Migalhas de Peso

O aumento das taxas cartorárias em Minas Gerais e o paradoxo da formalização habitacional

Embora a formalização seja crucial para a segurança jurídica dos imóveis, o aumento das taxas pode desencorajar proprietários a regularizarem seus bens, perpetuando a informalidade e a insegurança habitacional.

30/6/2025

Introdução

A chancela do Governo de Minas Gerais ao aumento de 266% nas taxas de registro de imóveis1 por meio da lei estadual 25.125/242, regulamentada pela portaria?8.366/CGJ/225, deverá representar um reforço à informalidade urbana, uma vez que se configura como mais uma barreira econômica à formalização fundiária, atingindo especialmente as famílias de média renda. Esse descompasso entre norma e realidade, sintetizado por Maricato na fórmula 'as ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias'3, manifesta-se exemplarmente na recente autorização do governo mineiro: enquanto o discurso jurídico proclama o direito à moradia, a prática administrativa o inviabiliza.

Nesse sentido, é importante esclarecer que o aumento não impacta diretamente os beneficiários de baixa renda da regularização fundiária urbana de interesse social (REURB-S), que mantêm suas isenções de custas cartoriais4. O problema concentra-se nas famílias de renda intermediária, que não se enquadram nos critérios de gratuidade, mas também não possuem plena capacidade financeira para arcar com os novos custos, ficando obrigadas ao pagamento integral das transações registrais.

Essa perspectiva expõe uma contradição: enquanto o ordenamento jurídico brasileiro consagra o direito à moradia e reconhece a necessidade de regularização fundiária urbana, o Estado dificulta sua efetivação por meio de medidas que oneram ainda mais os custos da formalização, mesmo para aqueles que em tese podem pagar. Nesse sentido, os números são reveladores: para um imóvel de R$ 250 mil do programa Minha Casa, Minha Vida as taxas cartorárias saltaram de R$ 2 mil para R$ 6,6 mil. Em imóveis acima de R$ 3,2 milhões, o acréscimo pode chegar a 300 vezes o valor anterior.

Esse aumento significativo configura uma contradição ao encarecer proibitivamente a formalização habitacional. Com isso, fica evidente o paradoxo da produção estatal da ilegalidade e o exame da contrariedade da medida com princípios constitucionais e infraconstitucionais frente à complexidade da questão urbana no Brasil.

Em linhas gerais, pode-se dizer que o aumento nas taxas de registro de imóveis autorizada pelo Governo de Minas expressa uma lógica arrecadatória que subordina direitos fundamentais a interesses fiscais e preponderantemente econômicos típico de um legalismo liberal orientado a facilitar a circulação da propriedade como mercadoria e à reprodução de um mercado bilionário vinculado ao registro formal de imóveis. Em termos, trata-se de um modelo que, sob o discurso da segurança jurídica e da formalização, reforça e legitima desigualdades estruturais ao tornar o acesso ao direito - neste caso, o direito à moradia formalizada - condicionado à capacidade de pagamento.

Essa medida, ao elevar os custos de registro sem maiores contrapartidas redistributivas ou critérios de justiça social, pode ser compreendida como expressão da racionalidade jurídica que privilegia a formalidade registral como um fim em si mesmo, mesmo que em detrimento de direitos fundamentais consagrados pela Constituição e de marcos normativos infraconstitucionais. Assim, o legalismo liberal não apenas contribui para a manutenção da informalidade urbana, como a estrutura como campo de acumulação e seletividade econômica, funcionando como instrumento de concentração patrimonial, exclusão territorial e blindagem do capital fundiário formal.

Desenvolvimento

A autorização aqui discutida ilustra o paradoxo da produção estatal da ilegalidade: o Estado que deveria facilitar a inclusão habitacional torna-se agente de sua exclusão. Ao elevar custos de formalização além da capacidade econômica média da população, o poder público empurra milhões de famílias para os mercados informais de moradia. A partir desse quadro, cria-se uma nova categoria de vulnerabilidade habitacional: famílias que possuem, em tese, condições de adquirir casa própria, mas que ficam impossibilitadas de formalizá-la devido aos custos registrais proibitivos. Configura-se assim uma 'classe intermediária de não regularizados' - aqueles que superam os critérios de baixa renda mas não conseguem arcar com os novos patamares de custos cartorárias.

