1. Introdução
Quando juízes decidem um caso que trata do acesso à saúde, ele ou ela concederá a alguém um tratamento de saúde. No final do dia, outro paciente simplesmente poderá estar perdendo seu lugar de atendimento. O paciente invisível, aquele que perdeu uma vaga na lista oficial de espera mesmo seguindo todos os critérios técnicos, vai possivelmente morrer ou, pelo menos, pode não ter o atendimento para o qual teria cumprido todos os requisitos técnicos. Só o Juiz não o verá. Isso é o que chamo de “Paradoxo da Morte Invisível”.
Logicamente o roteiro acima foi traçado de forma extremamente simplória. Simplória demais para ter alguma credibilidade teórica. Mas simplória o suficiente para que nós, da área jurídica, possamos compreender. Afinal, não somos treinados para compreensão do que são decisões alocativas - muitas dessas decisões sendo drásticas, pois envolvem vida ou morte - em regimes de escassez. O jurista tem a tendência de simplificar discursos complexos: mediocriza a noção de escassez com alternativas ao estilo de frases de efeito como “basta combater a corrupção que sobra recursos para a saúde”.
O juiz-heroico, que julga suprimindo toda uma política pública, interpreta o direito à saúde com nível muito baixo ou inexiste de respeito às competências do Poder Executivo. Mal compreende, por jamais ter se dado ao trabalho de ir buscar conhecer o campo da ciência sobre o qual exerce a jurisdição. Não compreende o simples conceito de uma sigla: SUS - Sistema Único de Saúde. Se é “sistema”, portanto, não é caso de um fornecimento aleatório: deve funcionar com regras, inclusive para inclusão ou exclusão de medicamentos, tratamento, produtos, procedimentos ou tecnologias. Se é “único”, o tratamento deve iniciar e terminar no “Sistema”: logo, desde a prescrição, o paciente deve estar no SUS, caso contrário, o “sistema público” seria convertido num mero dispensário de medicamentos da escolha do médico privado do paciente. E, finalmente, o conceito de “saúde”, que não está em momento de nenhum dissociado de algumas noções que as profissões de saúde estão preparadas para enfrentar (as profissões jurídicas não têm capacidade para tanto, pois não foram treinadas para isso): por exemplo, a “dignidade da morte”, “custo-efetividade”, “medicina-baseada-em-evidência”.
A falha é ainda mais gritante quando a literatura jurídica trata do Direito à Saúde e seu “aperfeiçoamento” por meio do litígio. O jurista foca o demandante individual, não no Sistema de Saúde. Vamos pensar em cirurgias de transplante renal. Há um número escasso de doadores. Gerar uma lista mediante critérios, não é NEGAR acesso, mas regular acesso mediante gestão de um regime de escassez. Em muitos países, as leis bioéticas proíbem o comércio de órgãos: o particular não pode suprir por si sua necessidade. Então, o governo precisa organizar uma lista, em ordem de preferência. Elegem-se critérios: (a) primeiro a entrar, primeiro a sair; (b) a condição de emergência do paciente; e outras informações são relevantes.
2. A morte indivisível
O paciente “A” é o número um, o próximo da fila! Ele/Ela está esperando por quase um ano. O paciente “B” entra com uma ação exigindo um transplante de rim. É óbvio que todo paciente precisa e merece o transplante. Mas, provavelmente, o Paciente “B” terá uma decisão positiva no judiciário, uma liminar para determinar a “cirurgia em X dias”. O juiz vê o Paciente “B”; mas o Juiz nunca verá quando o paciente “A” sofrerá ou morrerá.
O mesmo ocorre nas decisões de alocação de recursos para (a) medicamentos, (b) novas tecnologias, (c) produtos, e (d) opções terapêuticas.
Note-se uma questão relevante: a incompletude do próprio Tema 1234 em julgamento no STF ao momento da redação deste texto. Fala em “medicamentos”, quando a regra técnica de SAÚDE levaria a tal definição se aplicar a “medicamentos, produtos, protocolo clínico e diretriz terapêutica e novas tecnologias em saúde”, seja a inclusão ou a exclusão.
