Migalhas de Peso

Dolo e liberdade na sistematização da imputação penal

Uma crítica à dogmática do dolo e à ficção do dolo eventual, com defesa da liberdade como base da imputação penal e proposta de um modelo normativo, claro e democrático.

6/7/2025

A imputação penal é o ponto de encontro entre a conduta humana e a resposta institucional do Estado. E se há um elemento que historicamente sustentou essa ponte, esse elemento é o dolo. Mas qual dolo? O dolo original, como intenção livre de realizar um comportamento proibido? Ou o dolo contemporâneo, cercado de ficções, suposições e interpretações subjetivistas que afastam o jurista do fato e o aproximam de juízos de valor imprecisos?

Retomar a sistematização do dolo é, portanto, uma exigência técnica e constitucional. Em vez de ampliar suas formas por meio de categorias como dolo eventual, dolo direto de segundo grau, ou qualquer outro dolo de tendência, é preciso reconduzir o debate à base: a liberdade como mestra do dolo. Essa é a proposta que desenvolvo na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025), onde proponho uma reconstrução da imputação penal a partir de um modelo significativo e normativo, fundado em critérios linguísticos, objetivos e democráticos.

As primeiras legislações penais da Antiguidade já distinguiam com clareza os atos voluntários dos involuntários. As leis de Drácon, na Grécia, separavam o homicídio doloso (phónos ékousios) do culposo (phónos ákousios). No Direito Romano, essa distinção ganha forma jurídica na Lex Numae e, posteriormente, nos textos das Doze Tábuas, onde o dolo surge como manifestação da vontade livre e consciente de lesar. A imputação, portanto, era simples: havia dolo quando havia intenção; havia imprudência quando havia descuido.

O texto 48.8.1.3 do Digesto é exemplar: “se alguém matou sem intenção, pode ser absolvido; se feriu com intenção de matar, deve ser condenado.” Nenhuma ambiguidade. O critério era a vontade. Essa clareza, no entanto, foi sendo comprometida ao longo dos séculos, à medida que os sistemas penais absorviam influências de modelos autoritários e dogmáticas confusas. O resultado foi a criação de figuras que comprometem a imputação racional, como o dolo eventual, que presume a existência da vontade a partir da previsibilidade do resultado.

O Direito Penal sistematizado que herdamos é, em grande medida, um produto da fusão entre três grandes tradições: romana, germânica e canônica. Cada uma contribuiu para a construção de um modelo de imputação que, por vezes, privilegiou o controle estatal em detrimento das garantias individuais. A tradição germânica, por exemplo, tratava os danos voluntários (willea werk) e involuntários (wathi werk) com igual severidade. Já o Direito Canônico refinou a noção de dolo com base no princípio non datur peccatum nisi voluntarium, estabelecendo a vontade como condição indispensável para a imputação do delito.

Mesmo assim, a ideia da liberdade como núcleo da imputação permaneceu. Em Roma, não se admitia dolo sem liberdade. A figura do dolus malus - a vontade injusta e consciente - era o critério essencial para a punição. Com o tempo, o termo dolo foi migrando do Direito Civil para o Direito Penal, carregando consigo o sentido de engano, artifício e intenção lesiva. Mommsen esclarece que o dolo se identificava com uma vontade delituosa, geralmente acompanhada de astúcia, e que essa vontade deveria ser inequívoca, jamais presumida.

É a partir dessa base que se desenvolve uma das críticas centrais da Teoria Significativa da Imputação: a rejeição da graduação do dolo. Romagnosi, já em 1857, deixava claro que, embora a liberdade pudesse admitir graus, o dolo não deveria ser graduado. Isso porque, para ele, sem liberdade não há dolo; e, havendo liberdade, não se pode medir a intenção como se fosse uma intensidade variável. A essência do dolo está na liberdade de agir contra o Direito.

Romagnosi define o dolo como “a consciência de infringir livremente o que a lei proíbe ou ordena.” Essa definição recupera a simplicidade originária da imputação: dolo é vontade, e essa vontade só é imputável quando é livre. Sem liberdade, não há mérito nem demérito. A presença de coação, erro ou qualquer vício sobre a vontade anula a possibilidade de imputar dolo. Essa concepção é esquecida em grande parte pelas doutrinas modernas, que preferem trabalhar com categorias híbridas e imprecisas, como o dolo eventual.

Outro exemplo claro de degeneração conceitual encontra-se na omissão deliberada do dolo em alguns códigos penais modernos. Códigos como o Napoleônico (1810) ou o italiano de 1859 optaram por tratar o dolo como elemento implícito, sob o argumento de que “ninguém pode ser punido por um crime se não desejou o fato que o constitui.” Embora essa frase pareça afirmar um princípio garantista, ela também abriu espaço para interpretações que permitem ao julgador presumir a vontade, especialmente em contextos politicamente sensíveis.

A Teoria Significativa da Imputação propõe que o dolo seja tratado como elemento manifesto, visível na linguagem da ação. A análise penal não deve ser feita com base em suposições subjetivas, mas sim na interpretação objetiva da conduta. Isso exige que a imputação seja reconstruída com base em quesitos claros, que permitam verificar, a partir da ação praticada, se houve vontade livre de alcançar o resultado típico. Quando essa vontade não estiver presente - ainda que o resultado fosse previsível - a conduta deve ser classificada como imprudente, e não dolosa.

Nesse modelo, a imprudência consciente pode e deve ser classificada em três níveis: gravíssima, grave e leve, conforme já expliquei aqui no Migalhas. Essa estrutura substitui o uso indevido do dolo eventual e reposiciona o Direito Penal em bases normativas coerentes com um Estado Democrático de Direito.

Portanto, a sistematização do dolo não pode prescindir da liberdade como fundamento. Retomar essa perspectiva não é um retrocesso, mas um avanço na direção de uma imputação penal mais racional, justa e democrática. O que proponho, ao contrário do que a dogmática tradicional tentou impor, é que a simplicidade conceitual pode ser mais poderosa do que a multiplicação de categorias. A clareza é, nesse campo, uma exigência ética.

Antonio Sanches Sólon Rudá
Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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