Essa dinâmica configura o que a literatura especializada denomina "produção estatal da ilegalidade" - o mesmo aparato normativo que estabelece padrões de regularidade urbana e fundiária cria custos de conformidade inacessíveis, forçando ou induzindo a população a operar na informalidade (Fernandes, 2022; Calderón, 2014; Cravino, 2023).

Considerando isso, o aumento das taxas cartorárias pode produzir ao menos três efeitos: cria desincentivo estrutural à regularização5, contribui na consolidação dos mercados informais e pode promover regressividade social ao penalizar economicamente principalmente pessoas de média renda. Essa contradição torna-se ainda mais grave quando se analisam os possíveis impactos nos programas habitacionais federais. A medida compromete diretamente a efetividade do programa Minha Casa, Minha Vida, por exemplo, que dependem da entrega de unidades com documentação regular para cumprir com parte dos seus objetivos de inclusão habitacional.

Assim, quando o Estado, simultaneamente, subsidia a construção de habitações populares, por um lado, mas, por outro, encarece proibitivamente sua formalização, produz política pública desconforme que mina seus próprios objetivos. Se a moradia é um direito fundamental social constitucionalmente reconhecido (art. 6º), a sua formalização é faz parte obrigatória desse conceito, especialmente quando pode envolver o Minha Casa, Minha Vida e outros programas de habitação de interesse social.

A vulnerabilidade das famílias de média renda diante do aumento das taxas cartorárias agrava-se quando analisada em conjunto com outras transformações recentes do marco jurídico habitacional brasileiro. A substituição da hipoteca pela alienação fiduciária nos financiamentos de moradia popular criou um mecanismo mais célere para retomada de imóveis em caso de inadimplemento, configurando o que a literatura especializada denomina 'financeirização da moradia popular' (MENDONÇA , 2022).

Paralelamente, a admissão pelo STF do despejo extrajudicial simplificou ainda mais os procedimentos de retomada imobiliária. Essa combinação de fatores coloca as famílias de média renda em posição particularmente vulnerável: além de arcarem com custos elevados de formalização, ficam expostas a mecanismos expeditos de perda da moradia, muitas vezes sem tempo adequado para recuperação econômica ou defesa judicial efetiva, comprometendo as garantias do direito à moradia adequada.

Do ponto de vista constitucional, o aumento de 266% nas taxas cartorárias configura medida desproporcional que viola múltiplos direitos fundamentais. A medida contraria o direito à moradia (art. 6º), o dever estatal de promover programas habitacionais (art. 23, I), a função social da propriedade (arts. 5º, XXIII, e 170, III), o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (art. 182, caput), a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o princípio da igualdade (art. 5º) e a capacidade contributiva (art. 145, §1º).

A inconstitucionalidade manifesta-se de forma multidimensional. Primeiro, a medida ajuda a transformar direitos fundamentais em privilégios econômicos, subordinando o exercício da cidadania à capacidade de pagamento e inviabilizando a formalização da moradia para parcela significativa da população. Segundo, compromete a função social da propriedade ao tratá-la predominantemente como ativo econômico ou, quando incorporada a fundos de investimento imobiliário, como produto financeiro securitizado. Terceiro, fere o princípio da igualdade ao impor ônus uniformes a sujeitos em condições econômicas desiguais, sem modulação dos encargos conforme a capacidade contributiva6.

No âmbito infraconstitucional, a autorização vai de encontro à lei 10.257/2001 (Estatuto da Cidade), especialmente o art. 2º, I, que consagra a função social da cidade, e a lei 13.465/17 (lei de regularização fundiária), que visa simplificar e reduzir custos da formalização imobiliária. Pesquisa em desenvolvimento sobre sistemas de ressarcimento de custas cartorárias na REURB-S revela que diferentes estados adotam mecanismos distintos: enquanto Minas Gerais opera com fundos de ressarcimento, outros estados implementam modalidades de compensação antecipada, independentemente da execução efetiva de regularizações7. A contradição torna-se ainda mais evidente considerando que, embora os beneficiários de REURB-S mantenham suas isenções, o sistema cria uma barreira para famílias de renda intermediária, perpetuando a exclusão habitacional.

