Migalhas de Peso

No futuro vão nos perguntar como permitimos isso!

Como aceitamos que a sobrevivência seja fixada em R$ 600 reais? A justiça precisa reagir antes que a história a julgue como cúmplice da miséria. A hora de escolher é agora!

27/5/2025

Filipe Luís, ex-jogador e atual técnico do Flamengo, revelou em entrevista que já recebeu convite para fazer propaganda de casas de apostas – e recusou. Segundo ele, depois de compreender os danos que esse mercado vem causando à sociedade brasileira, percebeu que seria impossível compactuar com isso. Mais do que uma opinião, sua fala é um alerta. E termina com uma frase que deveria ecoar nas instituições, nas escolas e nos tribunais: “no futuro, vamos olhar para trás e nos perguntar como permitimos isso”.

Filipe foi além: questionou como pudemos permitir que todos os 20 clubes da Série A do futebol brasileiro aceitassem patrocínio de casas de apostas. Como naturalizamos a ideia de que o futebol, paixão nacional, se tornasse uma vitrine institucional do vício? Como deixamos que a principal ferramenta de influência cultural da juventude brasileira se tornasse um canal de sedução para jogos que destroem vidas?

Ele comparou esse cenário com o que já vimos acontecer no passado: quando cigarros eram vendidos como sinônimo de liberdade, virilidade e saúde. Lembrou que, durante anos, era normal ver os carros da Fórmula 1 estampados com logomarcas de tabaco. Os comerciais mostravam surfistas, atletas e casais felizes. Era a glamourização da morte. Ninguém dizia que aquilo causava câncer. Hoje, ao rever essas imagens, nos envergonhamos. Sabemos o quanto a publicidade enganosa matou, arruinou famílias e gerou gastos bilionários ao SUS.

Filipe Luís não falou apenas sobre apostas. Ele falou, sem saber, sobre o Brasil que vira o rosto para a dor dos vulneráveis. Quando ele se pergunta “como permitimos isso?”, a pergunta ultrapassa o futebol. Ela atinge, em cheio, a forma como o sistema jurídico e estatal tem tratado o drama do superendividamento.

Porque o vício em jogos – a ludopatia – não termina na perda de um dinheiro ou outro. Ela termina em dívidas impagáveis. Em famílias endividadas. Em colapso emocional. E o que o Estado fez para enfrentar isso? Publicou um decreto que reduz a sobrevivência humana a R$ 600. Isso mesmo: o mínimo que uma pessoa precisa para viver, segundo o decreto 11.150/22, são seiscentos reais. Nem um real a mais.

Esse é o ponto onde a omissão se transforma em crueldade institucionalizada.

Ora, o próprio DIEESE acaba de afirmar que o salário mínimo necessário, em abril de 2025, para uma família de quatro pessoas viver com dignidade no Brasil, seria de R$ 7.156,15. Estamos falando de mais de onze vezes o valor fixado pelo decreto.

Como um juiz pode aplicar um decreto que sequer cobre o valor de um aluguel em regiões periféricas? Como aplicar esse valor diante do preço do arroz, do gás de cozinha, da energia elétrica, do transporte urbano?

A resposta é simples: não pode.

Aplicar esse decreto, sem crítica, é renunciar ao dever de julgar conforme a Constituição. É desconsiderar a dignidade da pessoa humana, a proteção integral do consumidor (art. 5º, XXXII, da CF) e a função social da jurisdição. É decretar, em termos práticos, a falência da Justiça enquanto instrumento de reequilíbrio social.

É comum ouvirmos que o consumidor se endivida porque quer. Que deveria ter se controlado. Mas essa visão é ultrapassada, simplista e, sobretudo, cruel. Ela ignora que estamos lidando com um sistema construído para empurrar as pessoas ao consumo irracional, à oferta abusiva de crédito, à propaganda enganosa.

O CDC, especialmente após a lei 14.181/21, reconheceu a necessidade de tratamento humanizado e judicial ao superendividamento. Essa lei inovou ao permitir ao consumidor superendividado apresentar um plano de pagamento viável, que preserve o seu “mínimo existencial”.

Mas o que é esse “mínimo existencial”? Certamente não é R$ 600.

