O cenário fiscal brasileiro projeta, para os próximos cinco anos, um desafio de grandes proporções, com potencial para desencadear uma nova crise de confiança nas instituições públicas. Um dos principais focos de tensão é o retorno da obrigatoriedade do pagamento integral dos precatórios, que voltam a ser contabilizados dentro do limite de gastos públicos a partir de 20271. Essa reintrodução ocorre em um ambiente de restrição fiscal crescente, o que tende a profundar os já conhecidos gargalos do orçamento federal.
A PEC 66/23 surge, nesse contexto, como uma tentativa de racionalização dos passivos judiciais no âmbito municipal. O texto estabelece que os pagamentos anuais de precatórios pelos municípios sejam limitados a percentuais da Receita Corrente Líquida (RCL), variando de 1% a 5%, de acordo com o estoque de dívidas em relação à própria RCL2. Além disso, autoriza o parcelamento de débitos previdenciários em até 300 meses, condicionado à adesão ao Programa de Regularidade Previdenciária e à implementação de medidas previstas na EC 103/2019, como previdência complementar e idade mínima.3
A compressão orçamentária prevista é de magnitude sem precedentes. Estimativas oficiais apontam que o impacto dos precatórios poderá consumir parcela significativa da verba discricionária, reduzindo drasticamente a capacidade do governo de investir em áreas essenciais como saúde, educação, infraestrutura e programas sociais. Para 2027, projeta-se que o governo federal terá que desembolsar R$ 124,3 bilhões apenas com precatórios, valor que sobe para R$ 132 bilhões em 2028 e R$ 144 bilhões em 20294. Essa limitação compromete diretamente a execução de políticas públicas fundamentais para a estabilidade econômica e social do país.
Além do montante já conhecido, o estoque de dívidas judiciais potenciais - formado por ações ainda em tramitação - adiciona um fator extra de insegurança. Segundo dados da LDO - lei de Diretrizes Orçamentárias de 2026, os riscos fiscais associados a essas demandas podem alcançar R$ 2,6 trilhões5. A ausência de soluções estruturais para lidar com essa pressão crescente sobre as contas públicas reforça a percepção de que o Brasil poderá enfrentar uma nova 'bomba fiscal', que, se não desarmada a tempo, resultará não apenas em instabilidade econômica, mas também em abalos profundos na segurança jurídica.
Este artigo propõe uma análise dos principais fatores que configuram esse cenário de risco, com foco especial no debate em torno da PEC 66/23, resgatando ainda o precedente histórico da PEC dos Precatórios, cuja lógica de postergação e flexibilização de compromissos pode voltar à pauta diante da deterioração fiscal iminente.
A PEC 66/23 e os limites da responsabilidade fiscal
A PEC 66/23 se insere em um contexto de esgotamento da capacidade de financiamento das obrigações judiciais por parte dos municípios, cujas finanças muitas vezes já estão comprometidas com folha de pagamento, saúde e educação. Ao propor um teto proporcional da RCL - Receita Corrente Líquida para o pagamento de precatórios, a PEC busca calibrar o cumprimento das decisões judiciais à realidade fiscal de cada ente federativo.
Se, de um lado, a proposta parece adotar uma abordagem pragmática, oferecendo fôlego a municípios em colapso financeiro, de outro, ela levanta sérias dúvidas quanto aos riscos de institucionalizar a inadimplência estatal. Em muitos casos, o pagamento dos precatórios poderá se alongar por prazos superiores a uma década, dependendo da capacidade orçamentária do município. Esse efeito, embora amortizado pelas regras de sequestro e punição previstas para o inadimplemento, tende a se tornar regra e não exceção - o que compromete a previsibilidade e a confiança no cumprimento das obrigações públicas.
Além disso, ao atrelar o parcelamento de débitos previdenciários à adoção de medidas estruturais como previdência complementar, idade mínima e criação de regimes próprios sustentáveis, a PEC exige contrapartidas que, embora bem intencionadas, podem ser de difícil implementação em municípios pequenos ou com baixa capacidade técnica. A medida reforça um viés de centralização normativa que, embora alinhado ao equilíbrio atuarial, pode esbarrar na realidade federativa brasileira, marcada por heterogeneidades profundas.
