1. Introdução
O Brasil sofre um terrível atraso metodológico no tratamento do riso, do humor! Sim, o humor “é coisa séria”. Para se dizer o menos, é o riso que desnuda o tirano, que faz troça dos famosos e poderosos. Seus limites, por mais indesejáveis, repugnantes e odiosas que sejam as anedotas, os gracejos, os chistes, os sketches, as pantomimas, devem ser venerados! É preciso lembrar uma situação fundamental: o humor opera no reino da fantasia, da linguagem, da abstração do real. Não é emissor de um desejo. Não é um statement, nem uma incitação à prática de um fato real.
Antes de se falar em limite para a liberdade de expressão no humor, é necessário compreender que “limitar” o humor, é o mesmo que “limitar” uma metáfora, uma ironia, uma aliteração e assim por diante. Quem, numa hipérbole, fala que “fulano morreu de frio” não quer dizer que fulano está “morto”. Muito menos desejar que esteja morto. Só um tolo acreditaria nisso; ou alguém que não tenha o mínimo controle da linguagem; ou, pior, alguém malicioso, que saiba o que é uma hipérbole, e deseja forçar uma maliciosa interpretação errônea, para atingir um interesse pessoal que não caiba naquela linguagem.
Henri Bergson bem coloca a seriedade e complexidade do riso quando alerta que “os maiores pensadores, desde Aristóteles, enfrentaram este ... problema, que sempre se dissimula ante seus esforços, desloca-se, escapa e ressurge, impertinente desafio lançado à especulação filosófica.”1 Uma tal complexidade não pode ser resolvida com análises simplórias. Muito menos para sustentar condenações. Não! Um processo judicial não é lugar para definir se o riso deve ser calado. O juiz não é um iluminado que descobriu os limites do riso, aquilo que a filosofia discute há séculos. Tenhamos um mínimo de senso do ridículo, já que a humildade seria pedir muito.
2. Há limites para o humor?
Julgar o humor é como julgar figuras de linguagem. Há textos que contêm “ironia”, outros “antítese”, e assim por diante. Como sabido, figuras de linguagem têm uma função para a língua: realçar a mensagem. Quando diz o poeta “do riso fez-se o pranto”, caso o leitor não tenha repertório para compreender a antítese, certamente concluirá: que frase imbecil. Pior é quando os gestores de uma novilíngua, cientes de que se trata de uma figura de linguagem, deturpam intencionalmente a função da figura de linguagem, para, esquecendo-lhe maliciosamente o contexto, imputar uma mensagem nefasta ao seu emissor. Como a novilíngua não possui regras claras, apenas poucos arautos controlarão o discurso, satanizando uns desafetos e isentando quem os convém. Um duplo-moral, onde não há moral alguma.
O humor, tal qual as figuras de linguagem, igualmente reside no mundo da emissão de sentidos. O riso possui estudos sedimentados, com funções detectadas ao longo de séculos – ou milênios – de observações de estudiosos. Talvez um consenso: o humor é incômodo por natureza. Incômodo principalmente por ser um “alívio, uma fuga ao real”. Como refere Eagleton,2 por vezes “o humor envolve brutal desprezo pelo valor humano, valor este que, mesmo assim, continuamos a prezar.” O riso é a fagulha animal que nos envergonha, e como não a seguramos, rimos.
A anedota, o chiste, a picardia, quando tratam de assunto incômodo, não fazem necessariamente uma defesa daquele comportamento incômodo na vida real. E complementa: “Podemos mergulhar na irracionalidade durante um abençoado momento, sem termos de arcar com suas consequências mais assustadoras. Se, todavia, ficamos satisfeitos com esses golpes contra o superego, é em parte porque (embora ambos os incidentes tenham de fato ocorrido) estamos na presença de uma peça de linguagem, e não da coisa real.” 3Igual um filme: o ator que interpreta o vilão que mata o mocinho, no mundo real, não quer matar ninguém! Deu para entender? Ou quer que desenhe?
