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Lucros: Cuidados jurídicos e contábeis na distribuição

Distribuição de lucros exige respaldo contábil, cláusula contratual clara e atenção à legalidade para evitar tributação e insegurança jurídica.

21/5/2025

Distribuir lucros é, para o sócio ou acionista, um dos momentos mais significativos da vida societária - representa o retorno legítimo do capital investido e, principalmente, a remuneração pelo risco assumido na atividade empresarial. Esse direito, entretanto, não é absoluto, sendo modelado pelas disposições legais e, especialmente, pelas cláusulas contratuais pactuadas entre os sócios, conforme esclarece Ulhoa Coelho que “são direitos inerentes à condição de sócio participar do resultado social, fiscalizar a gestão da empresa, contribuir para as deliberações sociais e retirar-se da sociedade”, destacando que “a extensão desses direitos é ponto de negociação entre os membros da sociedade” e que “o contrato social define a distribuição dos lucros1. Assim, a repartição dos lucros se insere não apenas como um direito subjetivo do sócio, mas como expressão concreta da autonomia privada exercida na constituição e regulamentação interna da sociedade.

No plano legal, esse direito encontra respaldo principalmente no art. 10 da lei 9.249/1995, que garante a isenção do imposto de renda sobre os lucros ou dividendos distribuídos com base nos resultados apurados por empresas tributadas pelo lucro real, presumido ou arbitrado.

Essa isenção, no entanto, não afasta a necessidade de observância de critérios legais, contábeis e documentais, exigindo o Fisco que esses lucros estejam efetivamente demonstrados por meio de escrituração contábil regular. Como bem observa Carsoni Fernandes, “a escrituração mercantil registra fatos, eventos e responsabilidades decorrentes do exercício da atividade econômica, oferecendo aos sócios, administradores e partes interessadas uma visão precisa da situação patrimonial da empresa e das mutações decorrentes de sua operação, conforme previsto no art. 176 da lei 6.404/1976. Trata-se, portanto, de instrumento técnico-jurídico indispensável não apenas para a gestão e transparência da entidade2. Portanto, é por meio da representação fidedigna proporcionada pela escrituração que se comprova a existência de lucros reais, capazes de justificar a distribuição isenta de tributação. Se houver distribuição sem esse lastro contábil, em valores superiores aos lucros efetivos ou por vias indiretas, como pró-labore disfarçado ou contratos simulados, pode-se configurar a chamada distribuição disfarçada de lucros, a qual estará sujeita à requalificação e à respectiva incidência tributária.

Essa possibilidade de isenção também se estende às empresas optantes pelo Simples Nacional, conforme o art. 14 da LC 123/2006 - microempresas e empresas de pequeno porte podem distribuir lucros isentos até o limite da presunção legal estabelecida com base na receita bruta. Caso ultrapassem esse limite, é indispensável manter escrituração contábil regular, capaz de comprovar que os lucros efetivamente sustentam essa distribuição. Na ausência dessa comprovação, o excedente poderá ser considerado rendimento tributável do sócio.

Outro ponto recorrente na prática empresarial é a distribuição antecipada de lucros, dentro do próprio exercício, sendo permitida, porém exige atenção. Para que haja antecipação válida e isenta de IR, a empresa precisa demonstrar que possui resultado positivo, seja por meio de balancetes intermediários confiáveis, seja por reservas acumuladas. Se houver distribuição sem base contábil clara, ou que ultrapasse o lucro real disponível, poderá ser enquadrada como pagamento sem causa, o que implica aplicação da alíquota de 35% prevista no art. 61 da lei 8.981/1995.

A jurisprudência administrativa do Carf tem enfrentado com frequência esse tema. Em julgados como os acórdãos 2402-007.0623 e 2301-006.9104, ficou decidido que valores pagos a título de lucros, mas que superam o lucro contábil disponível, devem ser tributados como rendimento da pessoa física. Por outro lado, o acórdão 2102-001.2395 reconheceu que a ausência de balancetes intermediários não inviabiliza, por si só, a antecipação — desde que o lucro apurado ao final do exercício seja suficiente para cobrir o total distribuído.