Outro ponto que desperta preocupação é a ausência de mecanismos para garantir a efetiva amortização dos estoques já existentes. A PEC limita os pagamentos anuais, mas não apresenta soluções concretas para lidar com os passivos acumulados - em especial, aqueles anteriores à adesão ao novo regime. Dessa forma, há o risco de se criar um sistema que apenas empurra a dívida para o futuro, sem resolver a origem do problema.
Por fim, é importante observar que a PEC também altera dispositivos do art. 100 da Constituição Federal para introduzir penalidades em caso de descumprimento dos tetos estabelecidos. As sanções incluem o sequestro de valores, a suspensão de transferências voluntárias da União e a proibição de contratação de operações de crédito6. Embora essas medidas representem um avanço do ponto de vista da coerção, sua efetividade dependerá da capacidade dos Tribunais de Justiça e dos órgãos de controle de fiscalizar o cumprimento das metas.
Assim, a PEC 66 se apresenta como um esforço de racionalização fiscal, mas corre o risco de se tornar um novo capítulo na prática histórica de postergar o pagamento das dívidas públicas - em detrimento da segurança jurídica e do respeito às decisões judiciais.
Precatórios e o direito fundamental à efetividade das sentenças
A discussão em torno da PEC 66/23 não pode prescindir de uma análise sob a ótica dos direitos fundamentais. O dever do Estado de honrar os precatórios vai além da dimensão orçamentária: trata-se de garantir a efetividade das decisões judiciais transitadas em julgado - um desdobramento direto do direito à tutela jurisdicional efetiva, assegurado no art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal.
Como observa Ingo Wolfgang Sarlet, o cumprimento das decisões judiciais integra o próprio conteúdo essencial do direito fundamental à proteção judicial, sendo inaceitável sua frustração por razões exclusivamente fiscais7. Na mesma linha, Lenio Streck critica a prática de subordinar a força normativa da Constituição a critérios de conveniência orçamentária, alertando para os riscos do decisionismo fiscal que relativiza direitos fundamentais.8
Ao estabelecer limites percentuais fixos para o pagamento de precatórios, a PEC 66 introduz o risco de que dívidas reconhecidas judicialmente fiquem represadas por longos períodos, em aberto descompasso com o dever constitucional de efetivar os direitos declarados pelo Judiciário. Ainda que o substitutivo aprovado preveja sanções para os entes inadimplentes, como o sequestro de valores e a suspensão de transferências voluntárias, tais mecanismos podem se mostrar ineficazes diante da fragilidade fiscal crônica de grande parte dos municípios.
Considerações finais
A PEC 66/23 traz para o centro do debate um dilema estrutural do Estado brasileiro: como conciliar austeridade fiscal com a obrigatoriedade de cumprir as obrigações judiciais. Ainda que parta da realidade dramática dos municípios, seu conteúdo dialoga com uma estratégia recorrente de postergação de passivos em nome da governabilidade. Se, por um lado, a proposta permite que os entes subnacionais encontrem um caminho mais viável para enfrentar suas dívidas, por outro, institucionaliza uma cultura de inadimplemento do Estado com seus próprios compromissos, corroendo a confiança nas instituições e desvalorizando a força vinculante das decisões judiciais.
Mais do que uma medida técnica, a PEC 66 é uma escolha política e simbólica. Cabe ao legislador avaliar se o modelo que se quer consolidar é aquele que privilegia o planejamento fiscal em detrimento da justiça, ou se haverá coragem para construir alternativas que conciliem equilíbrio orçamentário com respeito integral ao Estado de Direito.
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1 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 107-A, incluído pela Emenda Constitucional n.º 114, de 2021.
2 BRASIL. Câmara dos Deputados. PEC 66/2023. Substitutivo aprovado. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2909682
3 Idem.
4 Dados da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2025 e projeções do Tesouro Nacional.
5 BRASIL. Projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias 2026. Apresentado em abril de 2025.
6 BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n.º 66/2023. Redação dada aos §§ 24 a 28 do art. 100 da Constituição Federal. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2454495
7 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2021. p. 325-326. O autor sustenta que o direito à tutela jurisdicional efetiva inclui o cumprimento integral e tempestivo das decisões judiciais, sendo inconstitucional a imposição de óbices meramente fiscais para sua realização.
8 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma crítica à metaindividualidade da Constituição. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2020. p. 218. O autor afirma que a “justiça orçamentária” - ou seja, a aplicação da Constituição condicionada à disponibilidade fiscal - representa uma violação do princípio da força normativa da Constituição e da separação dos Poderes.