1. Introdução: O punitivismo como linguagem política
Nas últimas décadas, o Brasil testemunhou a ascensão de um fenômeno peculiar: o uso do Direito Penal como linguagem política. Em nome do combate à corrupção, vimos surgir um novo tipo de campanha - não eleitoral, mas judicial - onde réus se tornam inimigos públicos, investigações viram reality shows e juízes ganham popularidade como candidatos informais da moralidade nacional.
Esse movimento marca a transição do Direito Penal do cidadão para o Direito Penal do inimigo, em que a seletividade é regra, a presunção de inocência é exceção e a legitimidade do processo é substituída pela narrativa moral.
2. Corrupção, mídia e a construção do inimigo público
A corrupção passou a ser o símbolo absoluto do mal no discurso institucional. Não por acaso: ela concentra indignações, captura o imaginário social e justifica medidas autoritárias com grande apoio popular. Mas, como bem já alertava Eugenio Raúl Zaffaroni, o problema não é a existência do crime, mas a forma como o Estado decide reprimi-lo.
Nas grandes operações penais, não há isonomia: há foco em figuras públicas específicas, geralmente ligadas a projetos políticos que se pretende neutralizar. Com o suporte da imprensa e a leniência de setores do Judiciário, o processo se converte em espetáculo, e a investigação em palanque.
3. Quando a justiça se torna performance
Prisão preventiva como pena antecipada. Delação premiada como moeda de troca. Medidas cautelares que duram anos. Sentenças que citam editoriais de jornais. São sinais de um processo que deixou de buscar a verdade e passou a representar um ritual de purificação moral.
A Justiça, nesse cenário, perde sua função institucional para assumir uma função simbólica: a de “limpar” o país, “expurgar” os maus políticos, “salvar” a economia. Mas essa salvação vem a um custo alto: a destruição das garantias constitucionais.
4. O custo institucional do Direito Penal de exceção
Quando o Direito Penal é guiado por agendas políticas, ele perde seu caráter técnico e proporcional. O processo deixa de ser espaço de defesa e se torna um caminho unilateral de punição. E o mais grave: esse tipo de sistema autoritário não se restringe aos poderosos. Ele sempre acaba respingando no cidadão comum.
A corrosão da presunção de inocência, a inversão do ônus da prova e o culto ao punitivismo não se limitam aos casos de corrupção. São precedentes perigosos que abrem espaço para um Estado cada vez mais violento, mais seletivo e menos democrático.
5. Conclusão: Entre a justiça e o espetáculo
Combater a corrupção é necessário. Mas fazer isso às custas da legalidade, da imparcialidade e da justiça processual é trocar um problema por outro ainda mais grave.
O Direito Penal não pode entrar em campanha. Seu papel é proteger o cidadão, não agradar a opinião pública. Quando ele se deixa capturar por interesses eleitorais ou ideológicos, não temos justiça: temos vingança institucional.
É preciso resgatar o processo penal como instrumento racional, técnico e garantista. Sem isso, o que se ergue em nome da moral será sempre uma distorção do Direito - e uma ameaça à democracia.