2.1. Rowan Atkinson, o “cavalo de polícia gay” e o ridículo
Não haveria melhor teorização no mundo jurídico para a liberdade de expressão no humor do que o discurso do comediante e ator inglês Rowan Atkinson:4 “Então, minhas preocupações são menos para mim e mais para aqueles mais vulneráveis devido a seu perfil menos privilegiado. Como o homem preso em Oxford por chamar um cavalo da polícia de gay. Ou o adolescente preso por chamar a Igreja da Cientologia de seita. Ou o dono do café preso por exibir passagens da Bíblia na tela da TV.” 5
Mais adiante, tratando da noção de como a persecução tanto prévia quanto posterior pode ser perniciosa para a liberdade de expressão – o que deveria ser suficiente para acabar de uma vez por todas com a nefasta e infantil crença brasileira de que “censura” seria apenas “prévia” – o mesmo Atkinson refere: “Li em algum lugar, um defensor do status quo afirmando que o fato de o caso do cavalo gay ter sido abandonado depois que o homem preso se recusou a pagar a multa e que o caso da Cientologia também foi abandonado em algum momento durante o processo judicial foi prova de que a lei funcionava bem, ignorando o fato de que a única razão pela qual estes casos foram abandonados foi por causa da publicidade que eles tinham atraído. A polícia sentiu que o ridículo estava logo ao virar da esquina e retirou suas ações. Mas e os milhares de outros casos que não desfrutaram do oxigênio da publicidade? Isso não foi ridículo o suficiente para atrair a atenção da mídia? Mesmo para aquelas ações que foram retiradas, as pessoas foram presas, interrogadas, levadas ao tribunal e depois liberadas. Isso não é uma lei que funciona corretamente: isso é censura do tipo mais intimidante, garantida de ter, como diz Lord Dear, um "efeito arrepiante" sobre a liberdade de expressão e protesto livre.”
Também é perfeito em afirmar como leis que limitam a liberdade de expressão seriam ridículas, perigosas ou com viés ditatorial: “O problema claro com a criminalização do, ou tornar ilegal o, “insulto” é que muitas coisas podem ser interpretadas como tal. A crítica é facilmente interpretada como insulto por certas partes. O ridículo é facilmente interpretado como um insulto. O sarcasmo, uma comparação desfavorável, meramente declarando um ponto de vista alternativo à ortodoxia, pode ser interpretado como insulto. E como tantas coisas podem ser interpretadas como insulto, não é surpreendente que tantas coisas tenham sido, como mostram os exemplos de que falei anteriormente.”
As tentativas de controle do discurso – dentre eles o cômico – não passam de uma travestida busca de controle do “opositor”, uma censura detestável, ainda que seja uma “ambição razoável e bem intencionada de conter elementos desagradáveis na sociedade” acabaria criando “uma sociedade de natureza extraordinariamente autoritária e controladora”, disse-o Atkinson. O que se poderia chamar de “a Nova Intolerância, um novo, mas intenso desejo de amordaçar vozes incômodas de dissidência”. E citam sempre o “paradoxo a intolerância” Popper, como se houvesse uma elevação moral dos que defendem a restrição de tolerância.
Como foi decidido em Redmond-Bate v Director of Public Prosecutions:6 "A liberdade de expressão inclui não apenas a liberdade de ser inofensivo, mas também a de ser irritante, a expressão contenciosa, a excêntrica, a herética, a indesejável e a provocadora - desde que não tenha a tendência de provocar violência (real)".
2.2. Patrice O’Neal estaria em cana!
É de se recordar uma piada (White Guys Are So Afraid Of Looking Racist, ou Caras brancos estão tão medrosos de parecerem racistas) do comediante norte-americano Patrice O’Neal,7 que num único texto trata de temas leves como racismo, Ku Klux Klan, Skinheads e câncer! Basta apenas compreender cada “punch line” para saber que, obviamente, O’Neal não estava defendendo o racismo ou fazendo troça de nenhum paciente de câncer. Ele estava denunciando um comportamento. “That’s your punishment! For racism, guilt!”. E, lógico, não queria pregar moral a ninguém! Fazia troça até da “lição de moral” que a piada pudesse produzir. Um gênio. Porém, há quem assista sua apresentação e prefira inverter a interpretação: “Oh, como ele pode usar o racismo e uma doença como forma de fazer piada?” E, se alguém desejar censurar com o novo modismo, a soft censura do lugar de fala, apesar do sobrenome irlandês, Patrice O’Neal era um homem negro.
2.3. Duplo sentido: A rosca, o padeiro descuidado e o “humor que deu errado”
A sabedoria popular: “há quem veja o olho, há quem só repare na remela”. O Brasil é pródigo nos testes de tolerância nacional para violações de liberdades de expressão. E os humoristas são campeões de audiência (judicial). Entenderam o trocadilho? Não? Como diz a piada de loira, é preciso rir uma vez quando se conta, outra vez quando se explica, e, uma terceira vez, quando se entende a piada! Vamos lá.
