A lei do superendividamento 14.181/21 completa quatro anos em 2 de julho de 2025 e promoveu relevantes alterações no CDC e no Estatuto do Idoso com o objetivo de restabelecer o equilíbrio contratual nas relações de consumo, especialmente nas operações de crédito.
A lei introduziu mecanismos para promover a educação financeira, garantir maior transparência na oferta e concessão de crédito e viabilizar a renegociação de dívidas, com vistas à recuperação do poder de compra do consumidor superendividado e à prevenção de um ciclo contínuo de endividamento.
Trata-se, ainda, de um marco legislativo recente, cuja interpretação pela jurisprudência não está completamente consolida. No STJ, por exemplo, os primeiros precedentes relevantes foram proferidos há menos de um ano (REsp 1.168.199/RS em dezembro de 2024, REsp 2.191.259/RS em abril de 2025 e REsp 2.188.689/RS em junho de 2025), o que revela um estágio embrionário na uniformização dos entendimentos sobre a matéria.
Essa ausência de consolidação jurisprudencial tem favorecido uma intensificação da atuação dos órgãos administrativos de proteção e defesa do consumidor. Diversas instituições, notadamente os Procons e Ministérios Públicos Estaduais, têm instaurado dezenas de procedimentos administrativos sancionadores e preparatórios a ações civis públicas contra empresas do setor financeiro, muitas vezes com base em alegações genéricas ou sem a devida robustez probatória, a fim de aferir se haveria ou não a oferta de crédito responsável.
Essa atuação mais incisiva das autoridades não implica, necessariamente, na prática de condutas ilícitas pelas empresas. É fundamental assegurar o contraditório e ampla defesa, tanto nos processos administrativos quanto em eventuais ações civis públicas, oportunidade em que as instituições financeiras poderão demonstrar o cumprimento das normas consumeristas na oferta de crédito e o atendimento aos requisitos legais, ressalvadas as peculiaridades da atuação de cada empresa, respaldada pela livre iniciativa e liberdade econômica. Ainda assim, os custos reputacionais, regulatórios e judiciais associados à instauração desses procedimentos demandam atenção estratégica por parte das empresas e merecem atenção.
Diante desse cenário - de um lado, o fortalecimento da fiscalização por parte dos órgãos de proteção e defesa do consumidor e, de outro, a indefinição jurisprudencial quanto aos contornos da nova legislação -, torna-se ainda mais relevante a adoção de boas práticas de mercado que não apenas assegurem a conformidade legal, mas também mitiguem riscos de litígio e autuação. A seguir, destacam-se algumas dessas práticas:
Oferta responsável de crédito
A lei do superendividamento impôs às instituições financeiras o dever de avaliar, previamente à contratação, a real capacidade de pagamento do consumidor (art. 54-C, §1º, do CDC). Essa avaliação deve considerar a renda, as dívidas pré-existentes e outras condições financeiras relevantes.
A exigência busca evitar a concessão indiscriminada de crédito, um dos fatores estruturais do superendividamento no Brasil. Alinhada às práticas de compliance, essa obrigação legal estimula a adoção de políticas internas de crédito mais criteriosas, pautadas na boa-fé objetiva e na preservação do mínimo existencial.
Transparência contratual
O art. 54-B do CDC, introduzido pela nova lei, reforça a obrigação de fornecer informações claras, adequadas e ostensivas sobre as condições dos contratos de crédito. Devem ser destacados o custo efetivo total da operação, os encargos aplicáveis em caso de inadimplemento, a taxa de juros mensal e anual, o número de parcelas e a validade da oferta.
É recomendável que as instituições revisem seus contratos e materiais publicitários, garantindo aderência às exigências legais e reforçando a confiança do consumidor na relação contratual.
Proteção aos hipervulneráveis
O art. 54-D do CDC veda expressamente o assédio ou pressão comercial dirigida a consumidores em condição de hipervulnerabilidade, como idosos, não alfabetizados, enfermos ou pessoas em situação de vulnerabilidade agravada.
Nesse contexto, ações promocionais, canais de atendimento e estratégias de venda devem ser reformulados com atenção especial à ética, à linguagem acessível e à adequação do produto ao perfil do consumidor.
Tem-se observado um crescimento significativo no número de fiscalizações e autuações relacionadas à alegação de descumprimento da lei do superendividamento. Ainda que muitos desses procedimentos não estejam acompanhados de elementos probatórios contundentes, a adoção sistemática de boas práticas - como a concessão responsável de crédito, a transparência contratual e o respeito aos direitos dos hipervulneráveis - representa a estratégia mais eficaz para reduzir riscos jurídicos e preservar a integridade da atividade empresarial.
Não apenas conferir o fluxo da oferta de crédito adotado, a fim de confirmar que todas as exigências para uma contratação responsável e ciência inequívoca do consumidor quanto aos ônus incidentes e capacidade de pagamento estão presentes, como treinamentos constantes ao time interno refletem bons resultados e alinhamento coerente da marca da empresa perante o mercado de consumo, fidelizando os clientes no longo prazo.
Neste cenário de transição e ainda incipiente consolidação interpretativa da lei do superendividamento, abre-se às empresas do setor financeiro uma oportunidade estratégica de liderar pelo exemplo. Trata-se de um terreno fértil para o fortalecimento de práticas responsáveis, capazes de fomentar relações de consumo mais equilibradas, conscientes e sustentáveis, com benefícios tanto para o consumidor quanto para a reputação e a segurança jurídica das próprias empresas.