Para tais inclusões ou exclusões de “medicamentos, produtos, protocolo clínico e diretriz terapêutica e novas tecnologias em saúde”, existe a CONITEC - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS, regulada no decreto federal 7646 de 20112. O conceito e a natureza da CONITEC serão objeto de tópico específico adiante. A alocação de um “medicamento X” demandará a supressão (seja em quantidade dos que já esteja em lista ou na não introdução em lista) de opções menos custosas que poderiam atender um número infinitamente maior de pessoas. Nem precisa ser a supressão integral: pode ser meramente a parcial. Ainda assim afetará uma infinidade de usuários dos medicamentos menos custos e, possivelmente, com efetividade racional.
O que chamamos de “paradoxo da morte invisível” é claramente um argumento “ad terrorem”. Mas é um argumento de enorme precisão e simplicidade - não necessariamente simplório, muito menos desleal - para explicar como um juiz não deve se concentrar apenas em um demandante específico, mas, em vez disso, tentar encontrar soluções para todo o “sistema de transplantes”. Só se houver ilegalidades caberia a intervenção da jurisdição.
3. Conceitos de saúde que não cabem no discurso jurídico simplório
Nós, Advogados, membros do Ministério Público, Magistrados, e demais profissionais do direito não somos treinados para lidar com conceitos como “finitude da vida”, “dignidade na morte”, “tratamento fútil” e assim por diante3. Devido à extrema complexidade desses conceitos nas profissões de saúde, aumenta a necessidade de “autocontenção judicial”, e a jurisdição sobre o Sistema Único de Saúde.
Caso contrário, em breve um médico não poderá mais fazer a escolha de “quem atender” num momento em que chegarem vários pacientes numa emergência. No risco, tentará atender a todos ao mesmo tempo, potencializando os resultados adversos.
As profissões de saúde lidam com decisões terríveis em termos de complexidade! Vida e morte. Com conceitos e princípios que lhes são próprios. Sua substituição não pode se dar por critérios como “perigo da demora” ou “verossimilhança”.
Mesmo conceitos mais simples, como o Princípio da integralidade no SUS, recebem interpretação “individualista” por parte do Poder Judiciário. Como refere a doutrina sanitária, integralidade não é um conceito “jurídico” - mas de saúde coletiva - e contém o risco de ser indevidamente manipulável:4
Nesse panorama nada mais perigoso do que trabalhar com a ideia de integralidade. “Integralidade” é um termo “nativo” do campo de Saúde Coletiva. [...] Pode ser, sem dúvida, uma ideia difusa, polissêmica e passível de interpretação dúbia - portanto manipulável ao gosto de cada um e, nesse caso, algo a se evitar a qualquer custo.Os autores - e aqui ressalto a singularidade do texto - não são, no entanto, ingênuos. Não catam de maneira simplista essa potencial “naturalidade” da expressão para apontar sua existência aqui ou ali, ou fazer sua defesa panfletária em abstrato [...].
Portanto, integralidade não significa dar tudo a todos, mas, integração das ações preventivas, promocionais e assistenciais de saúde:5
“As políticas de saúde devem defender em sua constituição o acesso universal e igualitário quer sejam ações preventivas, quer assistenciais, considerando que um dos sentidos da integralidade reflete-se na articulação entre ações preventivas e assistenciais, buscando um atendimento integral com ênfase na prevenção sem descuidar da assistência.”
Mais adiante, a noção de integralidade - que é o princípio usualmente aplicado para a judicialização - deverá atrair ainda um efeito jurídico processual:6
“Conforme já mencionado, a integralidade busca a totalidade do sujeito, evitando a fragmentação e o reducionismo. Já o acolhimento propõe a garantia do acesso, o atendimento humanizado, oferecendo sempre uma resposta positiva ao problema de saúde apresentado pelo usuário, englobando o acolher, o escutar e o cuidar. Ações humanizantes se dão no momento em que se considera o outro em seus direitos, em sua singularidade e integralidade.