O humor, como toda atividade humana, tem dias ruins e dias bons. Quando um padeiro queima (uma fornada de) roscas — duplo sentido, hein, hein! Piada de tiozão bêbado no churrasco — não deve ser cancelado. Uma piada é assim: tem piada que não funciona. Tem piada ruim. Tem humorista ruim! Nem todo mundo é um Chico Anysio ou um Zé Vasconcelos! Hale,8 em importante artigo publicado no European Journal of Humour Research avalia o sentido do “failed humour”. Ainda que não exista um conceito coeso do que seja uma “falha do humor”, há algumas pistas como: “as performances de humor que “falham por causa de algum descompasso entre repertório e público”.9 Nem sempre a falha do humor, ou a supressão do “riso” por outra reação — como a violência —será culpa necessariamente do humorista ou do comediante. Pode decorrer da visão de mundo peculiar de parte do auditório — ainda que ampliado esse conceito para toda a comunidade.
Vejamos o exemplo trazido por Hale a respeito do jornal dinamarquês Jyllands-Posten, que em 2005 encomendou as charges do Profeta Muhammad. Enquanto alguma hostilidade era esperada, o grau de polarização não era previsto. Quando os cartoons foram “exportados” para uma audiência global, políticos muçulmanos e líderes religiosos encorajaram reações violentas e exerceram influência política. Houve pressão numa escala sem precedentes para qualquer texto humorístico. Mas é preciso notar: “muitas pessoas ficaram ofendidas, sem sequer terem visto os próprios cartoons desenhados”. A violência subsequente, onde pelo menos 200 pessoas foram mortas internacionalmente, também foi, na opinião de pesquisadores, desproporcional ao significado do próprio texto humorístico. Mas havia algo a ser escondido: um incidente internacional poderia ter sido ampliado por certos governos muçulmanos que aproveitaram o furor para desviar a atenção de suas próprias repressões de direitos humanos?10
Por isso, é preciso ver que tem piada ruim e tem lugar inapropriado. Mas também tem quem apenas se aproprie da indignação por objetivos menos nobres.
Ocorre que o humor pode simplesmente ser uma “piada ruim” ou “colocada em local inapropriado”. O problema não é “piada ruim”. Kevin Hart, ator e comediante americano, confidenciou no Joe Rogan Experience11 que no início da carreira escreveu uma piada sobre anões: mais precisamente sobre ter sido assaltado por anões caolhos. A piada era ruim. Novamente entra Patrice O’Neal. Segundo Hart, repentinamente viu um catálogo telefônico – para quem não era nascido na década de 1980 ou 1990, faça a pesquisa no Google: catálogo telefônico era um livrão grosso com os números de telefone de uma cidade ou região – ser arremessado em sua direção. Patrice O’Neal que havia atirado o calhamaço de papel, gritou: “Leia essa porcaria o catálogo, pois aí tem material melhor do que essa titica que você está falando!”
O riso também demanda o “distanciamento do tempo”. Tragédia + proximidade = dor. Tragédia + 40 anos pode virar riso. Mel Brooks, genial diretor de teatro judeu, dirigiu um filme sobre dois pilantras que desejavam produzir uma peça de teatro chamada “Primavera para Hitler”. Mas, ele só conseguiu fazê-lo em 1968. Ainda que o texto deixasse claro que a “primavera” era uma picaretagem para ganhar dinheiro, e não uma real homenagem. “tragédia + passar do tempo” pode ser uma fórmula de alívio através do humor. Ou, até mesmo, o humor “na tragédia” como contam sobreviventes de campos de concentração. O humor “mórbido" das próprias vítimas sobre suas realidades, dando-lhes algum alento.12
2.4. Rafinha Bastos, Porta dos Fundos e o “duplo moral”
No Brasil, vemos comediantes condenados por piadas ruins, ou pior, por piadas até boas, mas incômodas. A lista é enorme. E pior: vemos outros comediantes, ao invés de agirem como O’Neal, aplaudindo as condenações e os cancelamentos. Tome-se o caso mais estridente. O comediante Rafinha Bastos foi condenado a pagar R$150.000,00, em valores de 2019, por uma piada – por sinal, horrível – que envolvia a pessoa da cantora Wanessa Camargo. Só num mundo paralelo à piada ridícula seria a demonstração de “ter o apresentador o desejo/intenção de manter relações sexuais com a autora, apesar de ela ser casada e estar grávida”, como constou num processo judicial. A completa incompreensão da linguagem inserida na anedota (repita-se: ridícula). Ou, algo diverso: a vontade de calar a piada ou o piadista. Não por meio da censura “prévia”, mas, por meio do efeito financeiro ou do medo de processos judiciais.
