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A era da transação tributária: Navegando entre oportunidades e riscos ocultos

A transação tributária oferece descontos, mas esconde riscos. A adesão sem análise prévia pode "ressuscitar" dívidas prescritas. Entenda as modalidades e como evitar essa armadilha fatal.

30/6/2025

Introdução

A publicação recorrente de novos e abrangentes editais de transação tributária pela PGFN - Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional envia uma mensagem clara ao mercado: o consenso deixou de ser uma via excepcional para se tornar um pilar da política fiscal brasileira. Longe de ser apenas uma ferramenta de recuperação de créditos, a transação evoluiu para um sofisticado instrumento de gestão de passivos, mas que também exige uma análise criteriosa de seus riscos, como a interrupção de prazos prescricionais.

Hoje, a decisão de uma empresa não se resume mais a "pagar ou litigar". A questão tornou-se mais complexa e estratégica, envolvendo a análise de duas modalidades distintas e poderosas: a já consolidada transação de débitos inscritos em dívida ativa e a mais recente, e talvez mais revolucionária, transação no contencioso administrativo. Este artigo disseca ambas as frentes e alerta para a etapa preliminar indispensável a qualquer negociação: a auditoria da legalidade do passivo.

A transação na dívida ativa (PGFN): A ferramenta consolidada

Esta é a modalidade mais conhecida pelo contribuinte. Destina-se à regularização de débitos já constituídos e inscritos na dívida ativa da união. Os editais lançados pela PGFN, como os que vimos com frequência ao longo de 2024 e 2025, estabelecem as "regras do jogo" para quem busca sair da inadimplência.

Os benefícios são notórios e atraentes: descontos de até 70% sobre juros, multas e encargos, prazos de pagamento estendidos que podem chegar a 145 meses e, crucialmente, a possibilidade de utilizar prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL para amortizar parte substancial da dívida. Para empresas com passivos antigos e de difícil resolução, esta via representa uma oportunidade real de reorganização financeira e de obtenção da tão necessária CND - Certidão Negativa de Débitos.

O ponto de atenção, contudo, é que esta modalidade lida com o "problema posto". A dívida já é uma realidade contábil e jurídica. A transação da PGFN funciona como um remédio eficaz para uma enfermidade já instalada, focando na recuperação e na regularização.

A transação no contencioso (RFB): A nova fronteira estratégica

Aqui reside a grande mudança de paradigma. Regulamentada pela lei 14.375/22 e editais subsequentes da Receita Federal, a transação no contencioso permite a negociação de débitos que ainda estão em discussão na esfera administrativa, seja em impugnações ou em recursos perante o CARF - Conselho Administrativo de Recursos Fiscais.

A vantagem estratégica é imensa. Em vez de remediar, o objetivo é prevenir. A empresa pode encerrar uma disputa cujo desfecho é incerto, mitigando o risco de uma derrota que resultaria na constituição de um crédito tributário de 100% do valor, acrescido de multas que podem chegar a 150%. A transação no contencioso transforma o litígio de um jogo de "tudo ou nada" em um exercício de gestão de risco.

Ao aderir, a empresa troca a incerteza de um litígio prolongado e o risco de uma perda total por um acordo com concessões mútuas e um custo previsível. Isso não apenas protege o balanço de um passivo vultoso e inesperado, mas também libera recursos e tempo que seriam consumidos na disputa administrativa.

O risco oculto: A adesão irrefletida e a interrupção da prescrição

Apesar dos benefícios evidentes, a adesão a uma transação tributária contém uma "cláusula de veneno" para o contribuinte desatento: a confissão de dívida. Todo acordo de transação exige, como pré-requisito, a confissão irrevogável e irretratável dos débitos incluídos na negociação. Juridicamente, este ato tem uma consequência grave e imediata.

Conforme o parágrafo único, inciso IV, do art. 174 do CTN, a confissão da dívida pelo devedor é uma das causas de interrupção da prescrição. Na prática, isso significa que o prazo de cinco anos que o Fisco tem para cobrar judicialmente o débito é zerado e reiniciado a partir da data da adesão.

Imagine um débito constituído em 2020, cuja prescrição ocorreria em 2025. Se a empresa, sem uma análise prévia, adere a uma transação no final de 2024 e, por qualquer motivo, rescinde o acordo em 2026, o Fisco terá até 2031 para ajuizar a execução fiscal pelo valor integral, com todas as multas e juros. Um débito que estava prestes a "caducar" ganha sobrevida e retorna com força total. O mesmo raciocínio se aplica à decadência para débitos ainda não plenamente constituídos.

Portanto, a primeira etapa de qualquer projeto de transação não é analisar o edital, mas sim auditar a própria dívida. É um erro primário e custoso negociar um passivo que já poderia estar extinto pela prescrição.

A decisão estratégica: Quando e como transacionar?

A existência dessas duas modalidades, somada ao risco da interrupção prescricional, obriga advogados e gestores a uma análise ainda mais criteriosa. A decisão ótima passa por um novo fluxo de perguntas:

  1. O débito é legalmente exigível? Antes de tudo, é preciso verificar se já ocorreu a decadência ou a prescrição. Esta é a análise preliminar indispensável.
  2. Qual a real probabilidade de êxito no contencioso? Apenas se o débito for exigível, passa-se à análise da tese, da jurisprudência e das chances de vitória.
  3. Qual o impacto do passivo no balanço e na operação? A necessidade de uma CND para a continuidade dos negócios pode ser um fator decisivo.
  4. Os termos do edital são favoráveis? Por fim, analisa-se se os descontos e prazos do edital de transação são financeiramente mais vantajosos do que o risco de uma perda integral no litígio.

A decisão ótima emerge da colaboração entre o departamento jurídico, que avalia a tese, e o financeiro, que mede o impacto no caixa e no balanço.

Conclusão

A transação tributária deixou de ser uma nota de rodapé na legislação fiscal para ocupar o centro do palco. Os editais da PGFN e as novas possibilidades no contencioso da RFB não são convites à rendição, mas sim ferramentas de gestão estratégica que exigem uma advocacia diligente. O papel do advogado transcende o de negociador e se firma como o de um auditor de riscos, cujo primeiro dever é garantir que a solução proposta não se torne um problema ainda maior no futuro.

________________

BRASIL. Lei 13.988, de 14 de abril de 2020. Dispõe sobre a transação nas hipóteses que especifica; e altera as leis 13.464, de 10 de julho de 2017, e 10.522, de 19 de julho de 2002. Brasília, DF: Presidência da República, [2020].

BRASIL. Lei 14.375, de 21 de junho de 2022. Altera a lei 13.988, de 14 de abril de 2020, para disciplinar a transação no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica. Brasília, DF: Presidência da República, [2022].

PROCURADORIA-GERAL DA FAZENDA NACIONAL. Edital de Transação por Adesão nº 04/2025. Disciplina as condições para transação de débitos do setor de Varejo. Brasília, DF: PGFN, [2025].

VALOR ECONÔMICO. PGFN amplia uso de prejuízo fiscal na transação tributária. Valor Econômico, São Paulo, 24 abr. 2025. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2025/04/24/pgfn-amplia-uso-de-prejuizo-fiscal-na-transacao.ghtml. Acesso em: 30 jun. 2025.

Dayane Sâmela
Advogada,pós graduada em Direito do Trabalho e Tributário. Fundadora do Escritório Dayane Sâmela Advocacia. Há 14 anos integra as áreas Tributária e Trabalhista em soluções estratégicas para empresas.

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