Portanto, se a busca de saúde é a totalidade do sujeito, há reflexo no tipo de obrigação: não uma relação de “solidariedade”, mas de “indivisibilidade”. Isto é, se não for possível a deferência às divisões de atribuições no SUS.
Por tais considerações, cabe exortar, no momento, a deferência judicial ao SUS para que a jurisdição seja adstrita à sua virtude passiva para:
a) Correção de ilegalidades, e não substituição critérios técnicos legitimamente incorporados: por exemplo, se a ordem de atendimento de transplante ou de fornecimento de medicamentos estiver sendo violada, em detrimento do “paciente A” - que cumpre todos os requisitos - em benefício do “paciente B” - que não cumpre os requisitos, violando v.g. a ordem cronológica da lista de agendamento.
b) Ou em litígios coletivos que tragam melhoria efetiva ao SISTEMA e não mera substituição de critérios legitimamente decididos.
4. Acesso a Direito à Saúde através dos Tribunais (Healthcare Access through Litigation): Mais crítica no discurso e no procedimento.
Inicialmente, é preciso compreender que a litigância em saúde não é uma exclusividade brasileira. Mesmo nos Estados Unidos, país onde o conceito de “saúde pública” - como o conhecemos - é praticamente inexistente, passando pela experiência da Colômbia - com as avalanches de “Tutelas” - até mesmo a sistemas públicos de saúde melhor avaliados em termos mundiais, como Israel - sempre ocupando uma das 5 primeiras posições no Ranking da OCDE -, em todas essas realidades veremos uma forma mais fraca ou mais acentuada de litigância.
Infelizmente, a marca brasileira está muito próxima da realidade colombiana, antes do Julgado/Sentencia T-760/08. Neste julgado, a Corte Constitucional Colombiana delimitou uma distinção objetiva e criteriosa. Em que medida os direitos fundamentais à saúde eram exigíveis imediatamente ou sujeitos a realização progressiva.
PRIMEIRA CONCLUSÃO: Os benefícios e direitos contidos no POS (o equivalente ao SUS), bem como “outros serviços obrigatórios” estabelecidos pela legislação, foram reconhecidos como imediatamente exigíveis. Em suma: a correção da ilegalidade na falta de fornecimento de um direito previsto no próprio sistema público.
SEGUNDA CONCLUSÃO: Com relação à realização progressiva, a Corte estabeleceu que, embora o Estado possa alegar a falta de recursos para cumprir uma obrigação específica, deve traçar seu plano para obter os recursos necessários e as respectivas políticas que tal plano implicará desenvolver, o que deve, em todos os casos, incluir oportunidades para a participação e deliberação do público. No primeiro caso, uma satisfação imediata. No segundo caso, o reconhecimento de um direito procedimental.
Fonte:
Litigating health rights : can courts bring more justice to health.
Edited by Alicia Ely Yamin and Siri Gloppen.
Distributed by Harvard University Press
ISBN 978-0-9796395-5-5
A decisão foi tomada em 2008, e o volume de litígios individuais fora impactado já no ano de 2009, como demonstra a imagem acima.
Uma análise sobre as “Tutelas” na Corte Colombiana vem a calhar para o Brasil:7
"A história da Colômbia quanto à intervenção judicial no direito à saúde ilustra muitos dos paradoxos do papel da Corte Constitucional na sociedade colombiana. A proteção judicial do direito à saúde tem aumentado constantemente na Colômbia desde 1991, e a jurisprudência sobre a aplicabilidade do direito à saúde está entre as mais avançadas do mundo. No entanto, concessões generosas de benefícios individuais de saúde, sem levar em consideração se eles poderiam ser universalizados, parecem ter exacerbado, em vez de atenuar, as desigualdades no sistema de saúde colombiano.
Essa conclusão sobre a judicialização pode não ser motivo de preocupação, visto que historicamente a classe média frequentemente está na vanguarda da reivindicação de direitos, pois tem maior acesso à justiça, e esses direitos muitas vezes são posteriormente estendidos aos pobres.