Outro caso – agora com solução favorável aos humoristas – foi o especial de Natal “A primeira tentação de Cristo” do grupo Porta dos Fundos, veiculado pelo sistema de streaming, Netflix. Eis o contexto narrado no acórdão: aquele grupo de humor foi apresentado no julgamento como um herói que “vem trilhando uma seara típica e bem característica desde a sua aparição no cenário artístico-humorístico nacional, algumas vezes, envolta em celeumas como a presente”. Mais adiante é elogiado por seu “humor ácido, a crítica atroz, as expressões por vezes vulgares (ainda que dentro do contexto da obra apresentada), o enfrentamento de questões delicadas atuais, sejam políticas, religiosas, sexuais, etc., sempre marcaram a atuação do grupo em seu mister profissional.” Prossegue o voto do julgador informando que o Constituinte Originário “estabeleceu a completa liberdade de expressão intelectual do ser humano, preservando o indivíduo de qualquer intromissão prévia dos órgãos estatais, mormente aqueles de natureza repressora, policialesca.” E acabou por dar razão aos artistas.
Vejamos insegurança jurídica! Uma piada ruim, condenação. Outra piada ruim, fazendo troça de valores caros a milhões, nada. Não se deseja a condenação do Porta dos Fundos. O que não podemos é tolerar e justificar a condenação do primeiro humorista. E olha, que houve outros humoristas até justificando a primeira condenação.
3. Conclusão
Início a parte conclusiva esclarecendo que este texto é parte ínfima de um conteúdo maior. Por ser condensado, é possível haver omissões. Mas, no geral, acredito que tenha sido possível externar que, para o emissor da expressão humorística não ficar ao alvedrio de discrição judicial, é necessário maior apreço – geral – à liberdade. Não via escolhas seletivas, dependendo do alinhamento político de cada humorista.
O maior apreço à liberdade de expressão, especialmente na seara do humor, é fundamental, pois é o humor um dos setores mais críticos das artes, apesar de não parecer. Por isso, a defesa da liberdade no riso deve ser por sua maximização.
Que o humor seja levado a sério! Sim! O riso importa. E, apesar de este texto jamais ter citado Léo Lins, sim, o mote da publicação foi, não a condenação, mas, a simples existência de um processo judicial decorrente de “piadas”.
É, então, uma “piada” jurídica que qualquer cidadão seja submetido a um processo frívolo. Exige-se muito atraso ou muito desprezo pela liberdade, acreditar que não seja censura, pelo simples fato de um humorista “poder recorrer” de uma condenação. Novamente: o brasileiro acredita na lorota de que só existe “censura prévia”.
Ao final e ao cabo, isso é reflexo de um país que despreza as liberdades. Para ser irritante: assim como a “direita” odiou a liberdade de quem queria assistir à exposição de arte “Quer Museum”.
Lembrem: Pau que bate em Chico, bate também em Francisco.
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1 Bergson, Henri. O Riso. Edipro. Edição do Kindle.
2 Eagleton, Terry. Humor: O papel fundamental do riso na cultura . Editora Record. Edição do Kindle.
3 Eagleton, Terry. Humor: O papel fundamental do riso na cultura . Editora Record. Edição do Kindle.
4 Versão em inglês: https://englishspeecheschannel.com/english-speeches/rowan-atkinson-speech/
5 Rowan Atkinson mais conhecido no Brasil por seu carismático personagem Mr. Bean, é um estudioso das várias formas de humor. Em 1993 dirigiu e estrelou o documentário Laughing Matters (O riso importa), em três episódios. O documentário, também conhecido pelo título Funny Business traz uma apresentação das mais diversas formas de humor..
6 REDMOND-BATE v. DIRECTOR OF PUBLIC PROSECUTIONS 1999 EWHC Admin 733 (23rd July, 1999). Acessível em: http://www.bailii.org/ew/cases/EWHC/Admin/1999/733.html
7 Acessível em: https://www.youtube.com/watch?v=buexsb6HWU4
8 Hale, A. (2018). “I get it, but it’s just not funny”: Why humour fails, after all is said and done. The European Journal of Humour Research, 6(1), 36–61. https://doi.org/10.7592/EJHR2018.6.1.hale
9 Hale, A. (2018). p. 38.
10 Hale, A. (2018). p. 40.
11 Joe Rogan Experience. N. 1278. Acessível em: https://www.youtube.com/watch?v=XW_KhFq4LQo
12 Vide: LIPMAN, Steve. Laughter in Hell: the use of humor in the Holocaust. New Jersey: Jason Aronson. 1991; E também: CASEMIRO, Fúlvio César; MARTINEZ, Viviana Carola Velasco. Humor mórbido: defesa e tradução do horror na Shoah. Arq. bras. psicol., Rio de Janeiro , v. 70, n. 1, p. 276-290, 2018