No último dia 19 de maio, o MEC - Ministério da Educação oficializou o que vinha sinalizando há meses: a proibição da oferta de cursos de graduação 100% a distância para cinco áreas específicas — Direito, medicina, odontologia, enfermagem e psicologia.
A medida, adotada sob a justificativa de garantir a qualidade do ensino superior nessas profissões essenciais, traz consigo uma série de contradições que merecem análise profunda, especialmente no que diz respeito ao ensino jurídico.
Trata-se de uma decisão que, sob o pretexto de proteger a qualidade, ignora a transformação digital em curso no país e relega o ensino jurídico a uma estrutura analógica, destoante da realidade vivida hoje na advocacia e no próprio Judiciário brasileiro.
O paradoxo está no fato de que, enquanto a Justiça brasileira é considerada uma das mais digitalizadas do mundo, seu principal canal de formação de operadores do Direito é agora forçado a permanecer preso ao presencial, como se estivéssemos atados a paradigmas do século passado já superados.
A decisão do governo revela-se um retrocesso disfarçado de zelo, uma política de exclusão digital que limita o futuro da advocacia e a pluralidade do acesso ao Direito.
O crescimento do EAD: Dados que o MEC preferiu ignorar
Antes de qualquer juízo valorativo, é essencial observar os dados que envolvem o cenário da educação a distância no Brasil. De acordo com a 15ª edição do Mapa do Ensino Superior, elaborado pelo Instituto Semesp, as matrículas em cursos EAD cresceram 326% entre 2013 e 2023.
E mais revelador: o número de estudantes com mais de 60 anos matriculados nessa modalidade aumentou 672% no mesmo período. Isso demonstra claramente que o EAD se consolidou como alternativa legítima e necessária de acesso à formação superior, especialmente para grupos historicamente marginalizados, como trabalhadores, mães solo, idosos e moradores de regiões periféricas.
Ao ignorar esses números, o MEC não apenas subestima a relevância social da modalidade a distância, como também promove uma política elitista, que privilegia quem pode custear e frequentar universidades presenciais, geralmente localizadas em grandes centros urbanos. A medida, portanto, afasta a universidade do povo e, ao contrário do que sugere seu discurso oficial, não promove qualidade, mas sim exclusão.
Enquanto a Justiça avança, o ensino jurídico recua
O Direito é, hoje, uma das profissões mais digitalizadas do país. O PJe - Processo Judicial Eletrônico já é realidade em todos os tribunais brasileiros, audiências e sustentações orais são realizadas por videoconferência, e os órgãos superiores, como STF, STJ e tribunais estaduais, utilizam inteligência artificial na triagem e análise de processos.
Dessa forma, a atuação do advogado contemporâneo se dá cada vez mais em ambiente digital: peticionamento eletrônico, atendimento remoto a clientes, uso de softwares jurídicos e plataformas de gestão de processos são ferramentas do cotidiano da profissão.
Como, então, formar profissionais para esse novo mundo se o ambiente formativo está interditado à tecnologia?
O paradoxo é evidente: o Judiciário é digital, mas o ensino jurídico será obrigado a permanecer presencial. A consequência inevitável será um descompasso entre formação e prática, com profissionais ingressando no mercado sem o preparo adequado para as ferramentas que já são exigência básica na advocacia contemporânea.
O falso dilema da qualidade: Por que proibir é mais fácil que fiscalizar
É inegável que o ensino superior brasileiro enfrenta desafios estruturais de qualidade, especialmente no setor privado e, em particular, nos cursos EAD oferecidos por instituições sem compromisso pedagógico. Mas usar esse argumento para proibir a modalidade é, além de autoritário, preguiçoso intelectualmente.
A solução para o problema da má qualidade não está na proibição, mas na regulação eficaz. O Estado tem o dever de fiscalizar, aplicar critérios rigorosos de avaliação e fechar instituições que não entregam educação adequada.
Nesse sentido, a verdadeira política pública de qualidade no ensino jurídico deveria incluir:
- Avaliações periódicas e técnicas de cursos, presenciais e a distância;
- Exigência de corpo docente qualificado e atualização constante dos planos pedagógicos;
- Uso de indicadores de empregabilidade e desempenho de egressos;
- Incentivo à inovação didática e ao uso de tecnologias educacionais.
Nada disso depende da exclusividade do ensino presencial. Pelo contrário, uma estrutura digitalizada permite o uso de analytics educacional, monitoramento de desempenho em tempo real e personalização da aprendizagem, práticas que, ironicamente, são muito mais difíceis de implementar em ambientes analógicos.
Democratização do ensino: Uma missão interrompida
Um dos efeitos mais perversos da decisão do MEC é o bloqueio ao acesso democrático à formação jurídica. O curso de Direito continua sendo um dos mais buscados no país, mas também um dos mais concentrados nas capitais e grandes cidades. Com a proibição do EAD, milhares de brasileiros que vivem no interior, em comunidades rurais ou em cidades sem faculdades presenciais, perdem a oportunidade de cursar Direito.
Além disso, muitos estudantes precisam conciliar trabalho com estudos, e a flexibilidade do EAD é, para essas pessoas, a única alternativa viável. Ao impedir esse acesso, o MEC transforma o curso de Direito numa oportunidade exclusiva para quem pode abrir mão do trabalho e arcar com os custos da vida universitária em grandes centros.
Além da questão geográfica e econômica, há também um impacto direto sobre a diversidade no ensino jurídico. Afinal, a modalidade EAD pode ser, inclusive, uma aliada na promoção da diversidade no ensino jurídico, permitindo que indígenas, quilombolas, pessoas com deficiência e outros grupos sub-representados tenham acesso a uma formação compatível com suas realidades de vida.
Proibir o EAD é como fechar os olhos para o futuro e insistir em formar advogados para um mundo que já não existe mais.
Por uma política educacional inovadora, não punitiva
A decisão do MEC revela-se um exemplo clássico de política pública mal calibrada: parte de um diagnóstico legítimo, a necessidade de qualidade, mas oferece uma solução ineficaz e excludente. O ensino jurídico precisa, sim, de mais qualidade, mais exigência, mais compromisso pedagógico. Mas precisa também de mais acesso, mais inclusão, mais inovação.
Proibir é simples. Fiscalizar dá trabalho. Inovar exige visão.
O futuro da advocacia brasileira passa por uma formação compatível com os desafios e as ferramentas do século XXI. E isso inclui, necessariamente, o uso inteligente da tecnologia e a oferta responsável de ensino a distância.