Outro precedente relevante é o acórdão 1201-004.5616. Nele, discutiu-se a validade da distribuição de lucros a um sócio cujo ingresso ainda não estava formalmente arquivado na Junta Comercial no momento da antecipação. O Carf, por voto de qualidade, entendeu que o mais relevante era o fato de já ser sócio no momento da deliberação final da distribuição — e não a data do arquivamento, assim, afastou-se a tributação por ausência de causa jurídica.

Para que a distribuição de lucros — especialmente quando realizada de forma antecipada ou em proporção distinta daquela prevista no capital social — ocorra com segurança jurídica, é fundamental que essa possibilidade esteja prevista de forma clara no contrato social. É preciso que constem cláusulas específicas autorizando tanto a antecipação de lucros dentro do exercício quanto a distribuição desproporcional, desde que acordada entre os sócios., contudo, essa liberdade contratual deve vir acompanhada de formalização adequada: atas de reunião, balancetes, e demonstrações contábeis consistentes, como a DRE, são instrumentos indispensáveis para dar legitimidade à operação. Nesse sentido, o Carf assim se posicionou: “Não há vedação legal no que se refere à distribuição desproporcional de lucros em relação à participação social, quando o contrato social for claro ao dispor sobre tal distribuição. Havendo contabilidade que cumpre com as formalidades intrínsecas e extrínsecas e sendo a apuração de lucro regular e contabilizada, não há que se falar em incidência de imposto de renda em face dos valores distribuídos como lucro7. Essa manifestação reforça que, havendo base contratual e suporte contábil adequados, a autonomia dos sócios pode ser plenamente exercida sem gerar efeitos tributários indevidos.

Distribuir lucros, portanto, é um direito inquestionável, mas que vem acompanhado de deveres, exigindo este ato responsabilidade, transparência e rigor técnico. Quando realizado dentro das regras, protege a empresa, valoriza o capital investido e fortalece a confiança entre os sócios; por outro lado, se conduzido sem critério, expõe a sociedade a riscos fiscais, autuações e conflitos internos.

Contudo, para que não se continue dependendo de interpretações variáveis — muitas vezes contraditórias — por parte da fiscalização, é essencial que o legislador estabeleça critérios objetivos. É urgente que a legislação defina, de forma clara e expressa, os documentos mínimos exigidos para a antecipação de lucros e para a validade de acordos de distribuição desproporcional, pois de outra forma, sem essa delimitação legal, contribuintes e fiscais continuarão em rota de conflito e a insegurança jurídica persistirá.

Propõe-se, por fim, que esses critérios passem a constar diretamente na lei 9.249/1995 ou em norma complementar com força vinculante de aplicação uniforme, com isso, a clareza normativa e a segurança jurídica não são privilégios do contribuinte, mas dever do Estado num sistema tributário equilibrado e confiável.

_________

1 ULHOA COELHO, Fábio. Curso de Direito Comercial – Direito de Empresa, vol. 2, RT, 22ª ed., p. RB 15.1

2 CARSONI FERNANDES, Fabiana. O PAPEL DA CONTABILIDADE COMO PROVA DA APURAÇÃO DO LUCRO DA EXPLORAÇÃO. Revista de direito contábil fiscal. São Paulo. Volume 6. Número 12, jul./dez. 2024. p. 202

3 4ª Câmara, 2ª. Turma Ordinária. Relatora Renata T. Cassini. Publicado em 24/4/19

4 3ª Câmara, 1ª. Turma Ordinária. Relatora Juliana M. F. Feriato. Publicado em 21/2/20

5 1ª Câmara, 2ª. Turma Ordinária. Relator Giovanni C. N. Campos. Publicado em 17/6/11

6 2ª Câmara, 1ª. Turma Ordinária. Relator Alexandre E. Pinto. Publicado em 12/3/21

7 Acórdão: 2402-009.350. 4ª Câmara, 2ª. Turma Ordinária. Relator Gregório R. Junior. Sessão 12/1/21

Juarez Arnaldo Fernandes
Especialista em Direito Constitucional e Tributário, Empresarial e Recuperação de Empresas, Penal e Econômico, Contábil e Financeiro. Contador. Perito Contábil Judicial. Adm. Judicial. Parecerista.

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