No entanto, o sistema complexo e sub-regulado estabelecido pela lei 100, em combinação com intervenções judiciais, parece se prestar à manipulação por parte de pacientes em melhor situação, EPSs e empresas farmacêuticas."
Importante salientar que a esperança na litigância precisa ser revista. Em Harming the Poor Through Social Rights Litigation: Lessons from Brazil, o Professor Octávio Luiz Motta Ferraz8, Professor da Universidade de Warwick, escreve:
[...] Isso pode ser explicado em parte por uma crença de que, se os tribunais usarem remédios tradicionais de proteção de direitos, como decisões judiciais individualizadas, eles podem acabar beneficiando os indivíduos “errados”, ou seja, os que estão em melhor situação.
[...]
Tornou-se cada vez mais claro na experiência de alguns países que a aplicação judicial dos direitos sociais muitas vezes pode beneficiar desproporcionalmente as classes media e alta, em vez dos pobres."
O modelo brasileiro de Judicialização é paranoico. Privilegia a litigância individual e repele as ações de cariz coletivo ou capazes de modular a política pública (onde se encontra o potencial vício de ilegalidade). Não se está defendendo que uma ACÃO COLETIVA, por si só, possa avançar sobre a SEPARAÇÃO DE PODERES, ou a DEFERÊNCIA TÉCNICA quanto às decisões científicas do Poder Executivo. Apenas é necessário demonstrar que é impróprio permitir tamanha invasão de competências do Poder Executivo nos litígios individuais, quando o mesmo se torna quase intransponível no Brasil para as ações coletivas.
Incrivelmente, uma demanda judicial para acesso a tratamento de saúde no SUS, no Brasil, tem chance acima de 85% de ser um sucesso para o litigante autor. Nesses casos, as decisões judiciais atropelam - quando chegam a tocar no assunto - temas como separação de poderes, deferência às decisões técnicas do Poder Executivo, ou “questões políticas” estarem imunes ao controle judicial. Não efetuam uma distinção levada a efeito pela Corte Constitucional da Colômbia - como acima demonstrado - que seria:
Suprimir uma ILEGALIDADE na negativa de acesso à saúde pactuada X Substituir os critérios tecnológicos e orçamentários definidos pelo processo democrático de construção das políticas de saúde (inclusive Participação Popular).
Resta ao Brasil a perigosa gestão do contencioso individual, caso a caso, que, “per se”, parece desautorizar um caráter regulatório eficiente para o SUS. A justificativa de que a litigância incrementaria a qualidade dos serviços, em uma espécie de REGULATION THROUGH LITIGATION, é uma conclusão imprópria. Até por uma razão: o excesso ou quase exclusividade de litigância individual não agrega valor regulatório ao “SISTEMA” - sim, o primeiro “S” da sigla SUS.
Além disso, a litigância individual desautoriza a crença na segurança jurídica caso algum pretexto regulatório envolva tal litígio.
David Landau9 afirma que existem apenas algumas reivindicações coletivas em litígios de saúde, a maioria delas geralmente negada, e, ainda, com o risco de atendimento mais focado nas classes com algum poder aquisitivo:
"Com base em um estudo de caso aprofundado da Colômbia, que se baseia em meu extenso trabalho de campo naquele país, e em evidências de outros países, incluindo Brasil, Argentina, Hungria, África do Sul e Índia, argumento que tanto a suposição quanto a recomendação de consenso estão erradas. Na verdade, a maioria da aplicação dos direitos sociais beneficiou os grupos de classe média ou alta, em vez dos pobres. [...] Além disso, a escolha do remédio usado pelo tribunal tem um efeito enorme sobre se os grupos empobrecidos sentem algum impacto da intervenção. Remédios superfortes, como injunções estruturais, são as formas prováveis de transformar a prática burocrática e impactar positivamente a vida dos cidadãos mais pobres. A solução para o problema dos direitos socioeconômicos é tornar os remédios mais fortes, não mais fracos."
5. Se a interferência judicial em critérios administrativos técnicos já é uma falha, pior ainda a preferência pelo litígio individual.