A questão posta transcende aspectos meramente cartorários e revela tanto uma incompreensão sobre a complexidade da informalidade urbana no Brasil como expõe a incapacidade estrutural do sistema de formalização da propriedade no país em absorver a demanda habitacional da população de baixa e média renda, uma vez que este é fundado em uma lógica de legalismo liberal que prioriza a segurança jurídica patrimonial e a circulação da propriedade como ativo econômico e/ou financeiro em detrimento de sua função social. O resultado é um sistema excludente que transforma o direito constitucional à moradia em mercadoria de alto custo, somente acessíveis por poucos, motivo pelo qual é urgente a incorporação de critérios de justiça social e territorial na definição das taxas e procedimentos cartorários, o fortalecimento de mecanismos de regularização fundiária simplificada e a integração da política registral com as políticas urbanas e habitacionais.

Por outro lado, a justificativa arrecadatória da medida revela uma priorização que subordina direitos fundamentais a interesses fiscais-econômicos. Dados do Sistema Justiça Aberta do CNJ indicam que os cartórios de registro de imóveis em Minas Gerais já arrecadavam R$ 1,36 bilhão semestralmente antes do reajuste8, demonstrando que o sistema cartorário mineiro já possuía significativa capacidade arrecadatória

Essa lógica contraria princípios fundamentais de política tributária progressiva, que deve onerar proporcionalmente mais aqueles com maior capacidade contributiva. Com efeito, o sistema tributário brasileiro, ao privilegiar a alta tributação sobre o consumo em detrimento da tributação sobre o patrimônio, já é reconhecidamente regressivo. A nova tabela de emolumentos agrava essa característica ao incidir uniformemente sobre todas as faixas de valor imobiliário, atingindo desproporcionalmente as famílias de menor renda e configurando política fiscal que aprofunda as desigualdades sociais existentes9.

Considerações finais

O aumento das taxas cartorárias em Minas Gerais representa a persistência de uma lógica institucional que subordina direitos fundamentais a interesses arrecadatórios e patrimoniais. Nesse contexto, ao tratar a formalização imobiliária como serviço oneroso e indiferenciado, o Estado desconsidera a profunda desigualdade estrutural que marca o acesso à moradia no Brasil e reforça um modelo excludente de política urbana.

Desse modo, a autorização para o aumento, embora revestida da aparente neutralidade, característica do legalismo liberal, pode produzir efeitos regressivos concretos, pois desestimula a regularização, penaliza economicamente os mais vulneráveis e aprofunda a informalidade urbana. Não por outro motivo, faz-se necessário, portanto, adotar critérios diferenciados de cobrança que considerem a capacidade contributiva das famílias, integrar o sistema registral às políticas de habitação e regularização fundiária e romper com o modelo jurídico-formalista que tem historicamente privilegiado a propriedade como ativo econômico e o direito à moradia como um privilégio de mercado.

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Referências

CORREIA, Arícia Fernandes. Zonas de Especial Interesse Social e Núcleos Urbanos Informais no novo marco regulatório da regularização fundiária urbana: criação de normas específicas e/ou dispensa de exigências legais genéricas? In: GAZOLA, Patricia Marques (org). Regularização fundiária de interesse social e os desafios da sustentabilidade. Rio de Janeiro: Àgora21, 2019. v. 1, p. 17-70.

CALDERÓN, Julio. Planificando la ciudad informal. Lecciones desde abajo. CALDERÓN, Julio. Miradas, enfoques y estudios sobre las ciudades. Lima: Vicio Perpetuo Vicio Perfecto, 2014.

CRAVINO, María Cristina. Cuatro décadas de políticas de regularización dominial de asentamientos informales en la Argentina. Revista Brasileira de Direito Urbanístico – RBDU, Belo Horizonte, ano 9, n. 17, p. 9-33, jul./dez. 2023. DOI: 10.52028/RBDU.v09.i17-ART01.ARG

FERNANDES, Edésio. A produção socioeconômica, política e jurídica da informalidade urbana. INSTITUTO PÓLIS. Regularização da terra e da moradia: o que é e como implementar. São Paulo: Instituto Pólis, 2002.

MARICATO, Ermínia. "As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias". In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. (org). A cidade do pensamento único. Petrópolis: Vozes, 2000.

MENDONÇA, Rafael da Mota. Regularização fundiária urbana e financeirização da terra: da segurança da posse à terra como título (i)mobiliário. 2022. 439 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2022.

