da vontade das partes.

Como bem pontuado pelo TJSP em julgado de relatoria do Desembargador J. B. Paula Lima, "a parte que pretende ajuizar ação de produção antecipada de prova, com fundamento numa das hipóteses dos incisos II e III do art. 381 do Código de Processo Civil, vale dizer, sem urgência, deve aguardar a instituição do tribunal arbitral para ser perante este ajuizada"12.

Esta orientação jurisprudencial contribui para a segurança jurídica e para o fortalecimento da arbitragem como mecanismo eficiente de solução de controvérsias empresariais, evitando-se que o instituto da produção antecipada de provas seja utilizado como subterfúgio para esvaziar os efeitos das convenções de arbitragem.

Conclusão. A Prudência Necessária no Manejo da Produção Antecipada

A produção antecipada de provas, reformulada pelo CPC de 2.015, representa importante inovação no sistema processual brasileiro, consagrando o direito autônomo à prova como instrumento de segurança jurídica e efetividade jurisdicional. Todavia, sua aplicação no campo empresarial não pode ocorrer de forma desvencilhada dos princípios constitucionais, das regras específicas do direito material e dos vetores de funcionamento da ordem jurídica do mercado.

A interpretação dos arts. 381 a 383 do CPC deve ser pautada pelo respeito às garantias processuais fundamentais, pela observância do princípio da especialidade, pela vedação à fishing expedition, pela proteção ao sigilo empresarial e pela preservação da eficácia das convenções de arbitragem. Estas balizas, que estão sendo construídas pela jurisprudência com notável sensibilidade às peculiaridades do direito empresarial, mostram-se essenciais para que o instituto cumpra sua função legítima, sem se converter em mecanismo de perturbação da ordem econômica.

É fundamental que os árbitros, assim como os juízes, reconheçam que o direito processual não pode ser interpretado de forma isolada do direito material subjacente. A importação de entendimentos jurisprudenciais desenvolvidos para outros ramos do direito, como o direito de família13, sem as necessárias adaptações às peculiaridades do direito empresarial, representaria grave distorção hermenêutica.

A arbitragem, por sua flexibilidade procedimental e por sua aproximação com a prática internacional, deve estar particularmente atenta ao risco de desnaturação do instituto da produção antecipada de provas e à importação acrítica de práticas como a discovery. Os árbitros devem, assim como os juízes, zelar pelo equilíbrio entre o direito à prova e a proteção a valores fundamentais como o sigilo empresarial e a livre concorrência.

Em tempos de crescente complexidade das relações empresariais e de intensificação da competição nos mercados, o equilíbrio entre transparência e sigilo torna-se cada vez mais delicado. O processo, seja judicial ou arbitral, como instrumento de pacificação social, não pode desconsiderar este equilíbrio, sob pena de induzir distorções no sistema econômico e comprometer valores constitucionalmente tutelados.

________

1 STJ, Terceira Turma, Recurso Especial nº 2.037.088/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellize, julgado em 7 de março de 2.023.

2 “LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.

3 TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Agravo de Instrumento nº 2012806-62.2025.8.26.0000, Rel. Des. Fortes Barbosa, julgado em 17 de março de 2.025.

4 TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível nº 1022356-31.2021.8.26.0100, Rel. Des. Cesar Ciampolini, julgada em 21 de novembro de 2.022.