Hoje, como se encontra, a litigância é TODA MOLDADA para soluções caso a caso. Um fracasso estrutural. Um exemplo que podemos ter de como as ações coletivas são vistas com ressalvas pelo Judiciário brasileiro - o que confirma uma predileção pela ineficiência do litígio individual - pode ser encontrado no caso 0002139-49.2018.8.08.0048 (apelação cível) envolvendo o Município de Serra/ES e Ministério Público do Estado do Espírito Santo:
EMENTA: REMESSA NECESSÁRIA E APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS. OFERTA DE ATENDIMENTO ELETIVO EM ORTOPEDIA E SUBESPECIALIDADES NO MUNICÍPIO DE SERRA. EXCEPCIONALIDADE NÃO DEMONSTRADA. IMPOSSIBILIDADE DE INTERFERÊNCIA DO JUDICIÁRIO. DISCRICIONARIEDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. RECURSO DESPROVIDO. REMESSA NECESSÁRIA PREJUDICADA. I- Compulsando-se os autos, verifica-se a ausência de contexto excepcional apto a justificar a atuação do Poder Judiciário na efetivação de direitos essenciais à coletividade, notadamente se for considerado que o Apelante trouxe no bojo da petição inicial a informação de que haveria uma excessiva demanda reprimida, com aumento do número de pessoas na espera para atendimento eletivo de saúde na área de ortopedia e subespecialidades, aos usuários do SUS no Município de Serra/ES, o que se daria em virtude de uma suposta omissão do Estado em promover medidas de redimensionamento da oferta de serviços nessa área, restando acrescentado, ainda, que os usuários do Sistema Único de Saúde necessitam de atendimento da mesma forma que os usuários de planos privados. Todavia, após uma cognição exauriente do feito no Juízo de origem, observa-se que não restou suficientemente demonstrada a lesão aos direitos fundamentais que garantiria a intervenção judicial, pois não se pode confundir eventuais deficiências na prestação dos serviços pela Administração Pública com a omissão capaz de configurar a violação a direito fundamental. II- Em que pese a existência de fila de espera para atendimento de saúde no Município de Serra na área de ortopedia e subespecialidades, observa-se pelas narrativas dos autos que o serviço está sendo prestado, podendo ser verificado no caderno processual a tentativa do Apelado em promover uma ampliação no atendimento, através da contratação de prestadora de serviço de saúde. III- Ainda que a referida contratação não seja suficiente para solucionar o problema da fila de espera para atendimento de média e alta complexidade em ortopedia no Município de Serra, certo é que tal providência demonstra a inexistência de omissão do Estado em adotar melhorias na prestação do referido serviço de saúde, sendo que eventual deficiência deve ser remediada segundo os métodos de controle interno do Poder Executivo, sobretudo porque uma ingerência judicial para ampliação do atendimento apenas no município de Serra poderia ocasionar um indesejável desequilíbrio da oferta em relação às demais localidades, as quais certamente também possuem fila de espera para atendimento, sendo que a ampliação da rede exige custo financeiro, com a aplicação de recurso público, o qual está sujeito a limitações de natureza orçamentária. IV- Recurso desprovido. Remessa prejudicada. (TJES, Classe: Apelação / Remessa Necessária, 048180019167, Relator : JORGE DO NASCIMENTO VIANA, Órgão julgador: QUARTA CÂMARA CÍVEL , Data de Julgamento: 8/2/2022, Data da Publicação no Diário: 23/2/2022)
A partir de informações de um Tribunal de Justiça Estadual do Brasil (Estado do Espírito Santo), é possível constatar como o contencioso da saúde no Brasil é tanto "recente" quanto centrado em problemas "individuais".
