Migalhas de Peso

Dolo eventual como ficção dogmática: Uma crítica técnico-constitucional

Neste artigo faço uma análise histórica e crítica da ficção do dolo eventual e da necessidade de superação metodológica no Estado Democrático de Direito.

18/6/2025

O Direito Penal, desde suas origens primitivas, sustentou-se sobre noções que hoje seriam incompatíveis com os postulados de um Estado Democrático de Direito. Nos primeiros tempos, todos os delitos eram tratados da mesma forma, sem qualquer distinção entre dolo e imprudência, numa lógica de pura responsabilidade objetiva. A evolução romana trouxe avanços, distinguindo o dolus malus do dolus bonus, fundamento de uma noção pura de culpabilidade: só havia crime se houvesse vontade (dolo) ou imprudência real. A partir daí, a culpabilidade passou a se constituir como critério normativo da imputação penal.

Contudo, essa evolução não resistiu à ingerência do Direito Canônico. Sob forte influência sacro-religiosa, foi inserido no sistema penal o princípio do versari in re illicita, segundo o qual todo aquele que se envolvia em algo ilícito assumia a responsabilidade por qualquer resultado subsequente. Essa fórmula legitimava a punição inclusive nos casos de acidente ou fortuito, e acabou deformando os avanços do Direito Penal romano ao fundir vontade e mera causalidade. Nesse novo ambiente, bastava estar vinculado a uma ação ilícita para que o sujeito fosse responsabilizado por qualquer consequência — o que evidencia a origem autoritária daquilo que, mais tarde, seria identificado como dolo eventual.

Com a intensificação dos riscos sociais produzidos pela Revolução Industrial e, posteriormente, pela tecnologia automotiva, surgiram novas demandas de controle penal. A solução adotada por muitos penalistas foi a criação de uma figura intermediária entre dolo e culpa: o dolo eventual. Esse conceito buscava classificar determinadas condutas como mais graves que a imprudência consciente, mas sem alcançar o dolo direto. O problema é que a categoria criada nunca encontrou fundamento técnico-constitucional sólido, sendo sempre sustentada por teorias frágeis, inconclusas e, frequentemente, contraditórias entre si.

A tentativa de organizar o sistema penal em cinco categorias — dolo direto de primeiro grau, dolo direto de segundo grau, dolo eventual, imprudência consciente e imprudência inconsciente — apenas ampliou a confusão. O modelo multiplicou as classificações, mas não forneceu critérios objetivos para distinguir entre elas. Com isso, o campo da imputação penal passou a depender cada vez mais de juízos subjetivos, produzindo insegurança jurídica e desigualdade na aplicação da lei.

No Brasil, essa problemática se intensificou com a introdução do art. 18, inciso I, do CP de 1940. Ao estabelecer que o crime doloso pode ser aquele em que o agente “assume o risco de produzir o resultado”, o legislador incorporou definitivamente a ambiguidade do dolo eventual ao texto legal. Como demonstro em Sobre a Estrutura do Dolo e da Imprudência (Juruá, 2025), trata-se de um dispositivo que fragiliza a legalidade penal e institucionaliza uma forma de presunção de culpabilidade.

Na prática, a imputação por dolo eventual tem servido para ampliar o poder punitivo do Estado sem respeitar os limites constitucionais. Condutas nitidamente imprudentes são tratadas como dolosas apenas pela comoção social que provocam. O resultado é a aplicação de penas desproporcionais e a inversão do ônus da prova: exige-se que o acusado demonstre que não quis o resultado, quando deveria ser o Estado a comprovar a vontade dolosa.

O Estado Democrático de Direito não pode conviver com esse tipo de lógica. Como tenho sustentado em meus artigos aqui no Migalhas, a imputação penal deve ser feita com base na demonstração de que o agente quis obter o resultado — o que exige um juízo linguístico, normativo e verificável da conduta. Quando não há essa vontade, mas apenas previsão e risco, estamos diante de imprudência consciente, e não de dolo. Classificar como dolo aquilo que é imprudência — por mais grave que seja — representa uma ruptura com os princípios da legalidade, da culpabilidade e da presunção de inocência.

A Teoria Significativa da Imputação, que desenvolvo nas obras já citadas e em Fundamentos de la Teoría Significativa de la Imputación – 2ª Edición (Bosch, 2025), oferece uma alternativa técnico-constitucional a esse cenário. Em vez de presunções e ficções dogmáticas, propõe uma análise objetiva da conduta com base nos caracteres e quesitos significativos da ação. Defende a extinção do dolo eventual e a reorganização da imprudência consciente em três níveis — gravíssima, grave e leve — com fundamento no risco assumido, na previsibilidade do resultado e no desvalor da conduta.

Essa proposta tem o mérito de restabelecer a coerência do sistema penal com os princípios constitucionais. A ação penalmente relevante deve ser examinada com base no que o agente efetivamente afirmou com sua conduta, e não em interpretações subjetivas sobre seu “estado de espírito”. Só assim será possível reconstruir a imputação penal como instrumento de justiça, e não como mecanismo de poder.

Portanto, revisar a dogmática do dolo eventual não é apenas uma necessidade teórica: é uma exigência política, jurídica e constitucional. Sem essa revisão, o Direito Penal seguirá operando como instrumento de exceção, não como garantia — e continuará a punir de forma desigual, arbitrária e tecnicamente insustentável.

_________

Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación – 2ª Edición (Bosch, 2025).

Antonio Sanches Sólon Rudá
Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Autonomia patrimonial e seus limites: A desconsideração da personalidade jurídica nas holdings familiares

2/12/2025

Pirataria de sementes e o desafio da proteção tecnológica

2/12/2025

Você acha que é gordura? Pode ser lipedema - e não é estético

2/12/2025

Tem alguém assistindo? O que o relatório anual da Netflix mostra sobre comportamento da audiência para a comunicação jurídica

2/12/2025

Frankenstein - o que a ficção revela sobre a Bioética

2/12/2025