5 Abordei a questão com Eros Roberto Grau em “O Estado, a Empresa e o Contrato”, São Paulo, Malheiros Editores, 2.005, p. 185 “E, como ambas estão em plena vigência, a lei especial prevalece sobre a geral. O critério da especialidade surge, assim, para eliminar as antinomias aparentes. Havendo uma norma geral e uma especial que aparentemente incidiram sobre o mesmo suporte fático, deve prevalecer a segunda”. Mais uma vez, a lição de Carlos Maximiliano é insuperável: “Se existe antinomia entre a regra geral e a peculiar, específica, esta, no caso particular, tem a supremacia. Preferem-se as disposições que se relacionam mais direta e especialmente com o assunto de que se trata [...] ‘em toda disposição de Direito, o gênero é derrogado pela espécie, e considera-se de importância preponderante o que respeita diretamente à espécie’” [Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, 4ª edição, Rio de Janeiro, Editora Freitas Bastos, 1.947, p. 169]. No mesmo sentido, ensina Bobbio: “Il (...) criterio (...) della lex specialis, è quello in base a cui di due norme incompatibili, una generale e una speciale (o eccezionale), prevale la seconda: lex specialis derogat generali. Anche qui la ragione del criterio non è oscura: legge speciale è quella que deroga ad una legge più generale, ovvero che sottrae ad una norma una parte della sua materia per sottoporla ad una regolamentazione diversa (...)” [Norberto Bobbio, Teoria generale del diritto, Torino, G. Giappichelli Editore, 1.993, p. 220-221].

6 TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível nº 1022356-31.2021.8.26.0100, Rel. Des. Cesar Ciampolini, julgada em 21 de novembro de 2.022.

7 TJSP, Sentença na Produção Antecipada de Prova nº 1103837-48.2023.8.26.0002, em trâmite perante a 2ª Vara Empresarial e Conflitos de Arbitragem, proferida pelo Juiz de Direito Guilherme de Paula Nascente Nunes em 7 de fevereiro de 2.025.

8 Lei 6.404, de 1.976. “Art. 105. A exibição por inteiro dos livros da companhia pode ser ordenada judicialmente sempre que, a requerimento de acionistas que representem, pelo menos, 5% (cinco por cento) do capital social, sejam apontados atos violadores da lei ou do estatuto, ou haja fundada suspeita de graves irregularidades praticadas por qualquer dos órgãos da companhia”.

9 Tomo emprestadas, aqui, as já clássicas palavras do Professor Flavio Yarshell: “o emprego da justificação não pode e não deve se dar de forma incondicionada [...]. Portanto, a medida também se sujeita à demonstração do interesse e à pertinência subjetiva. Tampouco se deve entrever na justificação um caráter neutro, como se ela fosse incapaz de afetar a esfera jurídica de outrem, por se tratar de medida administrativa, desprovida de caráter contencioso”. E mais: “É certo que a necessidade da prova – não apenas da antecipação – depende da exposição de um substrato fático mínimo e coerente com a medida que se quer produzir. A prova, independentemente do momento em que produzida, tem por objeto fatos. Eventual deficiência na narrativa dos fatos que se quer investigar interfere com a antecipação porque, na verdade, prejudica a admissibilidade da prova. A atividade probatória representa – com maior ou menor intensidade – forma de invasão na esfera individual, a impor restrições a direitos como o sigilo, a intimidade, a privacidade, a inviolabilidade domiciliar e até mesmo a propriedade” [YARSHELL, Flávio Luiz. Da produção antecipada da prova. In ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa et al. (Coord.). Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. São Paulo Ed. RT, 2.015, pdf].

10 A parte pode requerer “that a trade secret or other confidential research, development, or commercial information not be revealed or be revealed only in a specified way” [Rule 26 (c)(1)(G) das Federal Rules of Civil Procedure de 1º de dezembro de 2.024].

11 “Nevertheless, trade secrets enjoy a qualified privilege and are therefore entitled to some protection. “. Fair Competition Law. Discovery, Protective Orders, and Spoliation in Trade Secrets Litigation. Disponível em: https://faircompetitionlaw.com/2013/11/11/discovery-protective-orders-and-spoliation-in-trade-secrets-litigation/. Acesso em 30 de abril de 2.025.

12 TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Apelação Cível nº 1039201-07.2022.8.26.0100, Rel. Des. J. B. Paula Lima, julgado em 15 de outubro de 2.024.

13 O Recurso Especial nº 2.103.428/SP [STJ, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 19 de março de 2.024], embora tenha contribuído significativamente para a compreensão do direito autônomo à prova, versa sobre matéria sucessória, cujas implicações e valores tutelados diferem substancialmente daqueles pertinentes às relações empresariais.

Paula Andréa Forgioni
Professora Titular e Chefe do Departamento de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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