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Famílias invisibilizadas: A exclusão no acesso a direitos fundamentais

Em pleno mês da diversidade, relato expõe caso de discriminação no registro de dupla maternidade, denunciando a ilegalidade e defendendo o reconhecimento pleno das famílias LGBTQIAPN+.

27/6/2025

Em pleno mês da diversidade, mês marcado pela luta por visibilidade, dignidade e reconhecimento da população LGBTQIAPN+, me deparei com um episódio revoltante e, infelizmente, real: uma mulher, casada, prestes a dar à luz, foi surpreendida no Cartório de Registro Civil com uma orientação inacreditável. Foi informada de que só poderia registrar sua filha como “mãe solteira”. Para que o nome da outra mãe fosse incluído na certidão de nascimento da criança, teria que ajuizar uma ação judicial de reconhecimento da dupla maternidade. Pasmem.

Essa exigência, além de absurda, é flagrantemente inconstitucional, ilegal e discriminatória. O STF, desde 2011, reconhece a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, com os mesmos efeitos da união heteroafetiva. Isso foi decidido nas ações ADPF 132 e ADI 4277, sendo posteriormente reafirmado no julgamento do recurso extraordinário 646.721/SE (Tema 526), com repercussão geral, no qual se reconheceu também o direito à adoção por casais homoafetivos.

Não há qualquer margem legal para que se imponha a uma mulher casada a pecha de “mãe solteira” apenas por estar unida a outra mulher. Tal conduta viola frontalmente os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/1988), da igualdade (art. 5º, caput), da proteção integral à criança (art. 227), e do reconhecimento da entidade familiar (art. 226).

O Registro Civil de nascimento é regido pela lei 6.015/1973 (lei de registros públicos), que o define como ato obrigatório e impessoal. O Cartório não tem discricionariedade para impor interpretações próprias ou exigir judicialização de situações já pacificadas pelo ordenamento jurídico. O provimento 63/17 do CNJ é explícito ao regulamentar a possibilidade de registro direto da dupla maternidade ou dupla paternidade, inclusive no ato do nascimento, bastando a apresentação dos documentos legais pertinentes.

Impor uma ação judicial para reconhecer algo que já é previsto administrativamente é submeter a cidadania à aprovação arbitrária de um sistema que deveria apenas garantir direitos. É transformar o preconceito em obstáculo burocrático, e isso não pode ser tolerado. A prática, além de ilegal, configura discriminação institucional por orientação sexual, passível de responsabilização administrativa, civil e até penal, à luz da lei 7.716/1989 (lei do racismo), cuja interpretação foi estendida pelo STF para abarcar a LGBTfobia (ADO 26 e MI 4733).

Não é um caso isolado. É reflexo de uma estrutura que ainda insiste em negar a legitimidade das famílias diversas. Quantas mães e pais estão hoje sendo impedidos de registrar seus filhos sem constrangimentos? Quantas crianças ainda têm negado o direito à certidão completa por simples preconceito disfarçado de procedimento?

A advocacia, os órgãos de controle e a sociedade civil precisam reagir. Este tipo de conduta deve ser denunciada às Corregedorias de Justiça, ao CNJ e às Comissões da OAB. O silêncio institucional diante dessas violências cotidianas contribui para perpetuar injustiças.

Famílias diversas nascem todos os dias, com amor, com respeito, com afeto, com verdade. Negar a uma criança o direito de ser registrada por inteiro, por preconceito contra quem a gerou e a acolhe, é mais do que ferir a lei: é apagar vidas, é silenciar existências. E nós seguiremos lutando para que nenhuma história de amor precise se esconder.

Ana Lydia de Almeida Seabra
Advogada, integrante do Comitê de Diversidade, Inclusão e Compromisso Social do Martorelli Advogados.

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