Vejamos os dados:
No período de 01/01/1990 a 31/12/1999:
Zero referências de “Sistema único de saúde”:
No período de 01/01/2000 a 31/12/2009:
89 Acórdãos e 364 Decisões Individuais/Monocráticas referências do “Sistema único de saúde”:
No período de 01/01/2010 a 31/12/2019:
555 Acórdãos e 1155 Decisões Individuais/Monocráticas referências do “Sistema único de saúde”:
No período de 01/01/2020 a 31/12/2022:
163 Acórdãos e 225 Decisões Individuais/Monocráticas referências do “Sistema único de saúde”:
E o mais importante. Se entrarmos aleatoriamente em decisões judiciais, veremos nos dez anos quase exclusivamente litígios individuais.
Há uma aberração ainda pior: A utilização da ação civil pública para tentar corrigir situações individuais e resolver um caso isolado. Na apelação cível 0000013-87.2018.8.08.0060 a “ação civil pública” tratava de fornecimento de medicamento para exclusivamente um menor de idade, identificado pelas iniciais do nome (RRDB):
EMENTA APELAÇÕES CÍVEIS EM AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DIREITO CONSTITUCIONAL À SAÚDE. OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO NÃO CONSTANTE DOS ATOS NORMATIVOS DO SUS. TEMA 106. JULGAMENTO SOB O RITO DO ART. 1.036 DO CPC/2015. POSSIBILIDADE. CARÁTER EXCEPCIONAL. REQUISITOS CUMULATIVOS PARA O FORNECIMENTO NÃO OBSERVADOS. RECURSO DO MUNICÍPIO DESPROVIDO. RECURSO DO ESTADO PARCIALMENTE PROVIDO. 1 O Tribunal da Cidadania atualmente possui a conclusão de que o direcionamento da Autoridade Judicial para o cumprimento da medida conforme as regras de repartição de competências e a consequente determinação do ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro deve ocorrer somente na fase de Cumprimento de Sentença. 2 - O Superior Tribunal de Justiça possui entendimento firme e consolidado de que, na hipótese de demora do Poder competente, o Poder Judiciário poderá determinar, em caráter excepcional, a implementação de políticas públicas de interesse social, sem que haja invasão da discricionariedade ou afronta à reserva do possível (AgInt no AREsp 1716133/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 31/05/2021, DJe 01/07/2021). 3 - Um dos parâmetros fixados pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de recurso repetitivo, para que o Poder Judiciário determine o fornecimento de remédios fora da lista do Sistema Único de Saúde (SUS) é a comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS, prova que não foi produzida quanto ao medicamento Escilalopram 10 (Esc). 4 - Recurso do Município desprovido. Recurso do Estado parcialmente provido. (TJES, Classe: Apelação Cível, 060180000139, Relator : ARTHUR JOSÉ NEIVA DE ALMEIDA, Órgão julgador: QUARTA CÂMARA CÍVEL , Data de Julgamento: 29/11/2021, Data da Publicação no Diário: 14/12/2021)
No voto condutor vemos que se trata de uma AÇÃO CIVIL PÚBLICA para tentar resolver um problema INDIVIDUAL: “Trata-se de dois recursos de apelação em razão da sentença de fls. 71-71v por meio da qual o MM juiz julgou procedente a pretensão deduzida na presente ação civil pública de Obrigação de Fazer, condenando os Apelantes, solidariamente, a fornecerem os medicamentos antidepressivos “Oxalato de Escitalopram” e “Topiramato” em favor de R.R.D.B.”
6. Alguma conclusão
Se alguma conclusão pode ser obtida com esse texto, começaria informando que ideia milagrosa de buscar o aprimoramento dos sistemas de saúde por intermédio da litigância não é uma exclusividade brasileira. Os resultados da “judicialização de saúde” que se pensavam capazes de agregar valor estruturante ao SISTEMA, não ocorrem. A litigância individual, quase exclusividade no Brasil, incrementa o atendimento de classes mais privilegiadas.
O efeito de aprimoramento da ESTRUTURA do sistema, na totalidade, dependerá substancialmente de uma guinada em direção ao respeito às regras do sistema, quando legitimamente postas e enquanto estiverem sendo cumpridas. Em suma, distinguir entre:
Supressão de ilegalidades (não cumprimento das regras do Sistema) X Substituição de critérios técnicos e orçamentários decididos legitimamente conforme as regras do Sistema de Saúde, em especial a participação democrática da sociedade.