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1 https://cnbmg.org.br/portaria-no-8-366-cgj-2025-publica-as-tabelas-atualizadas-de-emolumentos-e-da-taxa-de-fiscalizacao-judiciaria-relativas-a-pratica-dos-atos-notariais-e-de-registro/?utm_source=chatgpt.com

2 https://www.almg.gov.br/legislacao-mineira/LEI/25125/2024/

3 Sobre o conceito de "ideias fora do lugar" no planejamento urbano brasileiro e sua relação com a produção da cidade, ver MARICATO, Ermínia. "As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias". In: ARANTES, O.; VAINER, C.; MARICATO, E. (Org.). A cidade do pensamento único. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 121-192. A obra demonstra como o sistema normativo brasileiro, ao ignorar sistematicamente a cidade real em favor de interesses dominantes, produz e reproduz a exclusão urbana – dinâmica que se manifesta exemplarmente no caso das taxas cartorárias aqui analisado.

4 O sistema de compensação da gratuidade de custas cartorárias na regularização de interesse social opera através de fundos que ressarcem os cartórios (desde que haja regulamentação local sobre o tema. No Rio de Janeiro, por exemplo, existe regulamentação local). Assim, embora os beneficiários de baixa renda mantenham a isenção, o aumento das taxas pode impactar indiretamente o sistema através do reequilíbrio financeiro desses fundos.

5 Um reflexo é o fenômeno da "deformalização pós-regularização" que se caracteriza pelo retorno à informalidade de imóveis anteriormente regularizados, motivado principalmente pelos altos custos das transações imobiliárias subsequentes. As custas registrais para transferências, inventários, partilhas e outras operações constituem barreira econômica que impede a manutenção da formalidade conquistada, criando um ciclo perverso onde o investimento público em regularização fundiária não produz efeitos duradouros. Ver CORREIA, Arícia Fernandes. Zonas de Especial Interesse Social e Núcleos Urbanos Informais no novo marco regulatório da regularização fundiária urbana: criação de normas específicas e/ou dispensa de exigências legais genéricas? In: GAZOLA, Patricia Marques (org). Regularização fundiária de interesse social e os desafios da sustentabilidade. Rio de Janeiro: Àgora21, 2019. v. 1, p. 17-70.

6 A proporcionalidade na tributação segundo a capacidade contributiva representa princípio fundamental que deveria orientar a modulação de encargos registrais, evitando, por exemplo, conceitos rígidos de "baixa renda" que frequentemente se mostram inadequados à complexidade da desigualdade socioeconômica brasileira. No caso das taxas cartorárias mineiras, a ausência dessa modulação transforma os encargos registrais em barreira proibitiva à formalização habitacional.

7 Dados preliminares de pesquisa em desenvolvimento no âmbito do Projeto “Na Régua: eixo “Moradia de Direito” do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Direito da Cidade – NEPEC do
Programa de Pós-graduação em Direito Universidade do Estado do Rio de Janeiro. https://nepec-uerj.com.br/projeto-na-regua-eixo-moradia-de-direito/

8 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Sistema Justiça Aberta - Dados das Serventias Extrajudiciais. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/corregedoriacnj/justica-aberta/. Dados citados em: TRIBUNA ONLINE. Cartórios em Minas Gerais autorizados a cobrar 266% a mais no registro de imóveis. Disponível em: https://tribunaonline.com.br/brasil/cartorios-em-minas-gerais-autorizados-a-cobrar-266-a-mais-no-registro-de-imoveis-243644.

9 O inciso III do art. 3º da Constituição Federal de 1988 estabelece como objetivo fundamental da República "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais", princípio que orienta a interpretação de todas as políticas públicas, incluindo as de natureza fiscal e tributária.

Anderson Henrique Vieira
Doutorando em Ciências Jurídicas pela UFPB em cotutela de tese junto ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Territoriais da Universidade Nacional da Colômbia (UNAL - Sede Medellín), e mestre em Planejamento e Dinâmicas Territoriais no Semiárido pela UERN. Advogado.

Arícia Fernandes Correia
Pós-doutora em Direito pela Universidade de Paris 1 - Pantheón-Sorbonne e doutora e mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Procuradora do Município do Rio de Janeiro e diretora do Centro de Estudos da PGM do Rio de Janeiro.

Talden Farias
Pós-doutor e doutor em Direito pela UERJ com estágio de doutoramento sanduíche junto à Universidade de Paris 1 - Pantheón-Sorbonne. Advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE. Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA).

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