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"Maturidade executiva coletiva" e "distinção" no Tema 1.270 do STF

Para não errar, o STF deve enfrentar a distinção entre "casos coletivamente maduros" à execução e outras situações, a fim de definir a legitimidade executiva do Ministério Público.

30/5/2025

A correta identificação da questão sob discussão em juízo é imprescindível à formação adequada dos precedentes, sendo exatamente este o ponto de provocação sobre o Tema 1.270 do STF, Leading Case: RE 1.449.302, o qual debate1 a legitimidade do Ministério Público à execução coletiva de direitos individuais homogêneos.

Com efeito, não se pode confundir a (1º) legitimidade individual para a igualmente individual execução de sentença condenatória genérica envolvendo direitos individuais homogêneos, com (2º) a legitimidade coletiva para a execução igualmente coletiva da mesma sentença supracitada por parte de legitimados institucionais coletivos, tais como Ministério Público e Defensoria Pública. Ambas as formas de execução podem até mesmo coexistir por dicção legal (CDC, art. 982, “in fine”), ainda sendo acompanhadas do (3º) modo fluído (CDC, art. 100) – como ressaltou Camilo Zufelato3 em parecer apresentado ao STF.

O Tema 1.270 do STF claramente tem como eixo a 2ª hipótese citada acima. Contudo, o ministro relator em seu voto limitou a discussão ao primeiro caso e o voto divergente, ao contrário, circunscreve-se à segunda hipótese.

Desse modo, até aqui, não andou bem o STF, pois não registrou claramente se tratar de hipóteses fático-jurídicas distintas e igualmente cabíveis a depender das circunstâncias de cada caso concreto.

Com o julgamento interrompido por pedido de vistas do ministro Flávio Dino, neste mês de maio de 2025, renova-se a possibilidade de o STF compreender e delimitar um conceito útil de maturidade executiva coletiva, a qual permite sim, como extensão da legitimidade coletiva da fase de conhecimento, a liquidação e execução coletivas pelos legitimados coletivos, tais como o Ministério Público, conforme é debatido no Tema 1.270. Ou seja, não se trata de beneficiar somente um indivíduo, mas sim de respaldar toda coletividade e o “interesse social” existente nesse âmbito.

Noutro passo, o STF poderá, para os casos “imaturidade executiva coletiva” e diante de necessária atuação do beneficiado para fins de verificação de dados imprescindíveis à liquidação e execução individual, afastar o cabimento da imediata execução coletiva, para, em seu lugar, limitar a atuação da parte por seu advogado ou, se vulnerável econômica, por intermédio da Defensoria Pública (conforme exposto em “obiter dictum” na ADIn 3.943). Nesses casos, a legitimidade coletiva executiva ficará limitada ao tardio “fluid recovery”.

Por outro lado, a partir de Arenhart, Zaneti Jr. e Vitorelli4 vem a lição segundo a qual existem técnicas coletivas hábeis a tornar o processo maduro à execução coletiva. Em tais casos, essa execução não se confunde com a residual “execução fluída” (“fluid recovery”), do art. 1005 do CDC, mas, pelo contrário, dialoga com a execução coletiva prevista no art. 98 do mesmo Código – o qual, aliás, permite a convivência entre execuções coletivas e individuais, sendo perceptível a legitimidade concorrente na lei: Art. 97. A liquidação e a execução de sentença poderão ser promovidas pela vítima e seus sucessores, assim como pelos legitimados de que trata o art. 82 (CDC).

Com efeito, nos casos de “maturidade executiva coletiva”, o processo coletivo brasileiro pode se aproximar da “class action” bifásica. Segundo Antonio Gidi6, na “class action”, a primeira fase decide a “questão comum” e a segunda fase se destina à “apuração dos danos individuais”, podendo ser resolvida de muitas maneiras, conforme o caso. Desse modo, atento às peculiaridades e às regras do CDC, as ações coletivas brasileiras ganham também maior complexidade e adaptabilidade aos problemas reais enfrentados no sistema de justiça.

Assim sendo, o STF não analisará o caso adequadamente sem lançar olhar atento aos arts. 97 e 98 do CDC, peça central do Microssistema de Processo Coletivo que admite a existência (e até mesmo concorrência) de liquidações/execuções individuais e coletivas.

Portanto, a execução coletiva, quando cabível, é decorrência natural da legitimidade coletiva para a fase de conhecimento prevista no referido microssistema. No caso do Ministério Público, basta um breve olhar sobre os Temas 4717 e 8508 do próprio STF, para concluir pela proximidade ministerial com os direitos individuais homogêneos com perspectiva social e transcendente – devendo ocorrer, assim, diálogo entre a legitimidade da fase cognitiva com aquela da fase executiva.

Em suma, o STF não concluirá adequadamente o Tema 1.270, se não distinguir (1) os casos de “maturidade executiva coletiva”, a permitir, de pronto, a econômica execução coletiva, (2) das situações de “imaturidade executiva coletiva”, com necessária exigência de atuação do beneficiário individual por intermédio de seu representante postulatório individual (advogado ou defensor público).

Curiosamente, o voto do relator (ministro Toffoli) parece tratar da segunda hipótese (execução individual de sentença coletiva) e o voto divergente (ministro Moraes) da primeira situação (execução coletiva de sentença coletiva).

Enfim, aguarda-se que, com o pedido de vistas do ministro Flávio Dino, as distinções sobre a “maturidade executiva” possam repercutir corretamente sobre o colegiado para fins de uma adequada visão do acesso à justiça e aos direitos, construindo uma jurisprudência íntegra e coerente (CPC art. 9269).

____________

1 Tema 1270 – “Legitimidade do Ministério Público para promover a liquidação coletiva de sentença proferida em ação civil pública sobre direitos individuais homogêneos disponíveis, visando a reparação de danos individualmente sofridos pelas vítimas ou seus sucessores.”

2 Código de Defesa do Consumidor - CDC, “Art. 98. A execução poderá ser coletiva, sendo promovida pelos legitimados de que trata o art. 82, abrangendo as vítimas cujas indenizações já tiveram sido fixadas em sentença de liquidação, sem prejuízo do ajuizamento de outras execuções.”

3 ZUFELATO, Parecer. Autos do RExt n. 1.449.302, Tema n. 1270, p. 14 do parecer.

4 ARENHART, Sérgio Cruz. ZANETI JR., Hermes. VITORELLI, Edilson. Liquidação e execução coletiva de obrigação de pagar quantia a indivíduos identificados: o Tema 1.270 da Repercussão Geral. Revista de Processo. São Paulo, v. 357, p. 271-295, Nov. 2024.

5 CDC, “Art. 100. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida.”

6 GIDI, Antonio. A Class Action como instrumento de tutela coletiva de direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: RT, 2007, p. 170.

7 Tese do Tema n. 471: “Com fundamento no art. 127 da Constituição Federal, o Ministério Público está legitimado a promover a tutela coletiva de direitos individuais homogêneos, mesmo de natureza disponível, quando a lesão a tais direitos, visualizada em seu conjunto, em forma coletiva e impessoal, transcender a esfera de interesses puramente particulares, passando a comprometer relevantes interesses sociais.”

8 Tese do Tema n. 850: “O Ministério Público tem legitimidade para a propositura de ação civil pública em defesa de direitos sociais relacionados ao FGTS.”

9 CPC, “Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.”

Maurilio Casas Maia
Professor (UFAM) e Defensor Público (DPAM). Pós-Doutor em "Direito Processual" (UFES). Doutor em Direito Constitucional (UNIFOR). Mestre em Ciências Jurídicas (UFPB).

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