Tratar esse valor como parâmetro é o mesmo que dizer que o consumidor tem que escolher entre comer e pagar dívida. É um “acordo” com a fome.

A magistratura, especialmente a de primeiro grau, tem um papel crucial nesse cenário. O juiz não é – e jamais deveria ser – apenas um aplicador mecânico de decretos. Ele é, por essência, o garantidor dos direitos fundamentais inscritos na Constituição. Ele é, ou deveria ser, a voz do bom senso jurídico e do compromisso com a dignidade humana.

Ao adotar de forma cega e automática o valor de R$ 600 como “mínimo existencial”, o magistrado abdica do seu papel de julgador. Transforma-se num simples executor de políticas desumanas. Pior ainda: torna-se cúmplice da normalização da miséria.

E aqui fica um convite, direto, objetivo e necessário: será que algum magistrado conseguiria viver com esse valor? Apenas R$ 600 para todo o mês. Sem mulher. Sem filhos. Sem auxílio. Sem plano de saúde. Apenas ele e o mercado. Apenas ele e os preços. Apenas ele e a realidade.

A pergunta, claro, é retórica. Sabemos que a resposta é não. Nenhum juiz conseguiria. Nenhum ser humano deveria.

E é justamente por isso que se exige mais do julgador. Porque ele não está no lugar de quem sofre. Porque ele tem estabilidade, salário digno, segurança institucional. E é nesse lugar de privilégio que ele precisa olhar para o outro com empatia. Aplicar a lei é mais do que apertar o botão de um sistema; é compreender o drama humano que se desenrola diante dos autos.

O CDC não nasceu para ser interpretado com frieza. Ele é fruto de uma luta social por justiça e equilíbrio. Seu espírito é o da proteção do vulnerável, da reparação do abuso, da promoção da dignidade – e não da chancela à desigualdade.

O art. 6º, inciso I, do CDC é cristalino: é direito básico do consumidor a proteção da sua dignidade, saúde e segurança econômica.

E não há dignidade com R$ 600. Não há justiça com esse valor.

O futuro nos julgará.

Assim como hoje nos espantamos ao rever comerciais de cigarro na TV, ou carros de Fórmula 1 cobertos por logomarcas de tabaco, chegará o dia em que olharemos com vergonha para o momento em que deixamos a publicidade de apostas dominar os campos, as telas e as mentes.

E mais: nos perguntaremos como a Justiça – aquela que deveria ser a última trincheira do ser humano contra o colapso – decidiu aceitar que o mínimo existencial fosse fixado em R$ 600.

Vamos ouvir, do futuro:

– Como vocês permitiram que o vício em jogos fosse promovido como estilo de vida?

– Como aceitaram que a sobrevivência fosse fixada em um valor que sequer garante o básico?

– Como não reagiram diante de uma sociedade adoecida por dívidas, desamparada pela lei, ignorada pelos tribunais?

Filipe Luís fez sua parte. Disse não. Disse basta. Com coragem, com lucidez, com humanidade.

Agora é a vez do sistema de Justiça.

Ainda há tempo para a magistratura se reconectar com sua missão constitucional. Ainda é possível romper com a lógica fria da legalidade mecânica e restaurar a centralidade da dignidade humana no processo judicial. O juiz não pode ser apenas o técnico que aplica normas. Ele deve ser o guardião da esperança, o intérprete sensível da realidade concreta, o instrumento vivo da Justiça social.

É preciso lembrar que por trás de cada processo há um rosto, uma história, uma família à beira do colapso. E o que se espera da toga não é distanciamento - é coragem moral para proteger os que mais precisam, mesmo quando o ordenamento positivo parece indicar o caminho oposto.

Porque ao fim das contas, a sociedade não recordará os julgados tecnicamente perfeitos, mas as decisões que fizeram a diferença na vida dos invisíveis.

A história é implacável com os neutros. Os que hoje se escondem atrás de decretos serão amanhã lembrados como cúmplices do abandono.

Que cada juiz reflita: quando o futuro bater à porta e perguntar “o que você fez diante da injustiça?”, o que sua consciência responderá?

A hora de escolher é agora.

E, como bem ensinou Filipe Luís, não podemos mais dizer que não sabíamos.

Leonardo Garcia
Procurador do Estado do Espírito Santo; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, Autor dos livros e parecerista

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