Migalhas de Peso

Bets e a venda de contas em plataformas de apostas

A prática de cessão ou venda da conta configura violação dos termos estipulados na esfera cível e acende alertas nas cercanias criminais.

29/5/2025

Desde que entrou em vigor, a lei 14.790/23 vem redesenhando o mercado de apostas esportivas no Brasil. O que antes era uma atividade atravessada por informalidade, insegurança jurídica e lacunas regulatórias, hoje se encontra sob um arcabouço normativo robusto e em sintonia com exigências internacionais de compliance, prevenção à lavagem de dinheiro, rastreabilidade das transações financeiras e responsabilidade empresarial.

Mas nem tudo é “fairplay”. No subterrâneo das apostas reguladas, vem ganhando corpo uma prática que preocupa investigadores, operadoras e operadores do Direito: a compra e venda de contas de apostas, inclusive por estrangeiros.

Inicialmente, o que pode aparentar uma simples infração contratual, na verdade, guarda potencial de gravidade penal significativa.

Em resumo, trata-se da cessão de cadastros em plataformas legalizadas a terceiros, permitindo que estes movimentem grandes somas de dinheiro sem se identificarem formalmente. Um terreno fértil para a dissimulação da origem de valores, no clássico enredo da lavagem de dinheiro com atuação de “laranjas”.

O modelo é simples, mas perigoso: um indivíduo comercializa sua conta em uma plataforma de apostas legalizada a um terceiro, que passa a utilizá-la para movimentar grandes quantias, apostando ou transferindo valores.

A partir daí, essa conta criada com dados válidos e verificação biométrica, funciona como “barreira de identidade”. Subterfúgio daqueles que desejam ocultar a origem de recursos provenientes de atividades criminosas, como tráfico de drogas, corrupção ou fraudes digitais.

Notadamente, tal prática é vedada do ponto de vista legal. Isso, porque a portaria SPA/MF 1.143/24 determina, em seu art. 16, que os cadastros devem ser pessoais, intransferíveis, vinculados ao CPF e verificados por ferramentas como a biometria facial.

Art. 16. Os agentes operadores de apostas devem adotar procedimentos que permitam qualificar os apostadores ou usuários da plataforma por meio de coleta, verificação e validação de informações, compatíveis com o seu perfil de risco.

Parágrafo único. Os procedimentos de qualificação devem abranger providências voltadas à:

I - avaliação da compatibilidade entre a capacidade econômico-financeira do apostador e as operações a ele associadas;

II - verificação da condição do apostador ou usuário da plataforma como PEP - pessoa exposta politicamente, familiar até o segundo grau, representante ou estreito colaborador de pessoa nessa condição, nos termos da norma editada a respeito pelo Coaf; e

III - obtenção das informações do apostador ou usuário da plataforma necessárias à composição do conjunto mínimo de dados cadastrais, conforme definido nas normas da Secretaria de Prêmios e Apostas.

Parágrafo único. A condição de PEP perdura por cinco anos contados da data em que a pessoa deixa de figurar em posição que a enquadre nessa condição.

Não obstante, o art. 26 da lei 14.790/23 veda expressamente a criação de contas por “interpostas pessoas” ou os ditos “laranjas”:

Art. 26. É vedada a participação, direta ou indireta, inclusive por interposta pessoa, na condição de apostador

Por isso, a prática de cessão ou venda da conta configura violação dos termos estipulados na esfera cível e acende alertas nas cercanias criminais, a exemplo da falsidade ideológica (art. 299, Código Penal), associação criminosa (art. 288, CP), estelionato (art. 171 e 171-A, CP) e lavagem de dinheiro (art 1º da lei 9.613/1998).

Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, de quinhentos mil réis a cinco contos de réis, se o documento é particular.   

Art. 288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer crimes: 

Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos.

Parágrafo único. A pena aumenta-se até a metade se a associação é armada ou se houver a participação de criança ou adolescente. 

Art. 171 - Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, de quinhentos mil réis a dez contos de réis

Art. 171-A. Organizar, gerir, ofertar ou distribuir carteiras ou intermediar operações que envolvam ativos virtuais, valores mobiliários ou quaisquer ativos financeiros com o fim de obter vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento.  

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.  

Art. 1o Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal. 

§ 1o Incorre na mesma pena quem, para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal:               

I - os converte em ativos lícitos;

II - os adquire, recebe, troca, negocia, dá ou recebe em garantia, guarda, tem em depósito, movimenta ou transfere;

III - importa ou exporta bens com valores não correspondentes aos verdadeiros.

Ademais, como resposta, o legislador imprimiu obrigações às operadoras, que passaram a adotar programas de integridade e medidas anti-fraude que reforça este cerco; inclusive com análise de padrões atípicos de apostas. Também são exigidos relatórios periódicos e sistemas de alerta para as autoridades, com a imposição de cooperação com entidades esportivas e órgãos reguladores, facilitando investigações de manipulações de resultados em tempo real.

Já no que tange a lavagem de dinheiro, as operadoras devem implementar mecanismos eficazes de due diligence, análise de perfil do usuário, identificação de movimentações atípicas e comunicação imediata ao COAF, além da proibição do uso de boletos, cartões de crédito e contas de terceiros; justamente a fim de dificultar uma eventual ocultação da origem dos recursos.

Inegavelmente, a lei das Bets trouxe avanços, mas também impôs desafios, onde um dos principais é impedir que a estrutura legal seja usada para dar aparência de licitude a dinheiro sujo.

Realidade essa que exigirá ainda mais protagonismo das autoridades da persecução penal e dos legisladores. Afinal, o objetivo é manter um “jogo limpo” sob regras legais.

_________

BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 23 maio 2025.

BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria de Prêmios e Apostas. Portaria SPA/MF nº 1.143, de 11 de julho de 2024. Estabelece requisitos e procedimentos para a exploração comercial da modalidade lotérica de apostas de quota fixa. Disponível em: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=461891. Acesso em: 23 maio 2025.

BRASIL. Lei nº 14.790, de 29 de dezembro de 2023. Dispõe sobre a tributação das apostas de quota fixa, altera as Leis nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, nº 9.613, de 3 de março de 1998, e nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/l14790.htm. Acesso em: 23 maio 2025.

BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 23 maio 2025.

BRASIL. Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998. Dispõe sobre os crimes de lavagem de dinheiro e cria mecanismos de prevenção e repressão. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9613.htm. Acesso em: 23 maio 2025.

Thiago de Miranda Coutinho
Especialista em Inteligência Criminal. Graduado em Jornalismo e Direito. Escritor, articulista nos principais veículos jurídicos do país e integrante do Corpo Docente da Acadepol (PCSC).

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