Ao fim e ao cabo, a autorrestrição, o respeito à separação de poderes, a deferência às decisões administrativas - particularmente as decisões eivadas de discrição técnica legítima - terão muito mais a contribuir do que o excesso de litígios individuais que se notam atualmente.
Referências
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Derse, Arthur R.. Ethics and the Law in Emergency Medicine, Emergency Medicine Clinics of North America, Volume 24, Issue 3, 2006, Pages 547-555, https://doi.org/10.1016/j.emc.2006.05.004.
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Alicia Ely Yamin, Oscar Parra-Vera, and Camila Gianella. Judicial Protection of the Right to Health: An Elusive Promise? In Litigating health rights : can courts bring more justice to health. Edited by Alicia Ely Yamin and Siri Gloppen. Distributed by Harvard University Press ISBN 978-0-9796395-5-5. [Tradução livre nossa]
Octávio Luiz Motta Ferraz, Social Rights, Judicial Remedies and the Poor, 18 WASH. U. GLOBAL STUD. L. REV. 569 (2019), https://openscholarship.wustl.edu/law_globalstudies/vol18/iss3/6
David Landau, The Reality of Social Rights Enforcement (March 2, 2011). 53 Harvard International Law Journal 189 (2012)., FSU College of Law, Public Law Research Paper No. 488, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=1774914
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1 O autor foi Visiting Scholar – Florida State Unviersity College of Law (2022/2023), Doutor em Direito (Uerj) e Mestre em Direito Tributário (UCAM/RJ). Advogado no Espírito Santo. O período de Visiting Scholar somente foi possível graças ao apoio do Programa de Formação Continuada da Procuradoria Geral do Município de Vitória/ES
2 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/decreto/d7646.htm
3 Arthur R. Derse, Ethics and the Law in Emergency Medicine, Emergency Medicine Clinics of North America, Volume 24, Issue 3, 2006, Pages 547-555, https://doi.org/10.1016/j.emc.2006.05.004.
4 Sayd, Jane DutraOs sentidos da integralidade na atenção e no cuidado à saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva [online]. 2002, v. 12, n. 1 [Acessado 8 Novembro 2022] , pp. 194-197. Disponível em: . Epub 31 Jul 2008. ISSN 1809-4481. https://doi.org/10.1590/S0103-73312002000100014.
5 Fontoura, Rosane Teresinha e Mayer, Cristiane Nunes. Uma breve reflexão sobre a integralidade. Revista Brasileira de Enfermagem [online]. 2006, v. 59, n. 4 [Acessado 8 Novembro 2022] , pp. 532-536. Disponível em: . Epub 31 Mar 2008. ISSN 1984-0446. https://doi.org/10.1590/S0034-71672006000400011.
6 Fontoura, Rosane Teresinha e Mayer, Cristiane Nunes. Uma breve reflexão sobre a integralidade. Revista Brasileira de Enfermagem [online]. 2006, v. 59, n. 4 [Acessado 8 Novembro 2022] , pp. 532-536. Disponível em: . Epub 31 Mar 2008. ISSN 1984-0446. https://doi.org/10.1590/S0034-71672006000400011.
7 Alicia Ely Yamin, Oscar Parra-Vera, and Camila Gianella. Judicial Protection of the Right to Health: An Elusive Promise? In Litigating health rights : can courts bring more justice to health. Edited by Alicia Ely Yamin and Siri Gloppen. Distributed by Harvard University Press ISBN 978-0-9796395-5-5. [Tradução livre nossa]
8 Octávio Luiz Motta Ferraz, Social Rights, Judicial Remedies and the Poor, 18 WASH. U. GLOBAL STUD. L. REV. 569 (2019), https://openscholarship.wustl.edu/law_globalstudies/vol18/iss3/6
9 David Landau, The Reality of Social Rights Enforcement (March 2, 2011). 53 Harvard International Law Journal 189 (2012)., FSU College of Law, Public Law Research Paper No. 488, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=1774914